Senadores já trabalham com a possibilidade concreta de restabelecer o texto original do governo federal caso o PL Antifacção chegue ao Senado com problemas. A avaliação é direta: se a Câmara entregar uma versão confusa, remendada e juridicamente frágil, a Casa deve simplesmente reinstalar o projeto elaborado pelo Ministério da Justiça.
Entre lideranças, consolidou-se a percepção de que a Câmara se tornou uma “usina” de erros técnicos e recuos improvisados, o que transformou o Senado na barreira institucional final contra propostas mal estruturadas. Esse incômodo vinha crescendo nos bastidores e explodiu nas últimas semanas. Senadores afirmam que a condução do presidente da Câmara, Hugo Motta, segue um padrão desgastado, marcado por pouco diálogo, muita pressão e idas e vindas que transformam qualquer pauta sensível em crise política. As alterações contínuas feitas pelo relator Guilherme Derrite reforçaram a impressão de que o texto não chega ao Senado com solidez jurídica nem lastro político.
A leitura predominante é que, se a Câmara insistir em enviar um texto instável, contraditório ou desconectado do marco legal, a solução será retornar ao projeto original do Executivo. Para senadores influentes, esse movimento não seria apenas uma correção técnica, mas um gesto de afirmação institucional e um recado claro à Câmara.
Renan Calheiros acompanha de perto o avanço do projeto e é uma das vozes mais ativas no tema. Ex-ministro da Justiça e defensor da separação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública em duas pastas distintas, ele sustenta que o Estado precisa de estruturas próprias e coordenadas para enfrentar organizações criminosas. Sua experiência e visão histórica o colocaram no centro das articulações em torno do PL Antifacção.
Recentemente, Renan adotou a estratégia de mostrar que, quando o Senado impõe limites, a Câmara costuma recuar. O caso mais emblemático foi o enterro do PL da Blindagem, que caiu após articulação direta dele e de Otto Alencar com a bancada do MDB, e virou referência interna do poder de contenção do Senado.
Na semana passada, ao comentar a aprovação do projeto do Imposto de Renda, ele reforçou publicamente o papel institucional da Casa: “O projeto só andou após a ação política do Senado Federal e as manifestações públicas. […] O Senado, desta forma, reitera seu compromisso com o interesse público e não com agendas de nichos, grupos e até pessoas. Em vários episódios, este ano, este Senado, de maneira eloquente, repetiu que não é uma Casa Legislativa para reciclar resíduos autoritários e privilégios indefensáveis.” A declaração sintetizou o sentimento predominante entre as lideranças.
Há um cansaço evidente entre os senadores, que afirmam ser recorrente a necessidade de “arrumar a bagunça” produzida pelas articulações de Hugo Motta. Nos bastidores, avalia-se que a Câmara não teria condições políticas de insistir em alterações desgastadas publicamente e que o relator Guilherme Derrite enfrenta isolamento crescente por conduzir a tramitação sem diálogo interno.
A votação está marcada para a próxima terça-feira, após uma semana de adiamentos sucessivos e sucessivas versões do relatório. Governadores de direita pressionaram, líderes da oposição reclamaram da falta de diálogo e setores da própria base criticaram Derrite pela condução do debate. A pressão se acumulou a ponto de consolidar a percepção de que caberá ao Senado desfazer parte do desgaste político produzido na Câmara.
O projeto original, assinado por Lula em 31 de outubro de 2025 e enviado em regime de urgência, atualizava a Lei de Organizações Criminosas e criava a figura jurídica da “facção criminosa”, com pena de 8 a 15 anos nos casos de domínio territorial ou econômico mediante violência ou coação. Homicídios cometidos por ordem de facções seriam enquadrados como crimes hediondos, com penas de 12 a 30 anos. O texto ampliava ferramentas de investigação, autorizando infiltração policial, colaboração, acesso a dados de geolocalização em situações de risco e criava o Banco Nacional de Facções Criminosas, destinado a integrar informações de inteligência.
O projeto previa ainda o afastamento de agentes públicos envolvidos com facções por decisão judicial e a proibição de contratar com o poder público por 14 anos para condenados. Na frente financeira, buscava asfixiar o poder econômico desses grupos por meio de apreensão de bens, bloqueio de operações suspeitas e intervenção em empresas usadas para atividades ilícitas. No sistema prisional, autorizava o monitoramento do parlatório e permitia transferências emergenciais de presos sem autorização judicial prévia em casos de motim. Também reforçava a cooperação internacional sob coordenação da Polícia Federal e permitia a participação do setor privado na produção de provas em situações específicas.
Esse é o desenho original que parte expressiva do Senado considera restabelecer caso o texto vindo da Câmara seja considerado tecnicamente insustentável e politicamente inviável.