A medida cria proteção legal para presidentes de partidos e parlamentares, limitando ações da Justiça e aumentando a impunidade estrutural
Na madrugada desta terça-feira (16), enquanto o país dormia ou lutava para sobreviver à inflação, ao desemprego e à fome, a Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos e quase às escondidas, uma bomba-relógio contra a democracia brasileira: a Proposta de Emenda à Constituição 3/21, conhecida como “PEC da Blindagem”. O nome não poderia ser mais apropriado. Trata-se de uma blindagem não contra inimigos externos, mas contra a própria Justiça — e, mais grave ainda, contra o povo brasileiro.
Com 353 votos no primeiro turno e 344 no segundo — números que ultrapassam com folga os 308 necessários —, a proposta avança como um tanque sobre os escombros da ética pública. E o fez de forma atropelada: um requerimento aprovado na calada da noite dispensou o intervalo regimental de cinco sessões, permitindo que a votação ocorresse no mesmo dia, perto da meia-noite. Não foi acidente. Foi estratégia. Quanto menos visibilidade, menos resistência. Quanto menos debate, mais fácil enganar a opinião pública.
Leia também:
O que a PEC da Blindagem esconde e ninguém contou
Trump quer causar constrangimento ao Brasil na ONU
A xícara amarga da política tarifária de Trump
O que essa PEC faz? Em resumo: amplia o foro privilegiado — ou, como deveríamos chamar com honestidade, o “foro de impunidade” — para além dos parlamentares. Agora, presidentes de partidos políticos também terão direito a esse escudo jurídico-aristocrático. Ou seja: se você comanda um partido — mesmo que tenha cometido crimes comuns, como corrupção, lavagem de dinheiro ou até violência —, só poderá ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal. E todos sabemos o que isso significa na prática: lentidão infinita, arquivamentos estratégicos, prescrições convenientes e, no fim, impunidade garantida.
Essa não é uma medida técnica. É uma manobra política. É um golpe branco, parlamentar, institucional. É a elite política se autoprotegendo enquanto o povo paga a conta. Enquanto milhões enfrentam filas em hospitais precários, escolas sem merenda e salários que não cobrem o básico, os representantes do povo — muitos eleitos com votos de protesto, outros com financiamento obscuro — decidem que estão acima da lei.
E por que agora? Porque o vento mudou. Porque a Lava Jato, apesar de seus desvios autoritários e seletividades políticas, deixou um rastro de investigações que ainda assombra gabinetes e contas bancárias. Porque, com o avanço de novas apurações e a retomada de processos paralisados, parlamentares e caciques partidários sentiram o chão tremer. E decidiram blindar-se. Não por medo da Justiça — mas por medo da punição.
Essa PEC é um tapa na cara dos movimentos sociais, dos ativistas anticorrupção, dos juízes honestos e dos promotores que ainda acreditam que a lei deve valer para todos. É um tapa na cara da juventude que foi às ruas em 2013 pedindo “padrão Fifa” para a saúde e a educação — e recebeu em troca “padrão Congresso” de impunidade.
É um tapa na cara do povo pobre, negro e periférico, que sabe muito bem o que é ser preso em flagrante, sem direito a foro, sem direito a recurso, sem direito a nada — enquanto os poderosos dormem em suas mansões, sabendo que só o STF pode incomodá-los… e raramente o faz.
Do ponto de vista da esquerda, essa proposta é inaceitável não apenas por seu conteúdo, mas por seu simbolismo. Ela representa a consolidação de uma casta política que se coloca acima da nação.
Enquanto governos progressistas, como o de Lula, lutam para ampliar direitos, reduzir desigualdades e fortalecer a soberania popular, esta PEC faz exatamente o oposto: fortalece privilégios, amplia desigualdades jurídicas e mina a soberania do povo sobre seus representantes.
Soberania não é só sobre território ou economia. É também sobre quem manda nas leis. E se os representantes do povo se tornam intocáveis, então o povo perde a soberania. A democracia vira fachada. O parlamento, clube de imunidade. E a Constituição, carta de alforria para os poderosos.
A aprovação na Câmara foi avassaladora — mas não definitiva. Ainda há o Senado. E é lá que a resistência precisa se organizar. Movimentos populares, sindicatos, coletivos jurídicos, universidades, artistas, jornalistas e cidadãos indignados precisam ocupar as ruas, as redes, os gabinetes.
Precisamos lembrar aos senadores que eles não estão lá para blindar partidos, mas para defender o povo. Que o foro privilegiado não é um direito — é um privilégio aristocrático incompatível com uma república democrática.
Trump, Bolsonaro, os negacionistas, os fascistas de plantão — todos eles atacam a democracia de forma escancarada, com discursos de ódio e ameaças às instituições. Mas há um golpe mais silencioso, mais sofisticado, mais perigoso: o golpe que vem vestido de terno e gravata, falando em “segurança jurídica” e “estabilidade institucional”, enquanto costura nas sombras a impunidade estrutural. Esse golpe não grita. Ele legisla. E é por isso que devemos gritar mais alto.
Dizer “não” à PEC da Blindagem é dizer “sim” à democracia real. É dizer “sim” à igualdade perante a lei. É dizer “sim” à soberania popular — aquela que nasce nas favelas, nos campos, nas periferias, nas ocupações, nos movimentos. Não nos gabinetes onde se vota meia-noite adentro para proteger os poderosos.
O povo brasileiro já derrubou ditaduras. Já enfrentou o neoliberalismo. Já elegeu Lula duas vezes — e depois o libertou da prisão política. Não será uma PEC aprovada na calada da noite que vai calar sua voz. A luta continua. E a esquerda estará na linha de frente — não para defender privilégios, mas para enterrá-los.
Com informações de Migalhas e Agências de Notícias*


Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!