BBC Brasil: os códigos ‘secretos’da Tábua de Esmeralda de Jorge Ben Jor

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Os códigos ‘secretos’ da alquimia escondidos em disco de Jorge Ben Jor

Jorge Ben Jor teria visto o namorado da viúva uma única vez na vida.

Foi perto do Natal de 1973, em um quarto isolado da casa mais antiga de Paris, durante um almoço com Gilberto Gil.

Não foi um acontecimento trivial – nem para ele nem para a música brasileira. Ao contrário, era quase um encontro marcado, já que Ben Jor (então apenas Jorge Ben – o cantor mudaria de nome no final dos anos 1980) esticara, de propósito, uma viagem iniciada em Cannes, na costa da França, onde integrara a comitiva do Brasil no festival Midem daquele ano.

Ele queria levar Gil – que estava compondo as canções do disco Refazenda, de 1975 – para conhecer o lugar onde, segundo o boca a boca, um pequeno grupo de alquimistas se encontrava secretamente. Era nos fundos do Auberge Nicolas Flamel – um restaurante de uma única porta em uma construção de meados de 1400 escondida em uma viela não tão longe da catedral de Notre Dame.

Depois de comerem, Ben Jor puxou Gil para andar pela casa, cujo primeiro dono foi um rico vendedor de livros chamado Nicolas Flamel – que também era um alquimista famoso na sua época. Em dado momento, sozinhos em uma sala distante do salão, ambos foram surpreendidos.

“Vimos uma coisa lá”, contou o cantor e compositor carioca em uma entrevista ao repórter Pedro Alexandre Sanches, então na revista Trip, em 2009. “O Gil viu também. Nós vimos alguma coisa. Mas bonita, não feia. Uma coisa bonita”, completou.

Seis meses depois daquela visão, em maio de 1974, Jorge Ben Jor lançaria no Brasil e na mesma França seu disco preferido da carreira e, quiçá, o mais cultuado dos 38 que ele fez desde os anos 1960: A Tábua de Esmeralda.

O álbum, que completa 50 anos em maio, deu à música brasileira um objeto inédito: a alquimia.

No limite, A Tábua de Esmeralda é uma espécie de compêndio, quase um tratado musicalizado para alçá-la ao patamar de arte e de filosofia ao mesmo tempo, seguindo sempre uma interpretação autêntica dela feita por Jorge Ben Jor.

Praticamente todas as 12 canções do disco se tornaram populares, e algumas subiram ao panteão cultural do país, como Os Alquimistas Estão Chegando, Os Alquimistas, Zumbi, Magnólia e O Namorado da Viúva.

Mais de uma década depois daquela entrevista à Trip, a jornalista Kamille Viola, da Veja Rio, conseguiu conversar com Ben Jor, por telefone, para um projeto do Google sobre Gilberto Gil. Foi em 2020.

Ainda com a história da visão de Paris na cabeça, ela aproveitou para perguntá-lo outra vez sobre o que ele e o amigo baiano haviam visto. Então, quase meio século depois do episódio na casa de Flamel, Jorge abriu o jogo.

“Ele me contou que ambos viram um grupo de pessoas com roupas do século 15 na porta da sala. Era um grupo de alquimia”, revela ela à BBC News Brasil.

“Foi uma visão mesmo, porque, embora o restaurante seja um ponto de encontro de alquimistas até hoje, aquele não era um dia de reunião”, continua ela.

Depois dessa conversa, um pedaço da extensa pesquisa que a jornalista estava fazendo, Viola publicou o livro África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou para Toda a Gente Ver (Sesc, 2020).

Uma das pessoas que Ben Jor e Gil teriam “visto” era, justamente, o namorado da viúva – ou Nicolas Flamel.

É uma possível explicação, inclusive, para o fato de a canção começar com um eu-lírico surpreso, repetindo sílabas como alguém que se vê diante de algo sobrenatural (“Na-mo-mo-ra-ra-do da viúva…”).

“Foi também o jeito que Jorge Ben encontrou para contar uma história muito popular da época”, explica a professora Susana de Andrade, que categorizou os campos de referências de A Tábua de Esmeralda em um artigo científico publicado em 2018.

A história é que, certo dia, Flamel recebeu em sua casa (onde hoje funciona o restaurante visitado por Ben e Gil) uma mulher chamada Perenelle – que havia enviuvado de dois maridos diferentes. Inicialmente procurando pelos serviços que ele oferecia como escrivão, os dois acabaram se tornando namorados.

