Conflito narrativo e crise política

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(Ilustração da capa: Lucian Freud.)

Por trás do noticiário político dos últimos dias, segundo o qual há crise na relação entre o Planalto e a sua base parlamentar, desagregação da articulação do governo no Congresso e, sobretudo, incompetência (e truculência) da presidente e assessoras, há uma disputa surda entre duas narrativas. A primeira é a já referida crise, e tem sido propagada pela mídia e seus colunistas, e por setores do Congresso que usam a mídia para fazer pressão sobre a presidente.

Outra narrativa, contudo, também ganhou popularidade, e o Planalto é naturalmente o principal interessado em torná-la dominante; segundo esta, a presidente estaria enfrentando as velhas práticas políticas, entre elas o fisiologismo, conhecido vulgarmente como o toma lá, dá cá.

Não sei quais estão corretas. Vamos analisá-las separadamente, e ver qual delas possui o discurso mais verossímil, mais qualificado.

Em política, mais do que em qualquer outra atividade, a vontade de potência tem um peso particularmente importante. Na ciência política clássica, entende-se a Vontade Geral, o desejo difuso (e avassalador) das maiorias, como um dos pilares da teoria democrática. Ou seja, se o Planalto afirma que a troca de lideranças teve como objetivo uma renovação das práticas políticas, e se a população deseja que isso aconteça, temos uma conjugação poderosa a incentivar efetivamente uma evolução neste sentido. Mesmo que o governo seja hipócrita, mesmo que a mídia seja mentirosa. O raciocínio vale para política e vale para a moral: o que interessa é o que fazemos, concretamente; podemos continuar pervertidos e corruptos em pensamento: se agirmos corretamente, livrai-nos, oh Deus, da punição eterna.

O que temos de concreto é que a presidente efetivamente está impondo dificuldades ao fisiologismo partidário. Se o faz com truculência ou inabilidade, isso é outra história.

Ontem o blogueiro Josias de Souza publicou uma análise desta crise na qual pisa fundo num lado da balança: a incompetência política do Planalto e a desarticulação de sua base parlamentar. O texto de Josias, porém, peca por uma linguagem enigmática, que parece esconder mais sua confusão do que algum segredo importante do cenário político. Ele admite que há intenção do Planalto em renovar as práticas, mas amplifica de tal maneira o tititi do Congresso que a impressão que passa ao leitor é que os problemas se restringem à falta de destreza política de Dilma e Ideli Salvati.

Ideli é politicamente inábil, dizem os críticos mais amenos. Ela é tosca, desastrada e arrogante, afirmam os mais ácidos. Em comum, o mesmo imutável diagnóstico: aos olhos dos membros do condomínio, a desarticulação que envenena as relações do governo com seus aliados traz as digitais de Ideli.

A psicanálise dos congressistas precisa ser analisada. Nos descaminhos que levaram aos abismos da alma, perdeu-se o essencial: acima de Ideli está Dilma Rousseff.

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O Congresso tem 513 deputados. O problema de analistas como Josias é o mesmo que leva os melhores nadadores a serem os que mais se afogam, e os melhores motoristas a serem os que mais sofrem acidentes. Veterano do jornalismo político, Josias tem fontes. Conversa com meia dúzia de deputados, que lhe abarrotam a cachola de teorias enviesadas sobre a “crise” política, todas elas tendo como pano de fundo seus interesses fisiológicos, e acha que matou a charada. O blogueiro do UOL é tão seguro de si que nada até o fundo, sem atentar que, assim como ser humano nenhum pode enfrentar as armadilhas de um mar traiçoeiro, a análise da conjuntura política deve respeitar seus mistérios.

Num outro post, mais recente, Josias se ajoelha no altor dos clichês e faz uma análise capenga, moralistóide, superficial e repleta de equívocos, comparando alianças políticas feitas e desfeitas em Brasília e São Paulo.

Veja esta frase, que resume o post inteiro:

Valdemar, como se sabe, é do PR. Partido da República, eis o nome escondido atrás da sigla. Em Brasília, é tratada por Dilma Rousseff como uma legenda leprosa, tisnada por práticas nada republicanas. Mas em São Paulo…

O equívoco de Josias é uma hipérbole grosseira. Dilma não trata o PR como legenda leprosa. Ela só não aceita os nomes que o partido deseja impor ao Planalto. Age assim com outros partidos, inclusive com o PT.

