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O conforto digital que esconde o abandono real

O que parecia inclusão tecnológica tornou-se refúgio para o abandono: o celular virou companhia, mas também cárcere emocional Durante anos, a figura do “viciado em telas” foi um espelho convenientemente voltado para os jovens. Psicólogos, legisladores e a grande mídia concentraram seus holofotes e seus pânicos morais na geração que cresceu com um smartphone na […]

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Quando a tela vira abrigo e prisão para os idosos

O que parecia inclusão tecnológica tornou-se refúgio para o abandono: o celular virou companhia, mas também cárcere emocional


Durante anos, a figura do “viciado em telas” foi um espelho convenientemente voltado para os jovens. Psicólogos, legisladores e a grande mídia concentraram seus holofotes e seus pânicos morais na geração que cresceu com um smartphone na mão. Enquanto a Austrália se prepara para proibir o acesso de menores de 16 anos às redes sociais, uma transformação social profunda e largamente ignorada ocorre no topo da pirâmide etária: os idosos estão se tornando os novos dependentes do mundo digital. Esta não é uma simples troca de protagonistas, mas a revelação de um novo front de exploração em uma sociedade que, na incapacidade de oferecer cuidado e comunidade, oferece uma tela.

A migração dos cabelos grisalhos para o centro do universo digital é, antes de tudo, um sintoma de um fracasso social. Fatores históricos como tempo livre, mobilidade reduzida e – o mais crucial – isolamento social, sempre tornaram os idosos grandes consumidores de passividade, primeiro da TV e agora do universo online. A constatação da Ofcom de que britânicos acima de 75 anos passam mais de cinco horas e meia por dia diante da televisão não é um dado sobre preferência, mas sobre abandono. A revolução digital não criou esse vácuo; ela simplesmente o preencheu com um novo tipo de conteúdo.

As corporações, é claro, enxergaram nesse público cativo um filão de ouro. A Apple investe em relógios que fazem eletrocardiogramas e acionam ambulâncias, transformando a saúde, um direito fundamental, em um feature de um produto de luxo. O resultado é que 17% dos maiores de 65 anos nos países pesquisados possuem um smartwatch. Esta não é uma simples adoção de tecnologia, mas a externalização do cuidado para o mercado. Em uma sociedade que desmonta o sistema público de saúde e fragiliza as redes de apoio familiar, a solução capitalista é vender para o idoso a própria segurança, amparando-o não com políticas públicas, mas com gadgets.

A conexão digital oferecida é, em grande medida, uma ilusão. O estudo de Hunt Allcott, de Stanford, é um raio-X dessa dinâmica: ao se afastarem do Facebook, os idosos tiveram uma melhora na saúde mental mais do que o dobro da observada em outros grupos. Isto revela que o ambiente digital, para eles, é ainda mais tóxico. As plataformas que prometem conectar são as mesmas que os inundam com desinformação, notícias alarmistas e os tornam alvos preferenciais de golpistas. O WhatsApp, vital para a comunicação familiar em países de média e baixa renda, converteu-se no principal canal de fraudes contra essa população. A mesma tela que permite participar de um culto via Zoom é a que drena suas economias através de microtransações em jogos ou mensagens de phishing.

O cerne da questão não está na tela, mas na solidão que ela tenta, ineficazmente, preencher. A professora Henrietta Bowden-Jones aponta a diferença crucial: enquanto os jovens têm pais e professores vigiando seu uso, os idosos “não contam com ninguém para monitorar o tempo gasto”. Esta observação vai além do vício tecnológico; ela desnuda a arquitetura de um abandono estrutural. A terceira idade, especialmente em sociedades neoliberais que idolatram a produtividade e a juventude, é deixada à própria sorte. O smartphone não é a causa do isolamento; é o paliativo barato para uma solidão que ninguém se dispõe a resolver coletivamente.

O fato de as consequências do “vício” idoso serem consideradas “mais brandas” – a perda de tempo, em vez da queda nas notas ou da perda de emprego – é sintomático de como enxergamos essa fase da vida. Para uma lógica social que descarta os não produtivos, o tempo do idoso é um recurso sem valor. Se ele o “desperdiça” diante de uma tela, pouco importa, desde que não exija investimento social. O que é apresentado como uma vantagem (“eles têm redes sociais sólidas”) é, na verdade, a constatação de que o sistema os explora de forma diferente: não pela sua força de trabalho futura, mas pela sua aposentadoria e sua vulnerabilidade presente.

Não se pode, contudo, cair em um puritanismo tecnofóbico. A internet é, de fato, uma tábua de salvação para muitos. Participar de clubes de leitura online, fazer aulas de ioga ou revisitar memórias afetivas no Spotify e YouTube são benefícios reais e profundos em uma realidade de mobilidade reduzida. A viagem virtual da paciente de 85 anos à sua infância, citada pelo Dr. Vahia, é um exemplo potente de como a tecnologia pode ser terapêutica quando usada com propósito e não como mero tapa-buracos social.

A contradição, portanto, é gritante. A mesma tecnologia que oferece alívio é a que explora a vulnerabilidade. O mesmo dispositivo que fortalece vínculos é o que facilita golpes. O mesmo sistema que estuda os benefícios cognitivos do uso regular (como apontou a meta-análise de abril) é o que lucra com a dependência e a desinformação.

A digitalização da terceira idade não é um problema a ser combatido com proibições, como se faz com os jovens. É um espelho que reflete nossas prioridades como sociedade. Estamos substituindo a construção de praças, a manutenção de centros de convivência, a garantia de uma rede de cuidado robusta e universal, pela distribuição massiva de tablets e pacotes de dados.

O “vício digital da terceira idade” é, em sua essência, o vício em não estar sozinho. É a dependência de um substituto pálido e comercial para o calor humano e a atenção que a sociedade se recusa a fornecer. Enquanto tratarmos o isolamento dos idosos como uma questão de hábito individual a ser ajustado com “orientação de uso”, e não como um fracasso coletivo que exige investimento público, comunidade e cuidado, estaremos apenas trocando a solidão do apartamento silencioso pela solidão barulhenta e colorida da tela. O brilho no rosto dos mais velhos, refletido no vidro do smartphone, ilumina muito mais nossas falhas do que o seu entretenimento.

Com informações de The Economist*

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