Quando, tempos depois, ela se casou com Nicolas, inclusive assumindo seu sobrenome, correu à boca do povo que ele teria o mesmo destino dos esposos anteriores de Perenelle.

Em O Namorado da Viúva, Ben faz referência à visão dele e de Gil (“O namorado da viúva passou por aqui…”), mas avança nessa historieta dando sua própria versão, como se Flamel o tivesse contado naquela visão, em 1973, ou como se o próprio Jorge tivesse participado das fofocas pelas vielas da Paris de 800 anos atrás, sugerindo que o que se dizia entre o povo era outra coisa: que Flamel “não daria conta do recado”.

Naquele mesmo maio de 1974, Jorge Ben escolheu O Namorado da Viúva como um dos singles do disco, incluindo a canção no repertório de uma apresentação icônica no Fantástico, da TV Globo – onde aparece rodeado por figuras manipulando poções, em roupas semelhantes à visão de um ano antes, com Gil.

Jorge Ben em 1974 | Itaú Cultural

O caminho alquímico

Até A Tábua de Esmeralda, é difícil encontrar referências (mesmo codificadas) à alquimia em álbuns anteriores de Jorge Ben Jor. Antes, ele havia lançado Força Bruta (1970) e outro trabalho cultuado da sua discografia: Jorge Ben, de 1969, onde se pode ouvir, por exemplo, um dos hinos informais do Brasil: País Tropical.

Na pesquisa que fez sobre A Tábua de Esmeralda, à época na Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Susana de Andrade concluiu que o disco atravessa três grandes temas transversais: a negritude, o misticismo e a alquimia.

“Ele tentou reunir as coisas sobre as quais já estava trabalhando, como a questão racial, com o que estava lendo ali naquele momento”, explica ela. No Fantástico, semanas depois do LP chegar às lojas brasileiras, o próprio Jorge disse que o álbum era uma verdadeira “alquimia musical”.

Aquele já era, na verdade, um assunto que cruza a vida de Jorge Ben Jor desde sempre. Em 1976, à extinta revista ‘Ele Ela’, ele revelou que um dos seus avôs era membro da Ordem Rosacruz – um grupo que há mais de um século se dedica a estudos místicos – e que foi nos livros do patriarca que descobriu a alquimia. “Comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho…”.

Para Kamille Viola, porém, tudo se deu mesmo quando Ben leu textos originais de Tomás de Aquino, no Seminário São José, no Estácio, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Canonizado como santo católico em meados do século 14, Aquino é lido hoje como o grande responsável por embutir a filosofia aristotélica na fé cristã, tentando amalgamar, assim, razão e religião.

Em paralelo, sempre existiu a história de que, nos bastidores da Igreja, Tomás de Aquino também era alquimista – um relato que perfurou os séculos e chegou até um adolescente Jorge na arquidiocese carioca.

“Ele tem uns textos lindos. Aprendi latim por causa dele”, disse à Trip em 2009, citando nominalmente a Suma Teológica, um calhamaço repleto de soluções a perguntas sobre a existência e a relação da humanidade com Deus escrito na metade do século 13.

Em Assim Falou Santo Tomaz de Aquino, do álbum seguinte a Tábua, Solta O Pavão (1975), Ben musicou um dos artigos da 13ª questão da suma, sobre a semelhança entre Deus e os seres da Terra.

A Tábua de Esmeralda também o menciona em uma faixa aparentemente paralela à discussão alquímica do restante do álbum, Eu Vou Torcer (“Pelo Santo Tomás de Aquino/ Pelo meu irmão…”).

“O Jorge se interessa muito pela Idade Média. Foi um período em que o invisível estava presente na vida das pessoas, em que os sonhos eram vividos como realidade”, explica Viola.

“Mas ele nunca parou de falar sobre alquimia. Foi acumulando referências e as colocando nas músicas ao longo da carreira. Esse medievalismo, aliás, se liga totalmente ao interesse pelo processo alquímico. E, em 2020, ele me disse que estuda alquimia até hoje”, prossegue.

Capa francesa de ‘A Tabua de Esmeralda’, sem as imagens clássicas de Flamel | Reprodução Discogs

Al-quimia

Uma audição simples de A Tábua de Esmeralda pode fazer crer que a alquimia é, antes de tudo, o procedimento mágico de tentar transformar metais comuns, como o chumbo, em ouro ou na pedra filosofal – caminho para a vida eterna.