O realpolitik sempre tem alguma coisa de sujo, assim como o jornalismo, a advocacia e o trabalho em restaurantes. Josias, porém, sofre do mal que acomete todo jornalista que trabalha tempo demais em Brasília: torna-se cínico, e suas fatigadas retinas conseguem enxergar somente os detritos que flutuam na superfície. Perde a noção de que há algo maior, não necessariamente bonito, mas com certeza profundo ou misterioso, por trás dos debates políticos.

Essa grandeza, que é preciso ser cultivada, está antes nos olhos de quem vê, do que no objeto observado. Ou como dizia Hegel, em citação já meio batida em meus blogs:

Perseguindo seus interesses pessoais, os homens fazem história e são, ao mesmo tempo, as ferramentas e os meios de qualquer coisa de mais elevada, de mais vasta, que eles ignoram, e que eles realizam de maneira inconsciente.

Ou seja, os pafúncios mais bizarros do Congresso representam algo bem maior do que eles mesmos compreendem. Afinal, um pedacinho da história da humanidade, com suas violências, mesquinhez e grandezas, também está sendo escrita em nosso parlamento.

A narrativa da incompetência, no entanto, apresenta três falhas graves. A primeira pode ser encontrada nos próprios anais do congresso em 2011. Se é tão incompetente, como o governo conseguiu aprovar tudo o que quis, e obteve apoio maciço em quase todas as votações importantes, apoio inclusive de partidos não aliados? Até a reforma da previdência do setor público, que o governo Lula tentara aprovar em 2003, Dilma conseguiu emplacar, aplicando amarga derrota a um corporativismo que se traveste de “esquerda” para justificar seus privilégios junto à opinião pública. Tanto é assim que a derrota na recondução de Bernardo Figueiredo à ANTT causou perplexidade em Brasília. Como, o governo perdeu uma votação?

A segunda falha surgiu há poucos dias, quando o recém nomeado líder do governo, o senador Eduardo Braga, emergiu na imprensa abraçado ao presidente Lula, declarando que o ex-presidente apoiava incondicionalmente as decisões da presidente.

O senhor conversou sobre essa mudança com o ex-presidente Lula?

BRAGA: Ele me deu um apoio pessoal extraordinário. Quando a presidente me convidou, ele me telefonou e disse: “conte comigo”. Ele acha que a presidente Dilma está absolutamente certa, está nos apoiando e se colocou a nossa disposição.

A terceira falha é o apoio majoritário da população à Dilma. Se é tão incompetente, como consegue apoio popular, e não somente do povo simples, que não lê jornais e portanto se deixa influenciar mais pela atmosfera econômica real, mas sobretudo da sempre ranheta e moralista classe média? As caixas de comentários de Josias e Noblat (cuja coluna de hoje analisarei daqui a pouco) ficaram congestionadas de mensagens de apoio à presidente em sua “luta contra o fisiologismo” e a “turma do Sarney”.

Os itens dois e três desnortearam Noblat, por exemplo. A sua coluna de hoje está tão bêbada quanto às de Josias que citei acima. Ambos não tem como abafar a narrativa palaciana, de que Dilma pretende uma “renovação das práticas”, então reagem de maneira esquizóide, insegura, dúbia. Noblat insinua que Braga mente ao afirmar que Lula apoia Dilma e arrola uma série de arrazoados meio sem pé nem cabeça cujo ápice é uma denúncia da corrupção no governo Collor!

Podemos admitir que a neófita, o poste, a virgem Dilma possa ser mesmo uma incompetente política e que há uma insatisfação terrível se alastrando no Congresso. Essa tese, porém, para ganhar consistência, deverá esperar por derrotas legislativas e declínio na popularidade da presidente. Que Dilma tem defeitos, todos sabem, porque todo mundo tem defeitos, e uma pessoa com a visibilidade pública de um presidente num país democrático, com informação livre, tem seus defeitos tremendamente ampliados. Lula também os tinha, e não deixa de ser engraçado que a mesma mídia que satanizou o presidente por tanto tempo agora, para fazer um contraponto a Dilma, o eleja modelo de competência política. O que não dá é transformar a intriga de alguns parlamentares insatisfeitos numa crise política de proporções épicas, e chancelar, como a opinião de todo um parlamento, a fofoca maldosa de meia dúzia de deputados fisiológicos.

Enfim, vamos ver quem faz gol antes de anunciar o resultado do jogo.
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Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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