Uma crítica à estratégia udenista de Ciro Gomes

Há uns anos, num evento em Belo Horizonte, tive a oportunidade de conversar com um jornalista mineiro muito experiente, ou pelo menos muito mais experiente do que eu. Sentamos para tomar um café no restaurante do hotel onde acontecia o evento, e papo vai, papo vem, ele me explicou a diferença entre a UDN e o PSD, dois partidos que se mantiveram no centro da luta partidária nacional por décadas, antes do golpe militar de 64 jogar napalm em nossa rica e complexa floresta política.

Ele contava que, lá em Minas, o candidato da UDN costumava ir a um programa de rádio para acusar pesadamente o seu adversário do PSD, com frases mais ou menos assim:

“O deputado fulano não tem vergonha na cara! É um ladrão! Todos conhecem a história de que ele estuprava a própria enteada! É o político mais corrupto que já pisou em nosso estado. Além disso, é um assassino!”

A estratégia udenista era lançar todo o tipo de ataque moralista contra o adversário, sem poupar as acusações mais exageradas. A população ouvia a tudo estupefata, e aguardava qual seria a resposta do candidato do PSD que fora tão virulentamente atacado.

O candidato do PSD deixava que seu adversário o atacasse à vontade, e de início não respondia nada. Depois de alguns dias, porém, ele decidia responder, e o fazia de uma maneira curiosa:

“Eu queria falar ao meu amigo da UDN. Mais que amigo, irmão! Eu ouvi sua entrevista e fiquei profundamente magoado! Logo você, que é quase alguém da família! Pare com isso, meu irmão, vamos fazer as pazes e lutar em prol do povo brasileiro!”

E o PSD, partido de Juscelino Kubischek, quase sempre ganhava a eleição.

Hoje o ex-ministro Ciro Gomes, em entrevista ao Valor, usou a mesma tática da UDN para atacar o ex-presidente Lula.

Se a intenção era chamar a atenção, Ciro conseguiu. Seu nome ficou em primeiro lugar no Twitter como um dos assuntos mais comentados do dia. Tenho a impressão, todavia, que grande parte dos comentários não foram propriamente positivos.

De qualquer forma, o que está em jogo aqui não é Ciro, Bolsonaro ou Lula, mas o destino de um dos maiores países do mundo. Então me permitam fazer esse debate da maneira mais objetiva e desapaixonada possível.

Para não ficarmos num jogo de manchetes, vamos ao contexto, reproduzindo o trecho da entrevista em que ocorre o ataque.

Valor: O senhor e seu irmão foram ministros de governos petistas. O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), é aliado do senhor. Não é um desafio se mostrar distante de Lula e do PT?

Ciro: Claro que é, mas não estou dizendo nada disso agora. Quando Lula cometeu a imprudência de colocar Michel Temer como vice de Dilma, disse que Temer era corrupto, chefe de uma quadrilha inescrupulosa, sócio do Eduardo Cunha. Dilma disse que eu estava magoado. Quando entregou Furnas para Cunha, denunciei. Fui ministro com condições objetivas, de tirar a transposição do São Francisco do papel. Depois não aceitei mais ser ministro. Quando Cid renuncia ao ministério? Quando denuncia a roubalheira do Cunha. Quem vai ter que se explicar agora é o Lula porque vou para cima dele. Vamos derrotar Bolsonaro e vou propor mudança. Lula é parte central da corrupção. Lula é o maior corruptor da história moderna brasileira. E não aprendeu nada. Fica na lambança, prometendo a volta de um passado idílico que é mentira.

A manchete do Valor, como era de se esperar, foi a frase mais forte:

Ao fazer um ataque tão direto e agressivo a Lula, a intenção de Ciro, ao que tudo indica, é buscar o voto antipetista, um eleitorado ainda expressivo, que não é necessariamente reacionário (vamos discorrer sobre isso mais adiante), especialmente junto a setores da classe média, nas grandes cidades, e fora do Nordeste.

Entretanto, o último Datafolha, com entrevistas realizadas na segunda semana de maio, mostra que o antipetismo refluiu substancialmente, e que a rejeição a Lula hoje é muito menor que a rejeição a Bolsonaro. Segundo a pesquisa, 36% dos brasileiros não votariam em Lula “de jeito nenhum”, contra 54% que dizem o mesmo sobre Bolsonaro.

