O que até ontem pertencia ao reino da ficção científica pousou suavemente no solo de Dubai neste domingo, 12 de outubro de 2025. Mas não se engane: o espetáculo não foi para todos. Foi uma festa privada do 1%.
Sob o olhar atento de autoridades e, claro, de investidores multibilionários, um veículo que minutos antes rodava no asfalto desacoplou seu módulo aéreo, subiu verticalmente e cortou o horizonte da cidade. Não foi um trailer de filme. Foi a demonstração pública e histórica do mais novo carro voador da XPENG AEROHT, o braço de inovação da gigante de veículos elétricos XPENG.
Mais do que um voo de teste, o evento simbolizou o início de uma nova era na mobilidade aérea de baixa altitude. Uma era, no entanto, que escancara o abismo social do nosso tempo. Consolidou-se ali uma parceria tecnológica multibilionária no Oriente Médio, provando que o capital não tem pátria, mas sempre encontra seus pares.
O protagonista do dia não é apenas um “carro que voa”. É um conceito modular batizado com a grandiloquência que só o hipercapitalismo pode conceber: “Porta-Aviões Terrestre”.
A estrutura é uma engenhosa combinação de um veículo terrestre robusto, apelidado de “nave-mãe”, e um módulo aéreo destacável. Diante do público selecionado, a máquina realizou a sequência completa: o desprendimento e, após o voo, a reconexão. A precisão e a estabilidade da aeronave impressionaram, mostrando que a transição entre solo e ar pode, de fato, ser uma realidade prática.
Mas para quem? A promessa é clara e profundamente reveladora: um futuro onde os congestionamentos urbanos são um problema que se resolve “olhando para cima”.
Esta é a lógica final do neoliberalismo. Não se trata de resolver o congestionamento com transporte público de massa, eficiente e barato. Não se trata de redesenhar cidades para o bem-estar coletivo. Trata-se de criar uma rota de fuga individual, aérea e exclusiva, para que a elite possa, literalmente, passar por cima dos problemas que ela mesma criou. O congestionamento fica para os que rodam no asfalto, na “nave-mãe” que fica para trás.
O que mais chamou a atenção foi a simplicidade da operação, desenhada não para técnicos, mas para consumidores de luxo. A XPENG AEROHT demonstrou duas formas de pilotagem que eliminam a complexidade das aeronaves tradicionais:
- Modo Automático: Com apenas um toque, o sistema de planejamento inteligente assume. Ele calcula a rota, realiza a decolagem, executa o voo e pousa sozinho. A automação completa para quem não pode perder tempo nem com o ato de dirigir.
- Modo Manual: Para quem prefere assumir os comandos, a experiência se assemelha a um videogame de alta tecnologia. Um único controle de alavanca, que pode ser operado com apenas uma mão, concentra six operações diferentes, permitindo um manejo ágil e intuitivo.
Ao final da demonstração, o piloto acenou para a multidão, e a atmosfera era de otimismo palpável. O otimismo de quem sabe que seu lugar no futuro está garantido, bem longe do chão. O futuro parecia ter acabado de estacionar na garagem dos bilionários.
Este evento estava longe de ser apenas simbólico. A demonstração em Dubai foi um movimento comercial estratégico. A cortina de fumaça da “inovação” esconde o verdadeiro motor: o lucro.
A XPENG AEROHT confirmou ter recebido 600 encomendas firmes do modelo “Porta-Aviões Terrestre” provenientes da região do Oriente Médio. Seiscentos indivíduos ou corporações que terão o privilégio de sobrevoar o trânsito comum.
Este número representa, de longe, a maior venda internacional da companhia até o momento e sinaliza que a demanda por essa tecnologia já não é especulativa. Ela é real, financiada por uma classe que acumulou tanto capital que seu único problema é como se mover de forma mais rápida entre seus complexos de luxo.
O fundador da XPENG AEROHT, Zhao Deli, que acompanhou tudo de perto e fez questão de abrir as portas do veículo para a imprensa, explicou por que Dubai foi o palco de estreia. Segundo ele, a cidade foi a escolha decisiva pela sua notória abertura à inovação.
Entenda-se “abertura à inovação” como um eufemismo para um paraíso desregulado, com forte apoio governamental a novas tecnologias (desde que sirvam ao capital) e por uma demanda local genuína por soluções de transporte futuristas (leia-se: uma concentração de riqueza que anseia por novos símbolos de status).
Zhao revelou que a empresa não pretende parar na demonstração: o plano é lançar oficialmente o carro voador no mercado regional até 2027. O relógio está correndo para a nova segregação urbana: a vertical.
A importância do evento foi além da esfera corporativa, tocando a diplomacia do capital. A cônsul-geral da China em Dubai, Ou Boqian, presente na cerimônia, fez questão de destacar a profundidade da cooperação entre os dois países.
Ela afirmou que tanto a China quanto os Emirados Árabes Unidos enxergam a ciência e a tecnologia como pilares fundamentais do crescimento econômico. Para a cônsul, essa visão compartilhada cria um “ambiente fértil” para novos investimentos e colaborações estratégicas.
O que vemos não é uma cooperação Sul-Sul em prol dos povos, mas uma aliança entre o capitalismo de estado chinês e o petro-capital das monarquias do Golfo. É um “ambiente fértil” para negócios, onde a tecnologia é o pilar do crescimento econômico, mas silencia-se sobre quem colhe os frutos desse crescimento.
O voo bem-sucedido não apenas reforça o protagonismo da China na corrida global pelas aeronaves de baixa altitude, mas também prova que a mobilidade aérea urbana está saindo do papel. O problema é para quem ela está saindo do papel.
Em Dubai, o horizonte acaba de ganhar asas. Mas não se iluda: essas asas não são para todos. São a mais nova e sofisticada barreira entre os que têm e os que não têm


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