O que é vendido como democratização do conhecimento pode ser, na prática, o novo rosto do velho colonialismo tecnológico
A cena em Budondo, Uganda, é profundamente simbólica. Elly Ntonde, um jovem de 18 anos, compra um pacote de 100MB de dados – uma pequena fortuna em um local sem água encanada e com energia instável – para consultar o ChatGPT sobre uma dúvida de química. Ele encapsula a dualidade do nosso tempo: a existência de uma inteligência artificial capaz de acessar o conhecimento acumulado da humanidade, ao lado da persistência brutal de um abismo social que nega o básico a bilhões. A pergunta que se impõe não é se a IA pode democratizar o conhecimento, mas para quem e sob quais condições esta suposta democratização está sendo construída.
A narrativa hegemônica, é claro, é a do “salto tecnológico”. Tal como os celulares pularam as linhas telefônicas fixas, a IA pularia décadas de investimento público em educação, saúde e infraestrutura. É uma visão sedutora para os palácios de Davos: a ideia de que a tecnologia, por si só, pode corrigir as distorções históricas do colonialismo e do capitalismo neoliberal. Os dados, no entanto, contam uma história mais complexa e revelam que, sem uma profunda mudança estrutural, a IA não só fracassará em promover a igualdade, como pode aprofundá-la.
O Mito da Neutralidade Tecnológica e a Tirania da Conectividade
O primeiro grande obstáculo, o acesso à internet, é um problema intencional. Não é uma fatalidade, mas o resultado de um sistema que trata a conectividade como uma mercadoria e não como um direito. Enquanto 90% dos cidadãos dos países ricos estão online, nos países pobres essa taxa é de apenas 25%. Em Uganda, Elly Ntonde precisa despender recursos escassos para comprar dados, um imposto regressivo sobre o conhecimento. A ironia é que uma consulta ao ChatGPT é, de fato, muito mais barata em dados do que uma página do Google. Mas “mais barato” não é sinônimo de “acessível” quando se vive na pobreza.
Aqui reside a contradição fundamental: a infraestrutura digital global foi moldada por interesses corporativos que priorizam o lucro sobre a universalização. As tentativas de contornar essa lógica, como oferecer IA via SMS, esbarram nas tarifas extorsivas das operadoras. A “mão invisível do mercado”, longe de fornecer a solução, é a própria causa do estrangulamento. A verdadeira revolução não seria colocar um tutor no bolso de cada criança, mas garantir banda larga pública, universal e gratuita como um bem comum. Sem isso, a IA será apenas mais um privilégio para poucos.
O Fator Humano e a Pedagogia da Desigualdade
A segunda barreira expõe as feridas abertas por um projeto de sociedade excludente. Como pode uma criança que não consegue ler um texto simples, fruto do desmonte da educação pública, dialogar de forma crítica com um modelo de linguagem? O estudo com os empreendedores quenianos é um alerta crucial: a IA amplifica as desigualdades pré-existentes. Quem já tem capital cultural e sabe “fazer a pergunta certa” lucra; quem está à margem recebe conselhos genéricos que podem arruinar seu negócio.
A visão de que a IA substituirá a escola e o professor é uma fantasia perigosa da tecnocracia. Em Budondo, os jovens usam a IA principalmente para criar retratos no estilo Ghibli para as redes sociais. É o entretenimento, e não a emancipação, que se torna o uso primário. Isto não é uma falha de caráter, mas a materialização de um sistema que oferece migalhas de inovação sem fornecer as ferramentas para a autonomia. A IA, nesse contexto, não é um professor, mas um novo ópio, uma distração digital que mascara a falta de perspectivas reais.
A Burocracia e a Resistência das Estruturas
O terceiro e mais formidável obstáculo é a institucionalidade. A história está repleta de “tecnologias milagrosas” que falharam porque desconsideraram as estruturas de poder. O caso dos MOOCs é emblemático: cursos online não integraram o sistema público de ensino e, por isso, fracassaram em educar as massas. O exemplo da Índia, onde um algoritmo identificou milhares de empresas fantasmas que a autoridade não tinha interesse em fiscalizar, é a metáfora perfeita. A tecnologia mais avançada é impotente contra a corrupção sistêmica e a lógica perversa de um Estado muitas vezes capturado por interesses privados.
A IA não opera no vácuo. Ela será absorvida por um mundo onde a produtividade é sinônimo de exploração e onde o desenvolvimento é medido pelo PIB, e não pelo bem-estar coletivo. A promessa de um “salto de produtividade” soa vazia quando sabemos que, nos países centrais, onde a tecnologia é mais densa, a desigualdade social só faz aumentar. A adoção “superficial” da tecnologia nos países pobres, citada no estudo de Comin e Mestieri, não é um acidente. É a forma como o capital a utiliza: para extrair valor, não para construir soberania.
Conclusão: Por Uma IA dos Povos
O sucesso da IA não será medido pela nota de química de Elly Ntonde. Será medido pela sua capacidade de fortalecer serviços públicos, empoderar comunidades e redistribuir riqueza. Os projetos comunitários como Masakhane, que lutam para treinar IAs em línguas africanas, mostram o caminho: uma tecnologia decolonizada, construída de baixo para cima.
A revolução da IA em Uganda e no Brasil não virá de uma parceria filantrópica da OpenAI. Virá da luta por um Estado forte e investidor, que trate a conectividade como um direito, a educação como um pilar e a saúde como inegociável. A inteligência artificial, sozinha, é apenas um espelho. Ela refletirá e amplificará as contradições da sociedade que a criou. Se quisermos que ela seja uma ferramenta de libertação, teremos que lutar primeiro por uma sociedade mais justa. Caso contrário, a promessa de Budondo será apenas mais um conto de fadas tecnológico para adormecer os excluídos.


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