O anjo de Benjamin não dançou com Genoíno

Angelus Novus, de Paul Klee

Tenho topado com o nome de Pepe Escobar, o brasileiro que escreve brilhantes análises geopolíticas, em inglês, para o Asian Times, em lugares inusitados, como na contracapa do romance A Dama do Lago, do escritor americano Raymond Chandler. A literatura de Chandler prima pelo magnífico cinismo de seus personagens, a começar por seu mais frequente protagonista, o detetive durão Philip Marlowe.

Suponho que o cinismo de Marlowe tenha ensinado a Pepe Escobar na arte de analisar o complexo e brutal mundo da geopolítica internacional, onde raramente há mocinhos ou bandidos, e mesmo assim, é preciso fazer escolhas morais e escolher um lado no qual botar a culpa pelas maldades do mundo. É preciso escolher, sim, e se manter minimamente leal às suas escolhas. O anjo da história de Walter Benjamin olha para trás, contemplando catástrofes, e um vento o impele para o futuro, para o qual se dirige de costas. Mas é um anjo, e nada mais diferente de um anjo do que um homem! A memória humana seleciona os melhores momentos do passado, está sempre tentando encontrar um sentido pra vida – adentrando o futuro com olhos voltados decididamente para a frente. Nada melhor para blindar a consciência do homem do que um dose calculada de cinismo, sem a qual nos tornaríamos lacrimejantes e perplexos anjos de benjamin.

Entretanto, escrever sobre geopolítica internacional, sendo um brasileiro colaborando para um jornal de hong kong, permite um distanciamento que dificilmente terá um brasileiro ao analisar, em território nacional, uma realidade política inchada de contradições. De vez em quando tento imaginar o que diria Escobar sobre esse ou aquele tema que me ocupa em tardes abafadas do outono carioca, e acabo por concluir que ele se veria forçado a desenvolver um tipo particular de cinismo.

Engana-se, todavia, quem atribui o cinismo a um dom intelectual e elitista. Não, ele é talvez a virtude mais popular do homem contemporâneo, e nem creio que haja diferenças significativas entre a cidade e o campo. Afinal, o sertanejo desconfiado e arisco não é também no fundo um grande cínico? O que são três homens bebendo num botequim senão – necessariamente – uma pequena confraria cínica?

Quem desejar, por exemplo, esculhambar a atividade política encontrará terreno fértil. Oportunismo, covardia, corrupção, vaidade, prepotência, estupidez. Os defeitos e vícios inerentes a todo ser humano ganham magnitude continental quando imantados pelo poder.

Quanto mais aprendemos sobre a política real, mais escabrosas e abrangentes se tornam as histórias, e poucos se salvam. Ouve-se histórias de corrupção deslavada entre procuradores do Ministério Público, juízes, políticos, prefeitos. Enquanto o anjo da história lamenta-se pelas catástrofes passadas, um cidadão atento poderá se embriagar satisfatoriamente de tragédias contemporâneas.

Justamente por ser tão popular, contudo, o cinismo pode ser também, quando mal usado, a mais vulgar das posturas. Pior, ele acaba sendo uma máscara para todo tipo de vício intelectual, para todo tipo de covardia moral. Sobretudo quando o cínico esquece a lição mais importante do cinismo clássico: não colocar a si mesmo como balisa moral da sociedade.

O cinismo pode ser uma ferramenta intelectual extraordinária, se usado como deve ser, como uma espécie de visão pragmática e compreensiva dos erros humanos. O cínico não deixa de lutar contra as injustiças quando as vê, mas ele tem consciência (desesperada?) de que ele mesmo não é, nem poderá vir a ser, nenhum paladino sagrado da justiça. Pelo menos não enquanto ele não fazer uma série de ajustes de contas consigo mesmo. Essa é a principal beleza da literatura, humanizar o homem. Nem o mais abnegado líder sem-terra está imune das mesquinharias e do jogo de poder que se operam na rotina de seu micro-universo.

Nessa confusão, que é humana, tão inevitável quanto a ressaca, se entrecruzam heroísmos e covardias, razões nobres e oportunismo, entusiasmo juvenil e vaidade, ressentimento vil e indignação justa!

Um pequeno protesto justo pode se converter numa execrável ação oportunista, assim como um movimento oportunista pode ser sequestrado pelo bom senso e se tornar uma nobre e bem-sucedida ação política.

