Por Rollo* [@rollo_ator] — com a clareza de quem não teme expor a realidade, ironia precisa e uma verdade que incomoda mais do que deveria.
Em pleno século XXI, o Rio de Janeiro vive seu próprio coliseu carioco, onde a justiça não é mais aplicada nas salas de tribunal, mas nas ruas, pela mão da população. Em vez de esperar pela polícia, quem presencia um crime muitas vezes assume o papel de juiz, condenando o infrator ao “corretivo” brutal da multidão. A violência se torna o espetáculo, e a vingança, a sentença. Mas até quando esse ciclo de “justiça pelas próprias mãos” continuará a ser a resposta para a insegurança e o desamparo social?
Na Roma Antiga, o Coliseu era o epicentro de uma crueldade sem limites. Os gladiadores, em sua luta pela sobrevivência, dependiam do julgamento de uma multidão ávida por sangue. O Imperador, com um simples movimento do polegar — para cima ou para baixo — decidia se a morte seria o destino dos combatentes derrotados. O espetáculo romano não passava pelas vias formais do direito, mas pela vontade de uma população impiedosa, ávida por violência.
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Hoje, o Rio de Janeiro enfrenta um paradoxo semelhante, um coliseu carioca, onde a justiça das ruas substitui, de maneira brutal, o sistema judiciário formal. Quando um jovem é flagrado cometendo um crime, como um furto ou roubo, a resposta imediata da população não é esperar pela intervenção da polícia ou pelo devido processo legal. Em vez disso, a multidão se reúne para fazer justiça com as próprias mãos. O que começa com um simples espancamento — socos, pontapés e o temido “mata-leão” — pode terminar em morte. E quem tenta intervir? O defensor do infrator se torna alvo da mesma violência, sendo chamado de “defensor de bandido”, com gritos de “Esse povo que ‘defende direitos humanos’ fica é protegendo bandido!” ou “Tá com pena, leva pra casa!”. A justiça popular, alimentada pela indignação, se transforma em um ciclo de vingança e dor, sem espaço para reflexão ou reparação.
Como a História molda o Rio de hoje
O Brasil, em sua trajetória histórica, carrega as marcas profundas da violência e da desigualdade, com raízes no período colonial e na escravidão. Durante o Brasil Colônia, os linchamentos eram comuns, principalmente contra negros e indígenas. A população, muitas vezes com o consentimento tácito das autoridades, se via como legítima para punir aqueles que desafiavam a ordem estabelecida pelas elites. No Brasil Império, essa violência continuou, principalmente contra os negros, tratados como sub-humanos, cujas vidas eram desvalorizadas.
Com a “Abolição” da Escravatura e a formação da República, a desigualdade social persiste, e os linchamentos seguiram, especialmente nas periferias e favelas, locais onde os negros e pobres pobres continuaram a ser alvo de injustiças e violência. Durante a República Velha, o racismo institucional e a repressão aos pobres eram naturais, com a polícia e o sistema judiciário raramente protegendo aqueles que mais precisavam. O que vemos hoje no Rio de Janeiro é o reflexo dessa herança histórica de violência e desconfiança nas instituições.
A população, diante da falência do sistema de segurança pública, começa a acreditar que a única forma de garantir a justiça é por meio da força bruta. A justiça de rua é uma manifestação direta dessa falência. Ao invés de se buscar soluções estruturais, o sistema de justiça se torna apenas uma vítima da violência, sem alternativas reais de recuperação para os jovens infratores.
Jovens na mira: os dados alarmantes de um sistema que falha com os menores
Em 2023, o Levantamento Nacional do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) revelou que mais de 2.800 adolescentes foram apreendidos no Rio de Janeiro, sendo a maioria deles envolvidos em crimes como roubos e furtos. Esses números revelam uma realidade brutal: jovens em situação de vulnerabilidade social, sendo vítimas de um sistema que, em vez de oferecer oportunidades de reabilitação, acaba criminalizando-os e mantendo-os em um ciclo de exclusão e marginalização.
De acordo com a Lei nº 8.069/1990 (ECA), os adolescentes devem ser tratados de forma diferenciada, com foco na ressocialização por meio de medidas socioeducativas como liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade ou internação. No entanto, o sistema socioeducativo no Rio de Janeiro enfrenta desafios graves, como superlotação, falta de recursos e a violência nas unidades de internação.
O próprio DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), responsável pela execução dessas medidas, tem denunciado a precariedade do sistema. Muitas vezes, o processo de reabilitação não ocorre adequadamente, e muitos desses jovens continuam sendo tratados como criminosos, em vez de receberem o apoio necessário para sua reintegração à sociedade.
