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A volta às ruas, a CPI e a pizza

A envergadura, o impacto na opinião pública e os cuidados sanitários das manifestações do último domingo me fizeram mudar de opinião: antes eu estava na dúvida sobre a sua pertinência, tendendo a pensar que não eram uma boa ideia por conta dos riscos; agora acredito que os atos foram um acerto. Os riscos por conta […]

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Bolsonaro durante seu pronunciamento insosso de ontem (02), quando foi abafado pelo som das panelas. Foto: Anderson Riedel/PR

A envergadura, o impacto na opinião pública e os cuidados sanitários das manifestações do último domingo me fizeram mudar de opinião: antes eu estava na dúvida sobre a sua pertinência, tendendo a pensar que não eram uma boa ideia por conta dos riscos; agora acredito que os atos foram um acerto.

Os riscos por conta das aglomerações existem, ainda mais no momento em que estamos prestes a viver uma nova explosão de casos – que tende a ser devastadora, considerando que estamos partindo de uma média móvel de mais ou menos 1.800 mortes diárias, um patamar altíssimo. No entanto, três fatores diminuem consideravelmente os riscos de contaminação: a esmagadora maioria dos manifestantes usou máscaras; houve uma preocupação, na medida do possível, com o distanciamento entre as pessoas; as manifestações foram a céu aberto. (É sempre bom lembrar que os dois primeiros fatores só estão presentes nas manifestações da oposição, jamais nas do bolsonarismo.)

Quanto aos efeitos políticos dos atos, eles foram notáveis. Bolsonaro desdenhou, jornalões esconderam, mas o fato é que eles foram mais robustos do que em geral se esperava – ou ao menos do que este que vos escreve imaginava. Quem compareceu relatou a catarse esperada de uma volta às ruas depois de tanto tempo, e a indignação materializada nas multidões com suas bandeiras e cartazes se espraiou pelas redes sociais.

O famoso slogan “amanhã vai ser maior”, sempre bravateado após alguma manifestação de sucesso, é uma boa peça de propaganda, porém difícil de ser posta em prática: o aumento da mobilização depende da confluência de uma série de fatores conjunturais que raramente se observa. Podemos viver nas próximas semanas, contudo, uma dessas raras ocasiões, pois muita gente que estava exitante deve engrossar os próximos atos, tendo em vista o potencial explosivo que o movimentou demonstrou ter e os cuidados sanitários adotados pelos participantes. O próximo dia de atos pelo Fora Bolsonaro já está definido: 19 de junho.

No campo da política institucional, a CPI continua seus trabalhos. Na semana passada foi ouvida a médica Mayra Pinheiro, integrante do Ministério da Saúde apelidada de Capitã Cloroquina. No seu depoimento ela justificou a alcunha, defendendo a aplicação da cloroquina e do famigerado tratamento precoce com desenvoltura.

Com desenvoltura na oratória, apenas, porque seus argumentos não se sustentam diante de perguntas um pouco melhor elaboradas. Foi o caso com o senador Alessandro Vieira (Cidadania), o destaque da CPI até aqui, na minha opinião, por conta de suas perguntas certeiras e cortantes que costumam arrancar respostas bastante úteis para os trabalhos da comissão. (Esse estilo de perguntas mais investigador é, me parece, muito mais produtivo em uma comissão parlamentar de inquérito, embora os discursos tenham sua função política também.) O senador Alessandro foi atrás do estudo no qual a Capitã Cloroquina se apoiava para defender o remédio e revelou que a revista na qual ele foi publicado tem uma avaliação muito baixa no meio científico, o que derruba a credibilidade do estudo. Outro ponto importante do depoimento de Mayra foi a divergência com o general Eduardo Pazuello quanto à data em que o Ministério da Saúde foi informado da falta de oxigênio no Amazonas, em janeiro, o que pode trazer consequências para o apaniguado de Bolsonaro (que deve depor novamente na CPI).

