Tirem as crianças da sala

A história de uma farsa – Capítulo 4

“A compra de apoio político”.

Na verdade, o famigerado mensalão correspondeu a duas necessidades de caixa. A primeira foram as dívidas da campanha de 2002. A segunda, a necessidade de investir nas eleições de 2004 e integrar estratégias eleitorais de legendas coligadas. Ué, “integrar estratégias”, ao supor partilhamento de recursos, não seria comprar apoio político? Então o STF está certo? Não. Não está certo porque a acusação do STF não é, exatamente, “compra” de apoio político, que é uma coisa genérica, difícil de ser mensurada. Os ministros acusaram o governo de comprar a consciência dos deputados, em votações específicas, e tal acusação só poderia ser feita mediante a existência de uma confissão. O que não houve. A única confissão de compra de voto, que eu me lembre, é do Ronivon Santiago (PFL-AC), que acusou o governo FHC de organizar pagamentos de 200 mil para que os parlamentares votassem em favor da emenda da reeleição.

Consolidar apoio político não é crime. O que move os grupos políticos são os interesses econômicos. Se eu dou três ministérios para um partido, estou “comprando” seu apoio político. Se distribuo tantos cargos para os quadros daquele outro, idem. Se integro financeiramente campanhas entre partidos aliados, a mesma coisa. Algumas dessas coisas podem configurar irregularidades ou uso de recursos não-contabilizados, mas o crime não é a questão política, visto que a construção de alianças em prol da governabilidade é um pressuposto necessário para estabilidade institucional.

Os R$ 6 bilhões que a Secom deu à Globo nos últimos 10 anos não configuram “compra de apoio político”? Nomear tucanos para chefiar a Procuradoria Geral da República, por exemplo, foram operações quase suicidas de Lula para “comprar” apoio político…

O crime que existiu é o caixa 2. O crime é dar dinheiro ilegalmente a uma liderança partidária. Mas então que as condenações sejam para o crime de caixa 2 e para o crime de lavagem de dinheiro e corrupção. A acusação de compras em massa de consciências só seria possível se as mentes dos parlamentares “comprados” fossem dissecadas em laboratório e ficasse provado que eles votaram porque, e só porque, receberam uma quantia para isso. Essa é a grande falha da acusação, agravada pelo fato de que os que receberam dinheiro para “votar” com o governo, já pertenciam à base aliada. Alguns eram do próprio PT!

Mas voltaremos mais tarde aos erros do STF, que são muitos e terríveis. Agora vamos nos alongar um pouco mais sobre realpolitik. Tirem as crianças da sala, por favor.

Será que foi por isso, por exemplo, que o PT também “comprou” apoio político do PSDB? O grupo de Gushiken e Palocci cedeu várias estruturas importantes  aos tucanos, em troca de apoio político no parlamento. O Banco do Brasil, o Banco Central, os fundos de pensão. Tudo relacionado a Palocci e a Gushiken foi entregue e/ou permaneceu com os tucanos.

Esse foi um debate duro que se deu bem “no seio” do governo, diz o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, que observou essa disputa durante a campanha – embora jamais tenha ocupado nenhum cargo de direção no partido. A decisão contou com a oposição dura de José Dirceu. “O Zé era radicalmente contra isso, e ameaçou fazer convenção e ganhar lá. Ele argumentava que os tucanos já estavam há muito tempo no governo e tinham aparelhado tudo. Se continuassem ocupando funções-chave, seria como se continuassem no poder.” Dirceu defendia uma grande aliança com o PMDB, enquanto Lula via mais vantagem em se aliar aos pequenos partidos, mantendo parcerias pontuais com o PMDB.

Delúbio chegou na primeira reunião após a vitória confiante de que seria elogiado pela vitória eleitoral e pela bem sucedida prestação das contas da campanha nacional junto ao STE. Quando recebeu a ordem de resolver um pepino de algumas dezenas de milhões de reais, referentes às dívidas dos diretórios regionais, quase pulou da janela.

“Lula tentava acalmá-lo. Está tudo bem, Delúbio. Tudo bem. É melhor a gente assumir isso do que correr o risco dessa gente fazer bobagem”, conta Pizzolato, presente à reunião.

“Quando eu fui para a campanha, a coordenação me disse: precisamos de um cara para plano de governo, para explicar isso e aquilo. Ainda durante a campanha, o Delúbio me chama e diz: estamos no negativo”.

Delúbio diz a Pizzolato que o partido precisava de R$ 1,5 milhão para capital de giro. Quem botava a mão na massa e trabalhava pra valer era o assessor de Delúbio, Paulo Martins, que depois virou chefe de gabinete do Okamoto. O Delúbio só assinava os papeis, fumando charutos. Pizzolato procedeu ao rito normal de qualquer cliente e entrou em contato com o Banco do Brasil, para marcar uma entrevista e ver o quanto o partido podia pegar emprestado junto à instituição. As regras eram rígidas, e o PT só conseguiu pegar exatamente R$ 1,6 milhão, dando como garantia o próprio fundo partidário.

