A maior barragem da África simboliza não apenas progresso tecnológico, mas também a ambição do continente em liderar infraestrutura estratégica.
A África escreveu uma das páginas mais simbólicas de sua história contemporânea. Nas terras altas da região de Benishangul-Gumuz, no noroeste da Etiópia, foi oficialmente inaugurada a Grande Barragem do Renascimento Etíope (GERD) — o maior projeto hidrelétrico do continente, com capacidade para gerar 5.150 megawatts de energia limpa e armazenar até 74 bilhões de metros cúbicos de água. Mas mais do que uma obra de engenharia monumental, a GERD é um ato de soberania, um manifesto de dignidade e um passo decisivo rumo à emancipação energética e econômica da África.
A cerimônia de inauguração, realizada às margens do Nilo Azul — conhecido na Etiópia como Rio Abay —, reuniu não apenas autoridades etíopes, mas também líderes de todo o continente: o presidente queniano William Ruto, o presidente djibutiano Ismail Omar Guelleh, o sul-sudanês Salva Kiir e o chefe da Comissão da União Africana, Mahmoud Ali Youssouf. Essa presença não foi protocolar. Foi solidária. Porque, embora a barragem esteja fisicamente na Etiópia, seu significado é pan-africano. Ela representa a recusa coletiva do continente em aceitar que seus recursos naturais continuem a ser geridos por lógicas coloniais — onde o acesso à água, à energia e ao desenvolvimento é condicionado por potências externas ou por acordos históricos que ignoram a justiça e a equidade.
Desde que sua construção começou em 2011, a GERD tem sido alvo de tensões diplomáticas, especialmente com o Egito e o Sudão, que temem impactos sobre suas cotas de água do Nilo. Esses temores, embora compreensíveis, foram muitas vezes instrumentalizados por narrativas que insistem em ver a África como um espaço de escassez e conflito inevitável — nunca como um lugar de cooperação soberana e gestão coletiva dos bens comuns. Diante dessas preocupações, o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed reafirmou, com clareza e firmeza humanista: “Acreditamos firmemente no avanço coletivo”. A Etiópia não busca o desenvolvimento às custas de seus vizinhos, mas com eles — e apesar das tentativas externas de dividir os povos do Nilo.
É crucial lembrar que o Nilo Azul, que nasce no Lago Tana, na Etiópia, contribui com cerca de 85% da água do Nilo que chega ao Egito. No entanto, por décadas, acordos coloniais — como o de 1929, imposto pela Grã-Bretanha — garantiram ao Egito direitos quase exclusivos sobre o rio, enquanto os países da nascente, como a Etiópia, foram excluídos das decisões sobre um recurso que brota de suas próprias montanhas. A GERD é, portanto, muito mais do que uma barragem: é uma correção histórica. É a afirmação de que os povos que vivem nas nascentes têm tanto direito à água quanto aqueles que vivem em seu delta.
Do ponto de vista humanitário e progressista, a energia gerada pela GERD é uma ferramenta poderosa de transformação social. Com eletricidade estável e acessível, a Etiópia poderá impulsionar sua indústria, criar empregos dignos, expandir o acesso à internet e à educação digital, melhorar sistemas de saúde e irrigar campos agrícolas — tudo isso com energia limpa, renovável e soberana. Hoje, mais de 50% da população etíope ainda vive sem acesso à rede elétrica. A GERD não é um projeto de luxo; é um projeto de justiça energética.
Além disso, Abiy Ahmed destacou o potencial da barragem para promover a integração energética regional. A eletricidade excedente poderá ser exportada para países vizinhos — como o Sudão, o Quênia e o Djibuti — fortalecendo laços econômicos baseados na cooperação Sul-Sul, não na dependência. Esse é o verdadeiro espírito da União Africana: não apenas falar de integração, mas construí-la, concreta e materialmente, metro a metro de linha de transmissão, quilowatt por quilowatt.
É importante também destacar como a GERD foi financiada: principalmente com recursos internos. Através de títulos públicos, campanhas nacionais e contribuições voluntárias de cidadãos etíopes dentro e fora do país, o povo se tornou coproprietário de seu próprio futuro. Essa abordagem contrasta fortemente com o modelo tradicional de grandes infraestruturas no continente, frequentemente condicionadas a empréstimos predatórios do FMI ou do Banco Mundial, que impõem austeridade e privatizações em troca de financiamento. A Etiópia disse “não” a essa lógica. E disse “sim” à autofinanciação soberana.
Claro, desafios permanecem. A gestão das águas do Nilo exige diálogo contínuo, transparência técnica e mecanismos de cooperação baseados na ciência, não no medo. Mas a postura da Etiópia tem sido consistente: nenhum país será prejudicado. E, ao mesmo tempo, nenhum país africano deve ser impedido de se desenvolver por acordos feitos em salas coloniais há um século.
A inauguração da GERD é, portanto, um marco civilizacional. Ela sinaliza que a África não aceitará mais ser tratada como um continente de recursos a serem extraídos, mas sim como um sujeito ativo de seu próprio destino. Que suas águas não são propriedade de impérios, mas bens comuns dos povos que nelas vivem. Que seu desenvolvimento não será condicionado por quem nunca construiu uma escola, uma clínica ou uma usina em suas terras.
Nesse sentido, a Grande Barragem do Renascimento Etíope não é apenas etíope. Ela pertence a todos os africanos que sonham com um continente energizado, unido e livre. E, mais do que isso, ela serve de inspiração para todos os povos do Sul Global que lutam pelo direito de usar seus próprios recursos para alimentar seu próprio futuro — sem pedir permissão, mas com responsabilidade, solidariedade e visão de longo prazo.
Que o Rio Abay continue a fluir — não como símbolo de disputa, mas como veia pulsante de um novo renascimento africano.


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