Esse recuo do antipetismo se deu sobretudo entre as camadas populares, com renda familiar abaixo de 2 salários, onde hoje apenas 29% dizem que não votariam em Lula de jeito nenhum, contra 55% de rejeição a Bolsonaro nessa mesma faixa (!).

Importante ressaltar que esse faixa de renda representa, segundo o Datafolha, 56,5% do eleitorado, ou 82,7 milhões de eleitores. O total de eleitores registrados no Brasil, segundo o TSE, está hoje em 146,2 milhões.

Tratamos aqui a rejeição a Lula como sinônimo de antipetismo, embora saibamos que existe uma diferença importante entre os dois, em detrimento desse último, ou seja, o antipetismo é maior do que a rejeição a Lula. Por amor ao debate, vamos simular que ambos são parecidos.

Nas faixas superiores, porém, ainda encontramos um forte sentimento antipetista. Entre famílias com renda entre 2 a 5 salários, a rejeição a Lula é de 45%, e nas famílias com renda entre 5 e 10, o antipetismo atinge seu maior patamar, 57%.

Em termos númericos, qual o peso dessas faixas de renda? A faixa com renda entre 2 a 5 salários corresponde a 32% do eleitorado, ou 46,2 milhões de brasileiros; ao passo que aqueles com renda entre 5 e 10 salários formam 6% do eleitorado, ou 8,6 milhões de pessoas. Os eleitores com renda familiar acima de 10 salários são apenas 2,5% do eleitorado e somam 3,67 milhões.

O peso numérico desses grupos, contudo, não corresponde à sua influência no debate político nacional, sobretudo em função daquela que é a característica mais nefasta da nossa sociedade, que é a desigualdade. E em nenhum aspecto essa desigualdade tem consequências mais iníquas do que no acesso ao conhecimento e às ferramentas intelectuais necessárias ao exercício da cidadania.

Em qualquer país democrático, onde o poder sofre grande dependência da opinião pública, a classe média tende sempre a ser um ator político determinante. Por outro lado, o avanço do sufrágio universal que vimos no Brasil desde a redemocratização, serviu para empoderar as camadas mais humildes, que exerciam sua cidadania através do voto e escolhiam o seu candidato através da propaganda eleitoral.

E aí talvez encontramos uma explicação muito mais plausível – e dentro da economia política – para o crescimento do antipetismo junto às nossas classes médias, do que em teses meio forçadas sobre um suposto fascismo ou reacionarismo orgânicos a esses grupos.

Como o PT viu que podia ganhar eleições sem o apoio da classe média, essa acabou sendo rifada do debate político e do projeto econômico. De um lado, a camada mais humilde ficou relativamente satisfeita com a chegada de benefícios sociais dos quais nunca antes desfrutara, além do aumento do salário mínimo, ampliação da oferta de vagas em universidades, acesso ao consumo e outras conquistas; de outro, os muito ricos gozavam de generosíssimas isenções fiscais, renda com juros garantida por um Banco Central ultraconservador, crédito subsidiado de suas empresas no BNDES, e aumento de vagas para empregos públicos com salários cada vez mais altos.

Espremida no meio, sem acesso a programas sociais, sem isenção fiscal, sem o treinamento necessário para acessar a elite do funcionalismo, sem crédito no BNDES, a classe média procura se manifestar através do voto, mas testemunha seus candidatos perderem, sistematicamente, em 2006, 2010 e 2014. A Lava Jato, com suas denúncias (um tanto exageradas, ou mesmo falsas, conforme ficaria evidente mais tarde) de que as campanhas petistas teriam contado com milhões de reais de dinheiro sujo da corrupção, foi a faísca que acendeu a fúria da classe média brasileira.

Entretanto, um outro fator foi determinante para que essa classe média se sentisse empoderada: a emergência das redes sociais. A internet já existia, e a classe média havia abraçado a nova forma de comunicação com grande entusiasmo. Desde os primórdios da internet, o Brasil tem se destacado por ser um dos países com usuários mais empenhados.