O Instituto de Segurança Pública (ISP) também destaca que, embora tenha havido uma queda em relação aos anos anteriores, a violência juvenil no Rio continua a ser um problema grave, com muitos jovens ainda sendo vítimas de um sistema que oferece poucas oportunidades e nenhum suporte para a sua recuperação.
O legado e a armação do caos
A sensação de insegurança e a falência do sistema de justiça foram exacerbadas pelos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), cujo legado está marcado pela radicalização da segurança pública e pela armamentização da população. A liberação do porte de armas, a proliferação de Clubes de Caça e Tiro (CACs) e a terceirização da segurança pública fortaleceram uma cultura de justiça armada, onde qualquer cidadão, amparado por um registro, pode adquirir armas de fogo pesadas.
Essa militarização da sociedade contribuiu diretamente para a sensação de que a justiça não depende mais do Estado, mas da força individual. A liberação de armas e a cultura militarista disseminada pelo governo anterior criaram uma atmosfera onde a população, armada, acredita que tem o direito de punir, de decidir quem merece viver e quem deve morrer.
Esse ambiente favoreceu a formação de um Estado paralelo de vigilância e punição, onde grupos paramilitares, milícias e seguranças privados começaram a se sentir empoderados, tomando para si o controle da segurança pública. O reflexo disso é a justiça das ruas, onde a violência é considerada a única resposta possível.
Para quebrar o ciclo de violência
O Rio de Janeiro, ao invés de viver o espetáculo da violência, precisa urgentemente de justiça social. Isso inclui a reintegração dos jovens infratores, a valorização da vida humana e a construção de um sistema de segurança pública que proteja todos os cidadãos, especialmente os mais vulneráveis.
A falência do sistema de justiça e a ausência do Estado de Direito não podem ser a resposta para a violência. O ECA, com seu foco na ressocialização e reinserção dos adolescentes, precisa ser mais do que uma lei escrita: deve ser uma realidade tangível para todos os jovens. Como diz o decano da Assembléia Legislativa do RJ (ALERJ), deputado Carlos Minc, “Cumpra-se!”
A verdadeira transformação começa quando, como sociedade, nos unimos para quebrar o ciclo da violência. Sabemos o quanto é difícil acreditar que podemos realmente mudar algo quando o cenário ao nosso redor parece imutável, quando o medo e a desesperança se tornam companheiros diários. Mas não há transformação sem ação, e o primeiro passo é reconhecer que a mudança depende de cada um de nós.
E o foco dessa ação deve ser em políticas públicas eficazes, que ofereçam alternativas reais ao envolvimento de jovens com o crime. Educação de qualidade, capacitação profissional e acesso a oportunidades de emprego devem ser prioridade. Além disso, é essencial criar centros de apoio psicossocial para adolescentes em conflito com a lei, para ajudá-los a compreender as consequências de seus atos e reconstruir sua visão de futuro.
Programas de justiça restaurativa podem ser uma alternativa poderosa, permitindo que os infratores reparem os danos causados à sociedade por meio de atividades produtivas e colaborativas.
É preciso, também, investir em infraestrutura e serviços públicos nas periferias, onde a marginalização é mais evidente. Saúde, educação e segurança devem ser acessíveis a todos — sem exceção! — para evitar que jovens sigam o caminho do crime por falta de oportunidades.
Essas soluções exigem um compromisso de toda a sociedade, especialmente do Estado, para superar a lógica punitiva e promover a reintegração e o acompanhamento contínuo. Somente assim, poderemos construir um futuro mais justo para todos, quebrando o ciclo da violência e criando um ambiente seguro, onde a justiça não seja feita nas ruas, mas dentro das instituições que devem proteger a todos.
Em Tempo: No mesmo Largo do Machado onde se naturaliza a violência como “corretivo” popular, policiais fardados e armados, em pleno horário de expediente, foram flagrados participando de uma roda de oração de caráter evangélico. O episódio foi denunciado — com imagens — pelo mesmo deputado Minc, que desde então vem sendo alvo de críticas por alguns de seus pares, no plenário da ALERJ e de ataques violentos de haters nas redes sociais.
A reação só reforça a importância do alerta: o Estado deve, por obrigação constitucional, ser laico. Misturar fé com farda, culto com função pública, não apenas viola a laicidade, mas também abre espaço para um perigoso avanço da teocracia disfarçada de devoção coletiva.



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