Finda a campanha, todos sabiam que havia dívidas. Lula orienta o tesoureiro do partido a assumir as dívidas regionais; começa a via sacra. Cada estado apresenta a relação das dívidas.

Hoje se sabe que foi naquele momento que surge Marcos Valério. Com Valério como avalista, o PT consegue um limite maior: R$ 3 milhões junto ao Banco Rural. Mas ainda faltava muita coisa. Então Valério disse que podia “quebrar o galho”, e pegou empréstimos mais vultosos em seu nome. Sua intenção, naturalmente, era ter o PT lhe devendo favores, e fazer com que isso representasse, no futuro, uma gorda conta estatal; essa era a a especialidade de Valério na DNA: fazer lobby junto a governos e grandes empresários, e conseguir contas.

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A DNA já tinha contratos com o BB antes dessa história dos empréstimos. O primeiro contrato da DNA com o BB data de 1994. “A empresa vinha ganhando muitos prêmios importantes, estava incomodando as grandes agências de São Paulo”, observa Pizzolato.

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Alexandre Teixeira, autor do blog Megacidadania e pioneiro de um movimento em defesa da anulação da Ação Penal 470, observa que a Receita Federal investigou 25 anos da vida de Pizzolato, e não encontrou nada.

Perguntei-lhe então sobre os 320 mil reais que foram sacados num escritório do banco rural, no Rio. A versão de Pizzolato é que não sabia que se tratava de dinheiro. Disse que atendeu um telefonema de uma pessoa que se identificou como secretária da DNA e solicitou-lhe que fosse buscar documentos em um determinado endereço. Pizzolato solicitou à secretária da PREVI que um contínuo fosse buscá-los. Eram dois envelopes, que foram entregues, segundo ele, algumas horas depois a um emissário do PT. Ele disse que achava que deveria ser material de campanha, porque já tinha informação que DNA abrira uma empresa de marketing político, e queria trabalhar na campanha do PT. Em depoimento judicial, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tinha débitos de campanha de 2002, estava se preparando para as eleições municipais de 2004. O tesoureiro do PT, então, solicitou a ele (Valério) que remetesse um total de R$ 2.676.660,67 ao PT do Rio de Janeiro. As pessoas indicadas para o recebimento foram Manuel Severino, Carlos Manuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67 repassados via Pizzolato seriam parte desse total.

Importante recordar que um notório tucano, o publicitário Nizan Guanaes, estava em tratativas para fazer a campanha petista na capital do Rio.

Pizzolato, condenado por supostamente “desviar” recursos da Visanet (ainda voltaremos uma última vez a este caso), explica que a CPMI dos Correios, que investigava o mensalão, não tinha incluído a questão da Visanet. As investigações vinham descobrindo, segundo consta no relatório final da CPMI, casos bem maiores de caixa 2, pegando todos os partidos. “Aquilo ia revirar a república pelo avesso. A Visanet era uma coisa mais neutra”. A oposição pensou que Valério estava fazendo para os petistas o mesmo que havia feito para eles, que era receber uma quantia superfaturada para realizar um evento. O que explicaria a mira afiada em Valério e nos contratos de publicidade da DNA com a Visanet e Banco do Brasil. Só que as campanhas da DNA junto à Visanet/BB foram realizadas. O “mensalão” não passou pela Visanet, nem pelo BB, e sim pelo esquema de empréstimos tomados por Valério junto a alguns bancos para sanar os problemas financeiros do PT.

Hoje há confirmação que Daniel Dantas, o jovem prodígio que ficou bilionário na era FHC, era um dos principais clientes de Marcos Valério. Sua eventual participação no abastecimento do valerioduto, no entanto, jamais foi explorada pela grande imprensa. Ele até chegou a depor numa CPI, mas numa audiência a portas fechadas; a acusação contra Pizzolato e Visanet foi seu biombo perfeito. Detalhe: Pizzolato é o único dirigente do BB processado por Daniel Dantas, porque enquanto representante dos funcionários do BB na Previ, e como tal membro do Conselho da Brasil Telecom (empresa controlada por Dantas), Pizzolato proferiu um voto que desagradou o poderoso banqueiro, que imediatamente ordenou sua exclusão do Conselho. O petista pode integrar, portanto, a seleta lista do jornalista Paulo Henrique Amorim, com os processados por Dantas.

Como vocês podem constatar, tento retratar fielmente os acontecimentos, sem poupar ninguém. Entretanto, nenhum erro superará os cometidos pela Procuradoria e pelo STF, alguns dos quais irei discutir e denunciar no próximo capítulo.

 

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Prefácio: Mensalão, a história de uma farsa.

Capítulo 1: Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka.

Capítulo 2: O caso Visanet.

Capítulo 3: As bombas lá fora.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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