Carlos Tavares vê nas montadoras chinesas o duplo papel de salvadoras e predadoras de uma Europa enfraquecida por políticas ambientais e crise industrial
A presença das montadoras chinesas na Europa está crescendo em ritmo acelerado — e, segundo o ex-presidente da Stellantis, Carlos Tavares, esse avanço poderá transformar completamente o setor automotivo do continente. O executivo português, que comandou o grupo responsável por marcas como Peugeot e Jeep, acredita que as empresas de Pequim acabarão sendo vistas como “salvadoras” das fábricas e dos empregos europeus, enquanto, na prática, estarão consolidando um domínio que pode levar ao declínio de fabricantes ocidentais tradicionais.
Em entrevista ao Financial Times, Tavares fez um alerta: “Muitas oportunidades interessantes estão surgindo para os chineses. No dia em que uma montadora ocidental estiver em sérias dificuldades, com fábricas à beira do fechamento e manifestações nas ruas, uma montadora chinesa virá e dirá: ‘Eu assumo e mantenho os empregos’, e será considerada salvadora.”
O ex-CEO, que deixou a Stellantis há cerca de um ano após um conflito interno na diretoria, traçou um panorama sombrio para as montadoras europeias. Segundo ele, o setor enfrenta um ambiente hostil, pressionado por regulamentações ambientais rígidas, mudanças nas políticas de eletrificação e pela crescente guerra comercial global.
Tavares acredita que, nos próximos 10 a 15 anos, as empresas chinesas não apenas expandirão sua presença na Europa, mas também começarão a adquirir fábricas e aumentar participações em grupos locais. Essa movimentação, afirma, já começou: marcas como BYD, Geely e Leapmotor estão rapidamente conquistando espaço em mercados estratégicos como Reino Unido, França e Alemanha, oferecendo veículos elétricos e híbridos avançados a preços competitivos — mesmo com tarifas de importação mais altas impostas por Bruxelas.
A própria Stellantis, durante a gestão de Tavares, firmou uma parceria com a chinesa Leapmotor, adquirindo 20% do grupo e ajudando-o a ingressar em mercados internacionais. “O motivo é simples: eles querem nos engolir algum dia”, reconheceu o executivo, que afirmou ter sido procurado por várias companhias chinesas interessadas em tê-lo como conselheiro ou gestor.
Outras alianças também ilustram essa tendência. A Renault se uniu à Geely para desenvolver motores a combustão, enquanto a Nissan avalia permitir que sua parceira Dongfeng produza veículos em sua fábrica de Sunderland, no Reino Unido.
Tavares deixou a Stellantis após conduzir a fusão bilionária entre a francesa PSA e a italiana Fiat Chrysler Automobiles, concluída em 2021. A operação, avaliada em cerca de US$ 50 bilhões, deu origem a um dos maiores grupos automotivos do mundo. No entanto, as dificuldades nas vendas tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e o debate interno sobre a velocidade da transição para os veículos elétricos acabaram levando à sua saída.
O ex-presidente critica duramente as políticas ambientais da União Europeia, que determinam o fim da venda de carros a combustão até 2035. Para ele, a medida representa “um enorme desperdício e uma estupidez”, pois ignora outras tecnologias viáveis, como os híbridos. “Quem vai responsabilizar a UE pelos € 100 bilhões em investimentos que não serão utilizados? Ninguém”, questionou.
Mesmo após sua saída, Tavares mantém uma visão crítica e provocadora sobre o futuro do setor. Ele acredita que apenas cinco ou seis montadoras sobreviverão globalmente nas próximas décadas, citando Toyota, Hyundai, BYD e possivelmente Geely como as principais candidatas. Já a Tesla, segundo ele, acabará “ultrapassada pelas fabricantes chinesas”, com Elon Musk provavelmente voltando sua atenção para outros projetos.
Em seu livro recém-lançado, Un Pilote dans la Tempête (“Um piloto na tempestade”), o executivo dedica um capítulo à defesa de seu polêmico salário na Stellantis — que chegou a € 36,5 milhões em 2023 e gerou críticas entre sindicatos e acionistas. Tavares, conhecido por sua postura rigorosa na redução de custos e por prever um “desfecho darwiniano” para o setor, não poupa críticas nem mesmo a gigantes como a Volkswagen, que, segundo ele, simboliza “a incapacidade de mudança da Europa”.
Apesar de seu tom pessimista, Tavares afirma não guardar arrependimentos. “Não estou em modo de autoflagelação”, disse, com ironia. E completou, numa autocrítica à cultura corporativa do setor: “Um dos problemas da indústria automobilística é que, como eu, seus chefes têm egos e personalidades infladas e querem mostrar aos amigos que estão certos.”
Atualmente investindo em empresas em Portugal, seu país natal, Tavares diz que só voltaria à indústria automobilística se tivesse participação acionária relevante em qualquer empresa que voltasse a dirigir. “Impus uma condição impossível para essa ideia — que é outra forma de dizer que não vou fazê-la”, concluiu.
Enquanto isso, o alerta ecoa entre os bastidores da indústria europeia: na tentativa de manter empregos e fábricas abertas, o continente pode estar abrindo as portas para que a China, com sua força tecnológica e estratégica, se torne a verdadeira dona do futuro automotivo europeu.


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