Por Boris Herrmann, Nova York
Texto publicado originalmente no Süddeutsche Zeitung
Há muito tempo os EUA não se intrometiam de forma tão descarada nos assuntos internos de um país latino-americano como agora no Brasil. Mas ninguém desafia Trump atualmente de forma tão aberta quanto o presidente Lula.
O que acontece, afinal, quando alguém se recusa a se curvar? Quando não se arrasta aos pés de Donald Trump, mesmo depois de ele lançar mais uma de suas infames ameaças? O que acontece quando alguém demonstra espinha dorsal, defende o bom senso e diz a verdade ao homem da Casa Branca: “O comportamento do presidente Trump contraria todos os padrões de negociação e diplomacia”?
Tornou-se algo extraordinário alguém ousar dizer o óbvio. Por isso mesmo, é um experimento interessante o que Luiz Inácio Lula da Silva está fazendo.
O presidente do Brasil rejeita a interferência de Trump nos assuntos internos de seu país. Embora a palavra “interferência” seja até nobre demais para descrever o que o presidente dos EUA está fazendo.
Os EUA querem forçar o fim de um processo contra o ex-presidente Bolsonaro
A Casa Branca impôs tarifas abusivas ao Brasil e sanções a um juiz brasileiro porque o Supremo Tribunal Federal se recusa, a mando dos EUA, a encerrar o processo penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Muitos brasileiros acham que, entre todas as ousadias que Trump já cometeu em seu segundo mandato, essa é uma das mais descaradas.
Começa pelo fato de Trump aparentemente presumir que o presidente brasileiro poderia simplesmente parar um processo judicial. “Talvez ele não saiba que o Judiciário aqui no Brasil é independente”, disse Lula recentemente em entrevista ao New York Times. Talvez Trump realmente pense que as coisas funcionam como nos Estados Unidos de hoje, onde o governo pode encerrar processos contra invasores do Capitólio, prefeitos corruptos ou até contra o próprio presidente, conforme sua conveniência.
Mas há também razões de conteúdo pelas quais Brasília rejeita a intervenção vinda de Washington. Jair Bolsonaro, presidente de janeiro de 2019 a janeiro de 2023, é acusado de tentativa de golpe. Ele responde por praticamente os mesmos crimes atribuídos antes a seu grande ídolo, Donald Trump. Bolsonaro se recusou a aceitar sua derrota na eleição de 2022 contra Lula e teria então planejado um golpe, o ataque a Brasília.
Do desejo absurdo à realidade
O que foi o 6 de janeiro de 2021 nos EUA é, para os brasileiros, o 8 de janeiro de 2023. As imagens de hordas selvagens invadindo o Parlamento e destruindo os símbolos da democracia são assustadoramente parecidas.
Mas há uma diferença crucial: Trump não foi responsabilizado pelo ataque de seus apoiadores ao Capitólio — ao contrário, tenta reescrever a história ao declarar o 6 de janeiro como “o Dia do Amor”. Já Jair Bolsonaro corre o risco de pegar décadas de prisão. Entre as acusações, está a de que teria tido conhecimento de um complô para assassinar Lula.
Em janeiro, Bolsonaro convocou publicamente Trump a pressionar a Justiça brasileira em seu favor. O que na época soava como um desejo absurdo, virou realidade. A Casa Branca agora acusa o governo brasileiro de “perseguição política” e “graves violações de direitos humanos” — referindo-se ao processo contra Bolsonaro. “É uma caça às bruxas”, escreveu Trump nas redes sociais. “Aconteceu comigo também — e dez vezes pior.” Ou seja: o presidente dos EUA não esconde que vê sua tentativa de intervir na soberania do Brasil como uma extensão pessoal de sua campanha de vingança.
Provavelmente os EUA não tentavam de forma tão aberta desestabilizar a democracia de um país latino-americano desde o fim da Guerra Fria. E provavelmente não há hoje outro chefe de Estado ocidental tão disposto a enfrentar Washington como Lula. Na semana passada, ele disse que, se o ataque ao Capitólio tivesse ocorrido no Brasil, Trump também estaria sendo processado — exatamente como Bolsonaro.
Dois presidentes que se acham insubstituíveis
Lula contra Trump, Trump contra Lula — esse é um duelo interessante, independentemente das tarifas do dia. Tanto o terceiro quanto o quinto maior país do mundo são governados por homens que se consideram insubstituíveis.
No canto esquerdo: o ex-líder sindical Lula, que nos tempos áureos de seu governo (2003 a 2011) foi considerado um ícone da esquerda mundial. Barack Obama chegou a dizer: “I love this guy”. Mas Lula nunca conseguiu formar um sucessor forte — e muitos dizem que ele sequer tentou. Agora, quer se candidatar novamente.
No canto direito: Donald Trump, ex-estrela de reality show e magnata do setor imobiliário, que conseguiu convencer os americanos a confiar a Casa Branca a alguém aparentemente totalmente despreparado para o cargo — e isso duas vezes. Ainda não está claro se ele buscará um terceiro mandato, mesmo que para isso precise continuar a driblar a Constituição. E uma coisa é certa nesse duelo: ambos têm 79 anos, mas não parecem estar cansados. É, também, um embate de dinossauros.
Qual será o desfecho?
Se as tarifas de 50% impostas por Trump continuarem valendo, tanto a economia brasileira quanto os consumidores americanos vão sofrer. Cerca de um terço do café consumido nos EUA vem do Brasil. Em supermercados de Nova York já se vê pacotes de 340g custando mais de 20 dólares.
Popularidade de Lula cresce
Até agora, o embate político tem favorecido Lula. Ao se posicionar com firmeza contra o ataque ao Supremo Tribunal Federal, o presidente transmite à maioria dos brasileiros a sensação de que está defendendo a democracia — e, com isso, seus valores, sua dignidade e seu orgulho nacional. Bolsonaro, por outro lado, começa a ser ridicularizado como fantoche de Trump e traidor da pátria.
Mesmo assim, Lula ainda tenta manter o diálogo: segundo informações, ele tentou ligar várias vezes para Trump, que não quis atender. Isso mostra que Lula não está agindo por ideologia, mas sim por convicção. Seus índices de aprovação têm melhorado. O cientista político José Álvaro Moisés disse ao jornal Folha de S.Paulo: “Trump já prestou um favor à campanha de reeleição de Lula”.
Apesar disso, a situação é perigosa para Lula. Agora ele não pode mais recuar — não sem comprometer sua credibilidade, por maior que seja a pressão. E uma coisa é inegável: Donald Trump tem um histórico de esmagar qualquer um que o desafie.


Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!