Insatisfação histórica com o Partido Democrata abre espaço para candidatos outsiders que prometem renovar a política e confrontar a extrema-direita
A derrota de 2024 deixou marcas profundas no Partido Democrata. Com Donald Trump de volta à Casa Branca e índices de aprovação do partido em níveis historicamente baixos — apenas 34% segundo pesquisa da Associated Press —, a base democrata não está apenas desapontada; está furiosa. E essa fúria está se traduzindo em algo raro na política americana contemporânea: uma onda de candidaturas outsider, críticas ao establishment partidário, que buscam não apenas vencer eleições, mas redefinir o que significa ser democrata em um momento de crise existencial para a democracia americana.
Essa renovação interna não é um luxo. É uma necessidade urgente — e talvez a última chance de impedir que a extrema-direita de Trump consolide seu domínio sobre as instituições dos Estados Unidos. A lição de 2024 foi clara: a estratégia de “moderação cautelosa”, de confiança excessiva nas elites e de apelos genéricos à “normalidade” não foi suficiente para mobilizar eleitores diante de um movimento autoritário organizado, bem financiado e disposto a tudo para manter o poder. Se os democratas repetirem os mesmos erros em 2026, correm o risco de entregar o Senado — e, com ele, qualquer possibilidade de frear a agenda de Trump — de bandeja.
É nesse contexto que figuras como a senadora estadual Mallory McMorrow, de Michigan, ganham relevância. Ao lançar sua campanha para o Senado federal, McMorrow não apenas desafiou o Comitê de Campanha Senatorial Democrata (DSCC), que tentou contê-la com pedidos velados de “esperar um pouco mais”; ela também deu voz a um sentimento crescente entre eleitores progressistas, independentes e até moderados: “As mesmas pessoas em Washington que nos colocaram nessa enrascada não serão as mesmas que nos tirarão dela.” Essa frase não é apenas retórica. É um diagnóstico político preciso.
Leia também:
Urgência para o projeto de anistia é aprovada na Câmara; entenda
A ‘PEC da Blindagem’ e o golpe parlamentar contra a democracia
O que a PEC da Blindagem esconde e ninguém contou
O establishment democrata — representado por figuras como o senador Chuck Schumer — apostou por anos em uma política de contenção, evitando confrontos diretos com a direita, priorizando a governabilidade sobre a mobilização e confiando que a “razão” prevaleceria. Enquanto isso, Trump e seus aliados avançaram sem pudor, atacando o sistema eleitoral, promovendo teorias conspiratórias, criminalizando a imigração e minando a confiança nas instituições. Quando os democratas finalmente reagiram, muitas vezes foi tarde demais — ou com mensagens tão diluídas que não ressoaram com quem mais precisava ouvi-las.
Agora, em estados cruciais como Michigan, Maine, Iowa e Texas, uma nova geração de candidatos está surgindo com uma abordagem diferente. Eles não têm medo de dizer que o partido falhou. Não pedem permissão para lutar. E, acima de tudo, entendem que barrar Trump não é apenas uma questão de política — é uma questão de sobrevivência democrática.
Em Michigan, além de McMorrow, nomes como o médico progressista Abdul El-Sayed também se recusam a endossar Schumer, preferindo ouvir “as pessoas” em vez das cúpulas partidárias. No Maine, o veterano militar e criador de ostras Graham Platner — apoiado por Bernie Sanders — denuncia um sistema “manipulado para os ricos” e promete não seguir ordens de Washington. Em Iowa, o deputado paralímpico Josh Turek lidera uma corrida impulsionada por apoio local, não por diretrizes nacionais. E no Texas, James Talarico desafia Colin Allred em uma disputa que pode definir se os democratas conseguem finalmente romper a hegemonia republicana no estado.
Esses candidatos não são perfeitos. Alguns carecem de experiência nacional; outros enfrentam desafios de viabilidade eleitoral. Mas todos compartilham algo essencial: a disposição de falar com clareza sobre os riscos reais que o país enfrenta. Eles não tratam Trump como um “político tradicional com ideias extremas”, mas como o que ele é: um líder autoritário cuja reeleição representa uma ameaça direta aos direitos civis, à liberdade de imprensa, ao Estado de direito e à própria integridade das eleições.
É por isso que as primárias democratas de 2026 não devem ser vistas como uma ameaça à unidade do partido, mas como sua oportunidade de redenção. Como observou o estrategista Mike Nellis, “o establishment está no momento menos popular da minha carreira — duas décadas”. E, justa ou injustamente, os eleitores associam essa liderança com a passividade diante da ascensão de Trump. A resposta não é mais controle de cima para baixo, mas abertura para novas vozes que possam inspirar, mobilizar e, acima de tudo, vencer.
Isso não significa que o partido deva abandonar completamente a experiência. Em estados como Carolina do Norte e Ohio, a aposta em figuras consolidadas como Roy Cooper e Sherrod Brown mostra que há espaço para equilíbrio. Mas em muitos outros, a tentativa de impor candidatos “seguros” do establishment — como ocorreu em 2020, quando JD Scholten foi pressionado a desistir em Iowa — só gerou ressentimento e desmobilização. Hoje, até o DSCC reconhece que não pode mais ditar quem deve ou não concorrer. Como disse o senador Adam Schiff, o comitê só intervirá se surgir um candidato “politicamente tóxico” — ou seja, a regra agora é a autonomia local.
A ascensão desses outsiders também reflete uma mudança estrutural na política americana. Na “economia da atenção” das redes sociais, a credibilidade não vem mais apenas de selos de aprovação de líderes partidários, mas da capacidade de conectar-se com o público de forma autêntica. Como resumiu um estrategista democrata: as primárias de 2026 se resumirão a três perguntas: “Você é legal? Você sabe lutar? Você consegue inspirar as pessoas?” Nenhuma delas menciona lealdade a Schumer.
Alexandria Ocasio-Cortez, que em 2018 desafiou com sucesso a liderança do partido em Nova York, vê paralelos claros com o momento atual. “O eleitorado deseja democratas ousados, que se levantem e lutem contra o governo, sem esperar permissão de líderes eleitos para decidir em quem votar”, afirmou. Essa é a lição que o Partido Democrata precisa internalizar: a defesa da democracia não pode ser delegada a burocratas ou técnicos. Ela exige paixão, coragem e, acima de tudo, representação real.
Barrar Trump em 2026 não será possível com mais do mesmo. Não será possível com candidatos que evitam falar de justiça econômica, de direitos reprodutivos ou de proteção climática por medo de “assustar o eleitor moderado”. Não será possível com uma estratégia que trata a extrema-direita como um “problema passageiro” em vez de uma ameaça sistêmica.
A renovação que surge das primárias democratas — com suas tensões, seus riscos e suas esperanças — é a melhor chance que o país tem de construir uma oposição capaz de derrotar o trumpismo não apenas nas urnas, mas na alma da nação. Os democratas não precisam de mais cautela. Precisam de coragem. E, felizmente, ela está vindo de baixo.


Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!