Mas o surgimento das redes sociais, especialmente após a chegada do Facebook, configura outra etapa, porque elas permitem a interação. Rapidamente a classe média entendeu o poder político das redes, e daí eclode esse movimento até hoje misterioso, as jornadas de junho de 2013, para o qual não vejo outra explicação que não um grande teste de forças dessa classe média que, até então, se via marginalizada do debate político.

O governo Dilma e o PT, lamentavelmente, nunca souberam interpretar objetivamente as jornadas de junho. Depois de alguns anos de perplexidade, o PT se refugiou em teorias de conspiração, como se pode constatar pelas entrevistas recentes de Lula sobre o tema.

O golpe de 2016 e o passo seguinte, a eleição de Bolsonaro, foram dois momentos de grande catarse da classe média brasileira. Pesquisas de intenção de voto feitas às vésperas do primeiro ou do segundo turno das eleições de 2018 não deixavam dúvidas de que o antipetismo havia atingido o seu clímax, e o seu núcleo pulsante e criativo era a classe média.

Após a derrota, a esquerda iria novamente se refugiar em teorias de conspiração. Até mesmo Ciro Gomes, sobre o qual iremos ainda falar mais adiante, fala em financiamento externo ou internacional para a eleição de Bolsonaro, apesar de não haver nenhuma prova sobre isso.

O fato é que a explicação mais objetiva para a vitória de Bolsonaro era a mais simples, a que estava na cara de todos. Ele contava com apoio maciço da classe média brasileira, e a classe média havia conquistado, pela primeira vez na história, a hegemonia no debate político. Agora ela não precisava mais contar com a intermediação de um Merval Pereira, de uma Miriam Leitão, ou de um preposto qualquer da grande mídia. Ela adquirira consciência de classe e entendido que poderia, finalmente, ganhar eleições, simplesmente se organizando pelas redes sociais. Desde então, ela vai usar suas conexões políticas, seus contatos, e sobretudo sua capacidade de mobilização nas redes digitais, para manter sua hegemonia moral e política na sociedade.

Só que Bolsonaro foi uma grande decepção, que ficou evidente sobretudo com a chegada da pandemia ao Brasil.

É um grande erro, porém, achar que essa classe média, apesar de majoritariamente antipetista, é reacionária. Essa é a mesma classe média que votou, durante décadas, no PT, que vota em Marcelo Freixo, e que quase elegeu Boulos para prefeito em São Paulo. Ela se tornou antipetista pelas circunstâncias. Cabe à esquerda desconstruir esse antipetismo, convertê-lo em outro tipo de energia.

E foi exatamente esse o papel que, segundo me pareceu, Ciro poderia desempenhar.

Ciro poderia ser o grande vetor de transformação da classe média antipetista numa força eleitoral progressista.

E ainda pode ser, caso faça alguns ajustes em sua estratégia. 

Podemos ver a coisa ainda por outro ângulo: Ciro pode dividir a classe média antipetista, ajudando-a a se desprender de Bolsonaro, persuadindo-a de que pode exercer a sua cidadania sem precisar apelar para o extremismo tosco, reacionário e um tanto caricatural, representado pelo atual presidente.

Só que todos nós que assim pensávamos, não contávamos que esse processo fosse ser tão traumático, difícil, arriscado.

A influencer Gabriela Prioli iniciou sua entrevista com Ciro Gomes, feita há alguns dias, com a sua “régua ideológica”, onde ela pede para seus convidados dizerem onde eles acham que sua ideologia se encaixa. Ciro pediu para ficar entre o socialismo democrático e a social democracia, num ponto bastante à esquerda da régua.