Ainda na semana passada foi ouvido o diretor do Instituto Butantan Dimas Covas, e seu depoimento foi nada menos do que devastador para o governo. Apresentando documentos que comprovam suas falas, Covas explicitou, assim como o CEO da Pfizer, que o governo federal sabotou a compra de vacinas no ano passado. Se não tivesse ignorado a Pfizer o Butantan poderíamos ter garantido a compra da bagatela de 130 milhões de doses ainda em 2020, que poderiam estar a esta altura, junho de 2021, todas aplicadas nos braços dos brasileiros. Só este fato já é motivo para o afastamento e prisão dos responsáveis diretos pelas mortes dos que não foram vacinados a tempo.

Mas Covas foi além, fazendo a óbvia ligação – bizarramente negada por Pazuello – entre as declarações de Bolsonaro (de que não compraria a Coronavac) com a suspensão das negociações entre o governo federal e o Instituto Butantan. Dificuldades na obtenção de insumos da China para a produção das vacinas por conta da estupidez xenofóbica de integrantes do governo em relação aos chineses e até mesmo problemas para encontrar voluntários para a fase de teste da vacina, quando a campanha de desinformação contra a “vacina chinesa” estava em seu auge, também foram relatados pelo diretor do Butantan. Foi um depoimento-bomba, com potencial para explodir as mambembes argumentações governistas em relação à (não) compra das vacinas.

Na última terça-feira tivemos o depoimento da oncologista Nise Yamaguchi, figura muito próxima ao presidente da República. Em uma palavra, foi constrangedor. Como um amigo bem definiu, uma tiazinha do zap que, apesar da patente falta de conhecimento e embasamento científico para suas opiniões, foi uma das fiadoras das decisões imbecis e assassinas de Jair Bolsonaro durante a pandemia.

Seu confronto com o senador Otto Alencar (MDB) viralizou por boas razões: o senador, que também é médico, fez uma espécie de teste de conhecimentos básicos com Yamaguchi, que foi reprovada fragorosamente. Algum desavisado poderia até sentir pena da tiazinha do zap, mas não era o caso. Como bem colocou o emedebista, ela fez uma aposta ao sair distribuindo remédios sem eficácia comprovada (e mais tarde com ineficácia comprovada) à população sem fazer testes pré-clínicos e clínicos, sem acompanhar os pacientes após o tratamento, sem nada. Só que apostar com a saúde das pessoas é obviamente criminoso – pessoas com problemas cardíacos, por exemplo, podem morrer caso se mediquem com cloroquina, o que de fato aconteceu com muitos pacientes.

Quando se distribui remédios a esmo e se afirma que obteve sucesso no tratamento sem fazer uma verificação mínima dos fatores que levaram à melhora dos pacientes (ou das sequelas e eventuais mortes que ocorreram) fica evidente a estratégia dos defensores do “tratamento precoce”: creditar aos seus remédios picaretas o que é decorrência da alta taxa de pessoas que não evoluem para casos graves mesmo se contaminadas (em torno de 80%).

Outro elemento importante do depoimento de Yamaguchi: ela basicamente confessou a existência do gabinete paralelo que aconselhava (ou aconselha) o presidente Bolsonaro quanto às políticas de enfrentamento à pandemia. Não importa que ela tenha dado outro nome ao grupo, que a participação dos conselheiros tenha sido “voluntária” ou que não havia vinculação oficial (isto, aliás, pode signficar quebra de princípios da administração pública como o da legalidade). O que importa é que o grupo existia (ou existe) e que, confirmada sua existência, pode-se responsabilizar os mentores intelectuais da tragédia que vivemos.

A proeminência das ideias da dra. Yamaguchi na política de combate à pandemia do governo brasileiro revelou-se ainda mais absurda depois do depoimento de Luana Araújo, infectologista convidada pelo autal ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para chefiar a Secretaria de Enfrentamento à Covid e dispensada dez dias depois de ser anunciada. (A secretaria foi criada mais de um ano após o início da pandemia, o que deve ser a 1.579ª evidência do descaso criminoso com que o governo vem tratando a crise de saúde. A BBC informa, aliás, que a secretaria ainda está sem comando – mais de um mês depois de ter sido criada.)