Na primeira música do disco, Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas, por exemplo, Ben chega a explicar como isso seria objetivamente possível por meio de uma sequência de etapas químicas: desde a trituração e a fixação dos materiais brutos, passando pela destilação e a coagulação até, enfim, se chegar à transmutação de uma coisa em outra.

Mas, nas entrelinhas, as letras de A Tábua de Esmeralda tentam justamente ir além disso, explorando o lugar que Jorge Ben Jor ocupa dentro do amplo espectro de interpretações sobre o que a alquimia é, de fato.

É como se, da mesma forma que na Idade Média, ele tivesse escondido seus próprios segredos alquímicos nas composições do álbum, fazendo-as funcionar, ao mesmo tempo, como canções meramente comerciais.

Segundo a historiografia, o primeiro texto sobre alquimia que se tem notícia é de um grego: Bolos de Mendes, no século II a.C, reproduzindo o saber que vinha se acumulando desde os processos metalúrgicos com o ferro, por volta de 1.200 a.C.

O berço da alquimia, porém, é Alexandria, no Egito, onde se transformou em um “sistema de pensamento sincrético”, como define Frank Greiner, professor de Literatura na Universidade de Lille 3, na França, e autor do livro Alquimia, de 1991. “Já era ali uma filosofia que buscava reconciliar estruturas mentais distintas: uma racional e científica, outra mística, remetendo a modos de conhecimento que transcendem a razão”, explica ele.

Um dos códigos mais profundos que Jorge Ben talvez tenha deixado em A Tábua de Esmeralda está nesse acontecimento histórico, na etimologia da palavra “alquimia”.

Segundo estudos, os egípcios se referiam a alguns processos com substâncias que já dominavam, como o usado para embalsamento dos seus mortos, por exemplo, de khemeia – de onde se deriva a palavra “química”.

Quando práticas semelhantes foram adotadas pelos árabes, tempos depois, ainda antes de atingir o Ocidente, foram chamadas ali de “al kimiya”, que significava “pedra filosofal”.

Isolada, porém, a palavra “kimiya” tem raiz em uma língua falada apenas pelos cristãos egípcios, os coptas, e cuja tradução é, simplesmente, “negro”. De acordo com Greiner, era assim porque “kimiya” era o jeito como eles chamavam a cor da argila nas margens do Rio Nilo e, por consequência, o próprio Egito: “terra negra”.

Considerando o momento em que Jorge Ben gravou o disco, no auge do movimento pelos direitos civis dos negros, nos Estados Unidos, ao qual ele se aproximou, e logo após ter lançado um álbum chamado Negro É Lindo, além de ter duas canções falando diretamente sobre negritude (Zumbi e Menina Mulher da Pele Preta), essa não parece ser uma coincidência.

Ao contrário, sugere que, no centro dos mistérios de A Tábua de Esmeralda, a alquimia é realçada, antes de tudo, como um sistema de conhecimento filosófico africano – e negro.

“Não sei se é um código consciente, se o Jorge pensava no nome [alquimia] em si”, sugere Viola. “Mas ele, com certeza, se deparou com histórias de civilizações negras antigas de onde surgiu grande parte do conhecimento da humanidade. Como sempre procurou exaltar a cultura negra, isso deve ter chamado a atenção dele”.

Quando a alquimia chegou ao Ocidente, pela Espanha muçulmana, no século 12, ela se cindiu ainda mais entre a experiência metafísica e uma ciência que serviria, muito tempo depois, aos anseios iluministas. Nicolas Flamel, que morreu em 1418, foi um dos nomes mais relevantes da perspectiva mística, para quem o processo alquímico era tanto transmutação da matéria como aperfeiçoamento do espírito – a mesma interpretação, aliás, de Carl Jung, já no século 20.

A inclinação de Jorge Ben à alquimia de Flamel – figura que ele teria visto com Gil, em Paris – sugere, de bate e pronto, que ele se relaciona com o processo alquímico também pela via do misticismo. Nesse sentido, ambas as coisas estariam mais amalgamadas do que parece. “Ele [Flamel] é meu muso”, chegou a dizer à Trip, em 2009.

Mas isso não o impediu de abordar o lado mais científico da alquimia, como se vê em O Homem Da Gravata Florida.