O projeto nacional de desenvolvimento de Ciro, temperado pelo varguismo de seu atual partido, o PDT, pode ser considerado à esquerda de tudo que vivemos nas últimas décadas. Isso significa que, independente do debate algo vazio sobre o tema, envenenado pela luta partidária, o núcleo duro dos apoiadores de Ciro Gomes é composto por militantes de esquerda. Uma análise de sua votação nas capitais confirma isso. Ciro recebeu voto dos bairros “ideológicos” em São Paulo (arredores da USP, da rua Augusta e Praça Roosevelt) e Rio de Janeiro (Laranjeiras, Tijuca, Leme), para só falar de duas importantes praças eleitorais. Quando ele ataca o ex-presidente Lula, ele acaba criando um clima de mal estar que extravasa a política. Não é a tôa que Ciro perde voto entre eleitores mais velhos, que tem uma vida inteira de relações construídas com setores da esquerda tradicional, onde o PT ainda é importante. São pessoas que tem clientes, professores, parentes, amigos, simpáticos ou filiados ao PT. Críticas, todos entendem. Elas são necessárias. Mas elas devem se revestir de uma linguagem política. Se elas saem da política e adentram o terreno da moral, então a gente incentiva as mesmas paixões e ódios que o próprio Ciro tanto denuncia como nocivos ao debate político.

Ciro Gomes tem um papel importante como um dos candidatos mais promissores da terceira via. Seu caminho é difícil, e hoje poucos analistas acreditam que ele tenha realmente uma chance de chegar ao segundo turno. Mas os mesmos também falam que, se algum nome da terceira via tem alguma chance, ainda que mínima, é Ciro.

Os petistas que negam a importância de existir um pólo alternativo, por medo talvez de que isso possa esvaziar o eleitorado de Lula, estão equivocados, em minha modestíssima opinião. Bolsonaro ganhou em 2018 com uma vitória esmagadora em muitas praças importantes. Grande parte desses votos nasceram do sentimento antipetista, que ainda deve estar presente em 2022, mesmo que em menor intensidade. Me parece evidente a necessidade de oferecer uma alternativa para que esse eleitor antipetista possa se desprender de Bolsonaro, e essa alternativa, obviamente, não é Lula. Para ganhar esse eleitor, Ciro precisa marcar posição contra o PT. Isso todos os seus apoiadores já entenderam. Entretanto, ao exagerar, Ciro acaba prejudicando a si mesmo e a sua própria estratégia.

O internauta pode se perguntar: e se esse antipetista que se desprender de Bolsonaro e votar em Ciro no primeiro turno resolver votar em Bolsonaro no segundo?

Penso que isso é bem difícil de acontecer, porque o próprio processo pelo qual o antipetista se desprenderá de Bolsonaro para votar em Ciro Gomes já é uma operação química complicadíssima. Na verdade, essa é apenas uma utopia, um desejo, um wishfull thinking. Não aconteceu até agora, e os sinais de que pode vir a acontecer ainda são ambíguos e difusos. Em tese, se a classe média tem alta rejeição a Bolsonaro, mas também não quer Lula, ela vai procurar uma alternativa. Isso parece claro. Mas ainda não se vê isso nas intenções de voto. Ou antes, quando ela se desprende de Bolsonaro ela parece votar em… Lula.

No entanto, se isso acontecer, se esse eleitor bolsonarista abandonar seu candidato e aderir a um candidato como Ciro Gomes, isso significará também que ele dificilmente retornará a Bolsonaro, independente que Ciro fique no Brasil ou volte a Paris no segundo turno de 2022.

Em suma, é compreensível que Ciro precise marcar posição contra Lula e contra o PT, de olho nesse “filé mignon” eleitoral que é essa classe média profundamente antipetista, e ao mesmo tempo tão empoderada, que votou em Bolsonaro em 2018, e que hoje rejeita cada vez mais esse governo. Entretanto, se ele exagerar, vai acabar perdendo sua própria base orgânica, formada por eleitores de esquerda, identificados com a ideologia que o próprio Ciro abraça, porque eles não suportarão a pressão psicológica vinda de um petismo justamente indignado com acusações e ofensas abaixo da cintura. Essa militância orgânica entende a necessidade de se criticar o PT e Lula, e inclusive admira a coragem de Ciro por fazê-lo quando ninguém mais na esquerda parece disposto a isso, até mesmo por medo da reação agressiva que se levanta contra todo mundo que o faz.

Ao mesmo tempo, ela precisa que essa crítica seja qualificada, fundamentada, e não baseada em adjetivos vazios ou caricaturais, como afirmar que Lula é “maior corruptor da história moderna”.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.