Tudo indica que Luciana foi dispensada por conta de suas manifestações contundentes contra a cloroquina e quejandos, as quais não agradaram a base violenta e ensandecida de Bolsonaro. Na CPI ela falou com segurança, desenvoltura e evidente conhecimento sobre o assunto, a ponto de os prórios senadores bolsonaristas rasgarem elogios à médica.

Em nenhuma sessão anterior os governistas foram tão estrondorosamente atropelados. Sua defesa do tratamento precoce soou apenas ridícula diante do que Luana falava; quando ela apontou um erro no gráfico sobre evidências científicas que o senador Girão balançava no ar, todo pimpão, este olhou para o gráfico de forma patética, nitidamente atordoado. O senador Heinze assumiu de vez o posto de piada nacional, voltando à carga com suas ilações sem sentido sobre uma atriz pornô metida com pesquisas. Sobre o tal Didier Raoul, um pesquisador que defende a cloroquina, Luana sugeriu que o senador pesquisasse sobre o prêmio Rusty Razor, com o qual Raoul foi agraciado: trata-se de um prêmio da revista britânica The Skeptic para o pior exemplo de pseudociência do ano.

O presidente da CPI Omar Aziz (outro destaque, aliás, por sua condução marota dos trabalhos, com direito a ironias finas direcionadas aos bolsonaristas de quando em quando) resumiu bem a participação dos senadores alinhados ao governo em um áudio que vazou enquanto um governista falava: “depois de horas da mulher falando, um cabra desses vem falar uma merda dessas?”.

O fato de Luana não criticar diretamente o presidente Jair Bolsonaro não enfraqueceu seu depoimento. Pelo contrário: seu ar “técnico”, que costuma agradar boa parte dos atores políticos (ao menos da garganta pra fora), aumenta a força das suas palavras. Ela arrebentou com o tratamento precoce, com a falta de uma mensagem única e correta para a população, com a ausência do distanciamento social, com as críticas à vacina. O trabalho de conectar tudo isso às ações de Jair Bolsonaro ficou para o relator Renan Calheiros, o que não é, convenhamos, tarefa das mais desafiadoras.

Ainda assim, no campo da esquerda surgiram muitas críticas à depoente. “Se ela entrou no governo Bolsonaro boa gente não é”, “ela não é de esquerda”, “ela defendeu bolsonaristas no passado” e coisas desse tipo. Não é surpreendente, mas não deixa de ser impressionante: quando surge o depoimento de uma pessoa que participou do governo, que foi elogiada até pelos senadores bolsonaristas e que simplesmente detonou com todas as políticas defendidas pelo governo Bolsonaro o pessoal acha que ainda não está bom. Quem sabe se ela tivesse se apresentado na CPI com uma camisa vermelha e uma boina à la Che Guevara…

Outra avaliação que tem aparecido bastante na esquerda é de que a CPI não vai dar em nada; vai acabar em pizza, “como sempre”. Afora o fato de que essa expressão “acabar em pizza” não me agrada muito, já que popularizada ao longo dos anos por conta da feroz campanha midiática contra a atividade política, não me parece que esta é uma avaliação correta ou produtiva.

