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Os salvadores chineses e o naufrágio do sonho europeu

Existe uma ironia sombria, quase teatral, em ouvir o evangelho do apocalipse industrial da boca de um dos seus maiores arquitetos. Carlos Tavares, o executivo português de 67 anos, está de volta. Quase um ano após sua saída conturbada da Stellantis — o conglomerado de US$ 50 bilhões que ele mesmo forjou unindo Peugeot, Jeep […]

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"Muitas boas oportunidades estão surgindo para os chineses", disse o ex-CEO da Stellantis, Carlos Tavares / Reprodução

Existe uma ironia sombria, quase teatral, em ouvir o evangelho do apocalipse industrial da boca de um dos seus maiores arquitetos. Carlos Tavares, o executivo português de 67 anos, está de volta. Quase um ano após sua saída conturbada da Stellantis — o conglomerado de US$ 50 bilhões que ele mesmo forjou unindo Peugeot, Jeep e Fiat —, o ex-CEO retorna não como um líder arrependido, mas como um profeta do inevitável.

E a profecia é clara: a China vem para dominar.

Em suas memórias recém-lançadas e em entrevistas bombásticas, Tavares não pinta um cenário de competição; ele pinta um cenário de rendição. Ele prevê que gigantes como BYD e Geely serão, em 10 ou 15 anos, os “salvadores” das fábricas e dos empregos na Europa.

É uma “salvação” que soa terrivelmente como uma conquista.

A visão de Tavares é a do capitalismo em sua fase mais pura e predatória. Ele descreve, com uma honestidade brutal, o modus operandi dessa tomada de poder. Não será uma invasão com tanques, mas uma aquisição por asfixia.

Segundo o executivo, as montadoras ocidentais, sufocadas pelas regulamentações que elas mesmas tentaram adiar por décadas e pelos custos de uma eletrificação mal planejada, começarão a cambalear. É o roteiro perfeito da crise cíclica.

“No dia em que uma montadora ocidental estiver em sérias dificuldades, com fábricas à beira do fechamento e manifestações nas ruas”, prevê Tavares, “uma montadora chinesa virá e dirá: ‘Eu assumo e mantenho os empregos’, e será considerada salvadora.”

O que Tavares descreve não é uma falha do sistema; é o sistema funcionando perfeitamente. O capital ocidental falha em garantir o emprego e a estabilidade social, e o capital oriental, mais agressivo e estratégico, preenche o vácuo. Os trabalhadores, como sempre, são o prêmio de consolação na negociação, usados como escudo social para justificar a transferência de poder. A Nissan e a Renault, que já flertam com parcerias chinesas em suas fábricas, são apenas o início.

Para um homem que comandou um império global com mão de ferro, Tavares é rápido em encontrar um culpado externo para a vulnerabilidade que ele mesmo ajudou a consolidar. O alvo? A União Europeia.

O ex-CEO dispara contra a “estupidez” e o “enorme desperdício” de Bruxelas, culpando a insistência na eletrificação forçada por sua própria queda (em meio a um colapso de vendas) e pelo enfraquecimento da indústria. Ele lamenta os “€ 100 bilhões em investimentos que não serão utilizados” na transição para os elétricos puros, prevendo que a UE abandonará a meta de 2035.

É uma acusação conveniente. Tavares convenientemente omite que a indústria automobilística europeia passou décadas lucrando com motores a combustão poluentes, fazendo lobby feroz contra qualquer mudança e tratando a transição climática como um problema para o futuro. O futuro chegou, e a conta também. Os € 100 bilhões que ele lamenta não são um desperdício da UE; são o custo da arrogância corporativa e da falta de visão estratégica do próprio setor, que foi pego de surpresa pelo avanço chinês.

A ironia suprema, claro, é que o próprio Tavares, antes de sair, selou um acordo com a chinesa Leapmotor. A Stellantis adquiriu 20% da empresa para ajudá-la a expandir.

Questionado sobre a contradição de alimentar a potência que, segundo ele, destruirá o Ocidente, a resposta de Tavares é o resumo da lógica do capital: “O motivo é simples: eles querem nos engolir algum dia”. Ele sabia. E, mesmo assim, fez o acordo. Porque, no fim do dia, o lucro imediato da fusão supera a soberania industrial de longo prazo.

Onde a análise de Tavares realmente se despe de qualquer verniz social é em seu livro, “Um piloto na tempestade”. Ali, ele adota o tom “darwiniano” tão caro aos executivos de topo: o mundo é uma selva, e apenas os mais fortes (ou maiores) sobreviverão.

Ele prevê um banho de sangue corporativo onde sobrarão apenas cinco ou seis gigantes: Toyota, Hyundai, BYD e “provavelmente” outra chinesa.

E os ocidentais? A Volkswagen, segundo ele, representa a “incapacidade de mudança”. A Tesla será “completamente ultrapassada”. E a Stellantis, sua própria criação, opera com três fábricas a mais do que deveria na Europa (um eufemismo para demissões em massa que ele não precisou executar).

Essa visão de mundo fria talvez fosse mais palatável se não viesse do homem que dedicou um capítulo inteiro de suas memórias para defender seu salário.

Em 2023, ano em que as vendas colapsavam e a “tempestade” se formava, Carlos Tavares embolsou € 36,5 milhões. Um valor que provocou a ira de sindicatos e acionistas. Sobre isso, o piloto “darwiniano” não tem “nenhum arrependimento” e não está em modo de “autoflagelação”.

É o retrato perfeito da desconexão da elite executiva: prever “manifestações nas ruas” por fechamento de fábricas, culpar a regulação pública pela crise e, simultaneamente, justificar ganhos milionários que um trabalhador das fábricas que ele mesmo julga “excedentes” não ganharia em mil vidas.

Talvez a passagem mais honesta de toda a sua análise, no entanto, seja sua rara admissão sobre a cultura do setor. O motivo de decisões tão catastróficas?

“[Um] dos problemas da indústria automobilística era que ‘como eu, seus chefes têm egos e personalidades infladas e querem mostrar aos amigos que estão certos’.”

Aqui está. O destino de centenas de milhares de empregos, o futuro industrial de um continente, a resposta a uma crise climática… tudo isso reduzido a um jogo de egos entre homens ricos para provar quem “está certo”.

Hoje, Carlos Tavares investe em Portugal, seu país natal. Longe da tempestade que ele ajudou a navegar diretamente contra o iceberg. Ele afirma que só voltaria ao comando de uma montadora se tivesse uma “participação acionária massiva”.

É outra forma de dizer que o piloto só volta se for também o dono do cassino. Para os trabalhadores que ficam na fábrica, resta apenas esperar pelo “salvador” chinês que seu antigo chefe previu — e para o qual ele abriu a porta.

Com informações de Financial Times*

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