A canção é comprovadamente baseada em Philippus von Hohenheim, um suíço do século 17 obcecado por procedimentos médicos herdados do passado, assim como por conhecimentos alquímicos, e que os usou não apenas para erguer uma vertente da ciência – a iatroquímica, para a qual os organismos são resultado de reações químicas diversas – como para criar medicamentos com eles.

Os relatos da época dão conta de que Philippus era um homem demasiado orgulhoso, e a alcunha pela qual ficou conhecido, Paracelso, o prova: era uma expressão que significava, em latim, “melhor do que Celso”, em referência ao grande médico da Roma do primeiro século pós-Cristo, Aulo Cornélio Celso.

“Depois daquele período [de Paracelso], a alquimia – que admitia uma solidariedade orgânica entre a ordem das coisas e a ordem humana – torna-se eminentemente suspeita aos olhos dos eruditos”, conta Greiner. “Ela sobreviveu, então, entre rosacruzes e maçons, por meio do simbolismo, ou por meio daqueles que seguiram trabalhando secretamente em laboratórios, como Fulcanelli”, prossegue ele, citando o autor do livro O Mistério das Catedrais, publicado em 1926 e com grande influência sobre Ben.

Essa “solidariedade orgânica” está na estrutura de quase todo o disco – e, mais do que isso, da própria visão de mundo de Jorge Ben. “Existe toda uma corrente que diz que a alquimia não passa de uma metáfora: que transformar chumbo em ouro é um jeito de falar sobre o desenvolvimento espiritual. Na Idade Média, para além dos processos químicos, se dizia que o real objetivo era a evolução do espírito. Ele levou esse lado em conta também”, explica Kamille Viola.

Os códigos de ‘A Tábua de Esmeralda’

Desde 2008, Viola é parte de um grupo que, tal qual alquimistas medievais, também se dedica a desvendar escritos herméticos.

No caso dela – e de gente como o crítico musical Paulo da Costa e Silva ou do cantor Fred Zero Quatro, vocalista do grupo pernambucano Mundo Livre S/A, além de Susana de Andrade e de muitos pesquisadores amadores facilmente encontráveis em fóruns online –, a busca constante é pelo que Jorge Ben deixou escondido nas composições da sua própria tábua de esmeralda.

“Nosso trabalho é fundamental para mostrar como Jorge não é só um compositor de músicas alegres. Embora não seja muito associado à intelectualidade da MPB, temos o papel de mostrar como ele é fascinante justamente por ir misturando as coisas como se fossem pistas que, no fim, fazem a gente ter a intuição de que há algo maior por trás de tudo”, diz Costa e Silva, autor de Jorge Ben Jor: A Tábua de Esmeralda (Cobogó, 2014), da coleção ‘O livro do Disco’. “É por isso que nossa tarefa é infinita.”

“Sem contar que muitos códigos não foram desvendados. Permanecem esperando gente que ouça o disco e consiga notá-los ainda escondidos”, completa Kamille Viola.

Alguns deles já foram esmiuçados há algum tempo.

O Homem da Gravata Florida, por exemplo, toma a echarpe que Paracelso usava para explorar a percepção de Ben sobre a força do gênio do homem que amalgamou a arte alquímica com um trabalho puramente objetivo, com ramificações na Medicina moderna. Isso fica evidente quando na letra quando se diz que, mais do que uma estética, “essa gravata é o relatório de harmonia de coisas belas”.

Outro código já conhecido é a harmonização que Ben fez do texto primitivo que correu dos tempos imemoriais até hoje sob o nome de “tábua de esmeralda”, fundante da alquimia, atribuída por uma figura chamada, também de lá para cá, de Hermes Trismegisto.

Segundo a tradição filosófica hermética, Hermes (ou Thoth, no Egito) escreveu um conjunto de 24 textos sagrados entre os séculos 2 e 3 d.C., que muito tempo depois foram reunidos em um compêndio chamado Corpus Hermeticum. Neles, Hermes versa sobre a relação da humanidade com o divino, sobre noções de verdade, de bem e beleza e sobre as origens do mundo, entre outras coisas.

Ele receberia a alcunha de “Trismegisto” no século 15, por intermédio de Cosme de Médici, governante de Florença, que encontrou esses manuscritos por acaso e, ao mandá-los traduzir para o latim, a reviveu como tradição religiosa e, então, como filosofia. A palavra significa “três vezes grande”, a leitura florentina de Hemes como “o melhor filósofo, o melhor sacerdote e o melhor rei”.