Não é correta porque a instalação da CPI foi uma grande vitória da oposição. O presidente do Senado Rodrigo Pacheco segurou o quanto pôde, e a CPI só foi criada por determinação do STF. Instalar a CPI era o primeiro passo, esencial para se cogitar a derrubada de Jair Bolsonaro da presidênica. Um passo complicado, difícil, mas que foi dado. Com a CPI instalada há uma pauta permanente contra o governo, com um potencial de dano político enorme – que estamos presenciando, aliás, a cada depoimento. Como a oposição tem maioria na CPI, é fato consumado que o relatório será devastador para o governo. Quando o relatório for enviado para a Câmara haverá uma brecha para a pressão popular sobre Arthur Lira, que poderá iniciar um processo de impeachment. Até lá estaremos com mais de meio milhão de mortos (fora a subnotificação) e estaremos vivendo os efeitos de uma terceira onda que promete ser devastadora. Com a piora da já péssima conjuntura e a conhecida ausência de fidelidade que caracteriza o Centrão, do qual Lira é um dos líderes, a hipótese de que o processo de impeachment seja deflagrado não é um delírio.

Mas ela precisa ser construída, e é nesta equação que entram os atos de rua. Em vez de repetir o mantra “vai dar em pizza” (ou de fazer corpo mole esperando 2022, o que é nada menos do que abjeto), os políticos, partidos e militantes da oposição podem trabalhar com obstinação para pressionar o Congresso. Com o sucesso dos atos do dia 29/05 surgiu a oportunidade real de encher as ruas de forma progressiva, o que deteriorará ainda mais a imagem do governo. Se essa energia for direcionada para os congressistas, com uma pressão constante e ensurdecedora pelo impeachment, há uma boa chance de sucesso.

O bolsonarismo vai reagir, é claro, como sempre fez: com intimidação, desinformação, bravatas e violência. Mas agora eles são, e isto vai ficar cada vez mais evidente, minoria. A hora da maioria “fazer valer a sua vontade“, como costuma dizer o presidente, pode não estar tão longe assim.

P.S.: o anúncio de que Eduardo Pazuello não será punido pelo Exército, mesmo depois de infringir o regramento militar ao participar de ato político ao lado de Bolsonaro, é sinal do poderio do presidente sobre as forças armadas, mas também deve virar combustível para os próximos atos de rua, que podem agregar setores da direita preocupados com a possibilidade de um fechamento do regime. Preparemo-nos.

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Pedro Breier

Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.

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Comentários

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dcruz

03/06/2021 - 21h46

Pois, Breier, estou sabendo agora de mais essa cagada nesse governo que você assinalou no PS e, pra variar, o gordinho caga na saquinha está nela. Ele saiu incólume dessa também e a cor do excremento mais recente é verde-oliva. Esse cara é muito querido do bozo ou faz parte da terrível vingança do “mau militar”, segundo Geisel, que todos iriam comer na mão dele o que é nada mais do que esses milicos estão fazendo, senão perdem a boca. O piriri virou endêmico, é uma atrás da outra. Haja fraldão. Ou Imosec. .Agora, depois de tudo que você expôs, e que me faz suar frio é a dúvida atroz: será que esse cara vai ser reeleito?

Galinze

03/06/2021 - 21h27

“Algum desavisado poderia até sentir pena da tiazinha do zap, mas não era o caso. Como bem colocou o emedebista, ela fez uma aposta ao sair distribuindo remédios sem eficácia comprovada (e mais tarde com ineficácia comprovada) à população sem fazer testes pré-clínicos e clínicos, sem acompanhar os pacientes após o tratamento, sem nada. Só que apostar com a saúde das pessoas é obviamente criminoso – pessoas com problemas cardíacos, por exemplo, podem morrer caso se mediquem com cloroquina, o que de fato aconteceu com muitos pacientes.”

Queria saber de Pedro Breier como ele conseguiu saber a forma com a qual essa médica trata seus pacientes…?

Alias como uma pessoa consegue escrever uma merda dessa a respeito de um médico ?

Tony

03/06/2021 - 20h56

Só um infantiloide como Pedrinho do Toddy para dar crédito a uma porcaria imunda de quarto mundo comandada por Renan Calheiros.

    carlos

    04/06/2021 - 08h18

    Quarto mundo, e você mora aonde, seu imbecil, idiota energumeno, vai ver fugiu pra algum outro país.


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