É tudo um tanto confuso, eu sei, mas por isso mesmo sempre achei que esse Anjo da História de Benjamin não pode nos ajudar muito a entender o destino do mundo, até porque o anjo real, de Klee, me parece bem diferente. O anjo de Klee me parece alegre, meio idiota, os braços erguidos como a dançar.  Talvez ele esteja realmente assustado com o desenrolar contínuo de catástrofes, mas nada que uma boa refeição e uma garrafa de vinho não  o ajude a esquecer.  Nisso, o anjo lembra um homem comum. Dê a ele alguns trocados e sairá pulando e gritando de alegria, ignorando completamente os milhares de anos de sofrimento de sua amada humanidade.  O homem é um ser meio doido, como diria Guimarães Rosa, e talvez seja sua principal virtude. Não entendo porque seria moralmente superior, para o homem, gastar seu precioso tempo a lamentar os que tombaram na peste negra.

Por exemplo,  o nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso participou recentemente de um congresso de seu partido, e fez uma declaração contundente: “Não roubei”.

Ora, um político que diz isso, sem que ninguém o tenha acusado, deveria ir preso, por atentado violento ao velho e bom cinismo. Pois não se trata mais de cinismo, mas da mais irritante convencional patifaria demagógica. Pela simples razão que um político corrupto, justamente por ser corrupto e mentiroso, sempre dirá que “não roubou”. Não vou enumerar aqui os inúmeros escândalos da era tucana, nem a falta de energia com que as instituições (não) foram mobilizadas para divulgá-los e combatê-los. Gostaria apenas de concluir o artigo combatendo uma falácia repleta de boas intenções que algumas pessoas conhecidas vem fazendo quando analisam, por exemplo, o julgamento do mensalão.

A pessoa argumenta que, independente dos tropeços do STF, o PT “errou” e por isso pagará por seus crimes, e que isso servirá de lição para poderosos de todo Brasil. Ora, essa é uma visão tosca. Não é condenando um ladrão de galinha pelo crime de homicídio que daremos uma lição aos ladrões do Brasil. O que houve no STF foi um caso gravíssimo, que lesou severamente não apenas a democracia brasileira, mas os direitos humanos das pessoas envolvidas. Ter direito a julgamento justo é um dos direitos humanos mais essenciais de um Estado Democrático de Direito, e pôr isso em segundo plano, em nome de uma demagógica e suspeitíssima lição contra os poderosos, é partilhar de um jogo sujo.

O cinismo com que observamos a política não pode nos cegar. A indignação contra os vícios que sempre iremos flagrar nos homens do poder , não pode se tornar tolerância ao linchamento. Em reinados bárbaros, o soberano de vez em quando mandava enforcar e esquartejar em praça pública alguns nobres, para deleite do populacho, e isso também era uma “lição de que os grandes também são punidos”. Mas a essência da justiça numa democracia não é punir grandes ou pequenos, e sim obedecer às mais severas regras da razão humanista.

Assistindo à entrevista de Genoíno para o programa É Notícia, de Kennedy Alencar, sentimos uma alegria por ver um nobre deputado federal lutando contra uma injustiça cometida não apenas contra si mesmo, mas contra o que ele representa, contra seus eleitores, contra seu partido, contra seu governo. Mas sentimos a tristeza por ouvir, pela enésima vez, o desfile de ilações pobres, o interminável suceder de acusações baseadas umas sobre as outras, ou em circunstâncias totalmente alheias ao processo, invariavelmente desconectada de provas.

A maioria dos ministros foi indicado por Lula, e isso “provaria” sua independência e, portanto, a justeza de sua condenação. Não necessariamente. E vimos bem porque. A mídia cercou os ministros do STF como estrelas de holliwood, aprisionando-os na terrível gaiola de sua própria vaidade, alternando com ataques brutais à honra de quem ousasse discordar do caminho traçado. Por fim, chancelou-se um monstro jurídico, repleto de equívocos, do início ao fim. Não podemos jamais achar que um fato assim possa contribuir para o aperfeiçoamento da democracia brasileira. O anjo de Benjamin conhece bem demais a longa história das injustiças humanas para se surpreender com aquele julgamento farsesco, viciado por todo tipo de preconceito ideológico, ignorância em teoria democrática, e mau caratismo explícito. Mas talvez o anjo ficasse chocado se soubesse que alguns tentam minimizar uma injustiça terrível – porque envolta numa atmosfera de golpe político – com o argumento de uma mesquinha catarse da população contra a classe política. O espírito de vendetta com o qual setores “puros” da esquerda assistiram ao golpe dado contra seus ex-companheiros revela apenas a confusão entre divergência e deslealdade; entre vitória política e tapetão judicial;  entre cinismo e covardia.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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