O último crocitar do tirano

Na internet há um site com “vozes dos animais”, no qual podemos confirmar algumas populares, mas também há novidades.

Por exemplo, quase todos sabem que burro zurra, o cão ladra e o pombo arrulha, mas poucos tem conhecimento de que a serpente silva, o peixe ronca e o urubu… crocita.

Fui procurar esses verbos depois de ouvir o último discurso do presidente Jair Bolsonaro, que recebeu de 60 milhões de brasileiros o aviso prévio de seu despejo do Alvorada.

Como era esperado, a cena é grotesca. Bolsonaro não tem sequer a preocupação de fazer um registro audiovisual decente.

O que é divulgado para o Brasil é um vídeo de qualidade horrorosa, onde se vê o presidente berrando, em som quase inaudível, uma série de impropérios contra a Constituição, a democracia e o bom senso. Que é o que ele, a propósito, passou quatro anos fazendo no Planalto.

Num primeiro momento, ao ler um comentário na internet que o presidente tinha rompido o silêncio e feito um “pronunciamento golpista”, fiquei ligeiramente preocupado e corri para me inteirar melhor.

Ao assistir o vídeo, minha preocupação se desfez, embora não o mal estar. O discurso é golpista, como sempre, mas nada diferente do que ele vem fazendo desde que assumiu o governo. A diferença é que agora menos gente lhe dá importância.

Não subestimo o perigo de um político ainda capaz de amealhar enorme quantidade de votos.

Mas uma eleição presidencial é como uma semi-final de Copa do Mundo. O objetivo não é exatamente fazer muitos gols, e sim fazer mais do que o adversário. Isso não é uma metáfora leviana, mas um conceito fundamental da república: numa eleição presidencial, aquele que tem um voto a mais que se adversário, irá governar com a mesma autoridade como se tivesse sido escolhido por 100% dos cidadãos. Foi assim com Bolsonaro. Em 2018, Bolsonaro recebeu 57,8 milhões de votos, e foi eleito presidente, com autoridade plena para exercer todas as prerrogativas que tinha direito. Em 2022, porém, Lula teve 60,3 milhões de votos. Na próxima segunda-feira, 12 de dezembro, será diplomado oficialmente pelo TSE como presidente da república do Brasil.

Não vou analisar aqui a fala de um desequilibrado, porque não tem pé nem cabeça. Valeria apenas reiterar que se trata, mais uma vez, de um discurso irresponsável, inconsequente, infantil, antidemocrático e delirante. O que explica aliás porque ele perdeu as eleições.

Para Bolsonaro, “povo” é um aglomerado de brasileiros que votam nele. Todo mundo que não vota em Bolsonaro é excluído de sua concepção de cidadania. A maioria do eleitorado, os 60,3 milhões que, num gesto de rebeldia e coragem, enfrentaram toda a máquina do Estado, posta a serviço da reeleição de Bolsonaro, e votaram em Lula, não merecem citação ou respeito do presidente da república.

O resultado é que esses eleitores também não respeitarão Bolsonaro.

Ah, sobre as vozes dos animais, o vídeo de Bolsonaro me fez escolher o urubu, que foi lá “crocitar” diante dessa carniça malcheirosa que pede golpe e intervenção das Forças Armadas. É o tirano-urubu. O tirano fracassado, que não conseguiu levar adiante seu plano de transformar o Brasil numa teocracia familiar e fascista.

Abaixo, o vídeo, para registro histórico.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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