“É que, já no Egito, Thoth era o senhor do conhecimento mágico e dos segredos divinos colocados à disposição dos deuses e dos homens”, explica a egiptóloga Cíntia Facuri.

Em Hermes Trismegisto E Sua Celeste Tábua de Esmeralda, Jorge Ben tornou música um dos textos mais famosos do que viria a se tornar o Corpus Hermeticum: a “tábua de esmeralda”, que, apesar de ser anunciada como tendo sido escrita “com uma ponta de diamante” em uma “lâmina de esmeralda”, tem a sua primeira existência física, de fato, em um tratado árabe datado de 825 d.C. Mas, sabe-se, ele já é uma tradução de um original perdido nos tempos.

A tábua de esmeralda foi escrita em tópicos, cada um como que afirmando o anterior, até todos conformarem uma explicação definitiva de tudo. A primeira frase do texto, “é verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro”, não aparece na canção de Ben, mas está estampada na capa do álbum.

O segundo tópico funciona como uma síntese do hermetismo alquímico: “o que está embaixo é como o que está no alto, e o que está no alto é como o que está embaixo”.

“Uma das coisas presentes nos livros de Thoth (ou Hermes) é que é possível alcançar um nível de força e controle do mundo terreno através do conhecimento das harmonias celestes – e isso a partir de elementos terrestres”, explica Facuri.

Paulo da Costa e Silva notou um código hermético, da tábua de esmeralda, ainda mais subterrâneo na canção O Homem da Gravata Florida. No primeiro verso, o melisma que Ben canta na última palavra (“Lá vem o home-e-e-em”) é uma contraposição hermética ao que se segue no terceiro verso: “Meu Deus do cé-é-é-u”. Terreno e celeste separados, mas uma coisa só.

“A música dele é muito rica por falar de coisas que são aparentemente malucas, mas que não são, e que exigem uma vida inteira para perceber as conexões”, diz o crítico musical.

A tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto aparece nas imagens da icônica capa do disco, filtrada por um sonho que, para o “muso” de Jorge Ben serviu como revelação.

“A história que se conta é que Flamel sonhou com um conjunto de figuras aleatórias, que iam de alquimistas à relação dos homens com os deuses. Anos depois, ele entrou em uma livraria e, folheando um dos livros, encontrou as mesmas imagens na obra. Ele ficou impressionado. Os textos estavam em uma outra língua, que ele não conhecia, mas dali em diante ele passou a acreditar que havia achado a receita da pedra filosofal”, conta Susana de Andrade.

Para além da veracidade da história, é fato que Flamel preservou as figuras o quanto pode, assim como os alquimistas que vieram depois dele – fazendo com que Ben as descobrisse em um livro alquímico, junto com o relato do sonho, no começo dos anos 1970.

Se alguns são evidentes, outros códigos do disco não são tão claros. Seguem abertos a “decodificadores”.

Em Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas, por exemplo, Jorge Ben descreve um estado de coisas que atravessa desde o modo de vida dos alquimistas (“Eles são discretos e silenciosos/ Moram bem longe dos homens”) até escolhas práticas (“Escolhem com carinho a hora e o tempo do seu precioso trabalho…”). O verso mais intrigante, porém, está quando Jorge canta que eles “evitam qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido”.

“Ele deve ter tirado isso de algum texto”, sugere Susana. “Na Idade Média, os alquimistas eram muito perseguidos e, para realizar todos os seus processos, precisavam se afastar da sociedade. Talvez passe por aí”, continua.

Outra possível explicação é o próprio significado da palavra “sórdido” que, no dicionário Michaelis, diz respeito a pessoas que “agem desonestamente para conseguir alguma coisa”. Seria o oposto da pureza e da paciência necessária para realizar a transmutação objetiva e espiritual presente na cartilha alquímica.

Se tem algum sentido, então outro código se revela imediatamente em Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar, que parece somente uma canção romântica: quando canta o título da música, seguida pela afirmação “eu vou vencer pelo cansaço até você gostar de mim”, Ben pode estar perfeitamente fazendo alusão ao processo alquímico – que depende, como ele mesmo notou na entrevista de 1976, de perseverança.

A mesma faixa traz uma brevíssima referência hermética, sobre quem está no alto e quem está embaixo, semelhante ao melisma de O Homem da Gravata Florida. Na primeira estrofe após o refrão, o eu-lírico canta para uma mulher – ou para um deus: “Ah, mostra-me teu rosto/ Mostra-me teu rosto/ Fazei-me ouvir a tua voz/ Põe estrelas em meus olhos/ Música em meus ouvidos”.

Os livros do disco

Há também um consenso entre pesquisadores da Tábua de Esmeralda sobre os livros que conformam o universo do disco. Um deles é, inequivocadamente, O Mistério das Catedrais, em que Fulcanelli afirma como velhos templos católicos da Europa, sobretudo góticos, guardariam antigos segredos alquímicos. O próprio autor é um mistério, já que morreu sem revelar sua verdadeira identidade.

“É um livro que ajuda a entender a maneira como Jorge leu a alquimia. Ele já disse, inclusive, que usou a tradução da tábua de esmeralda feita por Fulcanelli em trechos de Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda. É uma referência direta”, explica Kamille Viola.

No limite, é possível dizer que a grande influência de Fulcanelli sobre A Tábua de Esmeralda está no método que o autor descobriu e descreveu no livro: tal como alquimistas medievais esconderam seus segredos nos templos, Jorge Ben guardou com cuidado muitos mistérios no interior das canções do disco.

Outra obra que Jorge certamente leu foi Eram Os Deuses Astronautas?, título da edição brasileira de Memórias do Futuro, no original alemão, do escritor suíço Erich von Däniken. Lançado em 1968, vendeu cerca de milhões de cópias no mundo todo.

Em Eram Os Deuses Astronautas?, Däniken sustenta a tese de que seres extraterrestres circularam pelo Terra antes das primeiras espécies humanas, deixando vários artefatos, estruturas e até sinais – como as Linhas de Nazca, no sul do território do atual Peru, ou as estátuas da Ilha de Páscoa, a 3 mil km da costa do Chile, por exemplo – das tecnologias que manejavam. Ele ainda diz na obra que o homo sapiens é resultado tanto de experimentos genéticos quanto de uniões endogâmicas entre esses alienígenas.

Em meados de 1974, Däniken recebia críticas vorazes principalmente da academia, para quem ele não passava de um pseudocientista, enquanto vendia milhões de cópias pelo mundo e via seu livro ser adaptado para o cinema – pelo diretor alemão Harald Reinl, de Carruagem dos Deuses, de 1970.

Jorge Ben entra no assunto em Errare Humanum Est, terceira canção do disco, mas por outra via: conjecturando se a tese de Däniken não seria capaz de provar, de alguma forma, pelo “nosso impulso de sondar o espaço”.

Um dos códigos mais interessantes que Susana de Andrade conseguiu descobrir é o caminho que Ben percorreu para compô-la. Ele teria lido uma série publicada pela editora Melhoramentos no final dos anos 1960 que, além de Eram os Deuses Astronautas?, lançou títulos como Sombras Sobre as Estrelas, Antes dos Tempos Conhecidos e O Planeta Desconhecido, todos do italiano Peter Kolosimo, e De Volta às Estrelas, livro que Däniken escreveu um ano depois de ganhar fama mundial.

Alguns versos de Errare Humanum Est, são montagens feitas com os nomes desses livros. O impulso de sondar o espaço, então, faz sentido “a começar pelas sombras sobre as estrelas”, assim como os deuses de outras galáxias teriam chegado à Terra “antes dos tempos conhecidos”.

“Pouquíssima gente percebeu essa costura”, orgulha-se Susana. Para Paulo da Costa e Silva, o método de Jorge Ben se sobressai a qualquer argumento que a canção possa expressar. “Não é concordar que os deuses eram astronautas. Ele tem uma técnica muito dele de colar coisas de contextos diferentes. É quase um sample”, explica.

Para o crítico musical, um exemplo disso está no verso em que se diz que os tais deuses vieram de “um planeta de possibilidades impossíveis”. “Ele adora fazer isso: criar saturações de sentido para alcançar um estado mais elevado”.

O nome da canção foi tirada de um dos axiomas mais populares da história cristã: de que, se errar é humano, seguir nele é diabólico (do latim “errare humanum est. Perseverare autem diabolicum”), escrito por Santo Agostinho por volta do ano 400 d.C. De alguma forma, é como se Jorge Ben dissesse, pela boca de um dos grandes nomes do dogma católico, que se manter alheio ao mistério da origem humana é uma escolha consciente e equivocada, mas piedosamente compreensível.

Susana de Andrade também guarda com esmero outra decodificação particular, sobre a canção Magnólia. No espectro da carreira de Ben, parecia mais uma composição inspirada em figuras femininas, como Crioula, do disco Jorge Ben, de 1969, ou Maria Domingas, de Negro É Lindo (1971). Mas não: ela também saiu do best-seller de Erich von Däniken.

“Um dos trechos do livro conta sobre a lenda de uma deusa chamada Orjana que desceu em Tiahuanaco [hoje na Bolívia] para se tornar mãe da Terra, vinda das estrelas em uma espaçonave dourada”. Faz todo sentido, já que, na letra, Ben diz que Magnólia “já se encontra a caminho/ Voando numa nave maternal dourada/ Linda e veloz feita de um metal miraculoso”.

Há outro código embutido no próprio nome de Magnólia, mesma palavra que batiza a espécie de flor mais antiga conhecida na botânica terrestre. Ben, então, deixou uma mensagem subterrânea dentro de uma canção superficialmente de amor: que o mundo começou, mesmo, a partir do desembarque de Orjana.

Há ainda campos de referências de outras artes. Em Zumbi, Jorge Ben revisitou imagens feitas pelo pintor francês Johan Moritz Rugendas que, na primeira metade do século XIX, publicou um livro repleto de gravuras sobre o cotidiano da escravidão depois de uma expedição pelo Brasil.

Nelas estão as origens dos escravizados, em ordem: Benguela, Angola, Congo, Monjolo, Cabinda, Quiloa, Rebolla e Mina. É a mesma que aparece no fim da canção, regravada depois por artistas como Caetano Veloso e Ellen Oléria.

Gravura ‘Negros Benguela – Angola – Congo – Monjolo’ – 1835 – Johan Moritz Rugendas | Reprodução Biblioteca Nacional

Para o crítico Paulo da Costa e Silva, é também uma demonstração de que os campos de referência do álbum, na verdade, são uma coisa só.

“Tem ali todo um reconhecimento do nosso peso escravocrata, mas sem perder de vista a possibilidade de cada um transcender por meio de um trabalho pessoal”, diz. “O fascinante é como, em Tábua de Esmeralda, ele encontra, na alquimia, uma resposta para o fardo de ser negro no Brasil do século 20”.

Gravura ‘Negros Cabinda, Quiloa, Rebolla – Mina’ – 1835 – Johan Moritz Rugendas | Reprodução Biblioteca Nacional

O show que nunca aconteceu

Na metade de 2011, durante um show na Urca, no Rio de Janeiro, Jorge Ben Jor surpreendeu a plateia ao anunciar o plano de começar uma turnê tocando apenas A Tábua de Esmeralda. Era um pedido comum nas redes sociais à época, e chegou até o cantor por meio do seu filho mais novo, Gabriel. “Muitos nem eram nascidos quando lancei esse disco”, disse ele ao jornal carioca ‘O DIA’ na ocasião. O projeto, porém, nunca saiu do papel.

Vivendo no Copacabana Palace desde 2018, ele é geralmente visto em eventos dentro do hotel. Nas redes sociais, vez ou outra circulam fotografias de hóspedes com ele – tomando café da manhã ou na borda da piscina. Raramente dá entrevistas, mas costuma atender fãs com carinho.

O último lançamento foi em 2018, no seu canal do YouTube: São Valentin. No ano passado, porém, ele apareceu na trilha sonora do filme Livro de Clarence, produzido pelo rapper Jay-Z, na canção de abertura, All About You.

Segundo amigos, faz alguns anos que ele gravou um disco inteiro, mas o engavetou.

No roteiro do comercial de TV de um banco, lançado em fevereiro, Jorge Ben Jor se vangloria que seus hits serão “cantados pelos seus filhos e pelos filhos dos seus filhos”. Depois, sacramenta-se “indomável pelo tempo”.

É como se admitisse, enfim, o fim de uma busca que começou na Tábua: pela pedra filosofal – ou a vida eterna.

Publicado originalmente pela BBC em 23/04/2024

Por Vinícius Mendes – São Paulo para a BBC News Brasil

Cláudia Beatriz:
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