A teoria bizarra do STF para manter Genoíno preso

Está começando a cair a ficha de que o STF não apenas cometeu mais uma arbitrariedade ao negar prisão domiciliar a Genoíno.

Se o plenário se limitasse ao argumento de que a junta de médicos escolhidos por Joaquim Barbosa opinara que Genoíno não corria risco de vida no presídio, porque a sua doença podia ser tratada lá mesmo, tudo bem.

A gente leu o relatório e pesquisou sobre os médicos e temos várias suspeitas sobre o relatório, que em si mesmo é contraditório, e sobre os médicos, que são, notoriamente, antipetistas furiosos.

No entanto, se Barroso e plenário restringissem sua decisão ao relatório, eu poderia criticá-la pelo mérito. Mas não pelo método e, sobretudo, não poderia contestar o conceito.

Não foi isso que aconteceu.

Barroso tentou inventar um suposto conceito “democrático”, apoiado por Celso de Mello, segundo o qual há centenas de outros presos com problemas de cardiopatia nos presídios do DF.  Conceder o direito a domiciliar a Genoíno seria injusto com eles.

É estarrecedor analisar de perto este raciocínio.

Porque ele, definitivamente, não é democrático!

O STF mais uma vez rasgou um princípio basilar do Direito Penal, não digo nem moderno, mas universal, que vem desde os tempos de Salomão.

O juiz tem que julgar o caso individual de cada réu, independente da situação coletiva de todos os outros. Fazer diferente é um absurdo, um absurdo muito próximo do nazismo.

Se há 400 presos cardiopatas no Distrito Federal, este é um problema do juiz responsável pela situação de cada um deles.

Ali na Papuda, Genoíno é o único cujo caso é analisado pelo Supremo Tribunal Federal.

Quer dizer que, se um preso reclamar do Estado que receba proteção contra outros presos que o estariam estuprando sistematicamente, o juiz pode afirmar que “outros 400 presos” neste presídio também são estuprados, então não seria “democrático” dar-lhe tratamento diferenciado?

Ora, o sistema penal brasileiro, assim como o sistema penal de qualquer lugar do mundo, precisa ser constantemente aperfeiçoado.

E a função da corte suprema não seria a de dar um orientação moderna a todos os tribunais inferiores, dentro do espírito humanista da nossa constituição?

Barroso poderia fazer um belíssimo discurso sobre o direito penal moderno, e dar umas cutucadas na pressão linchatória da mídia.

O Globo de hoje, por exemplo, dá na primeira página que “STF amplia benefício a mensaleiros”. Não são cidadãos brasileiros. Não são réus. São “mensaleiros”.

E não se trata, conceitualmente, de um “benefício”, e sim de um direito do réu, que beneficia não apenas ele, mas todo o sistema, porque é um avanço penal no sentido de esvaziar os presídios e promover a ressocialização do condenado. Beneficia a sociedade inteira, portanto.

Ao rejeitar a prisão domiciliar para Genoíno, alegando que há outras centenas de cardiopatas em regime fechado, o STF deu um golpe justamente nas centenas de cidadãos com problemas cardíacos ou outras doenças graves que estão em presídios, e que teriam o direito de prisão domiciliar.

Genoíno não obteve o direito a domiciliar por causa de 400 presos, e os 400 presos não o obterão por causa de Genoíno.

Que raios de conceito é este?

Há um fator bizarro nisso tudo. É o STF fazer um julgamento coletivo, como se Genoíno não fosse um indivíduo dotado de uma subjetividade própria, com problemas de saúde próprios, com um histórico penal único.

Um juiz tem de analisar o caso individual. Por acaso, os 400 cardiopatas presos no Distrito Federal tem exatamente o mesmo problema de Genoíno?

Sofrem o mesmo assédio psicológico e político da mídia?

Por acaso, entre esses 400 cardiopatas do DF, há algum assassino perigoso? Algum estuprador em série?

O STF estará comparando um idoso absolutamente pacífico, que se entregou voluntariamente à polícia, ao cabo de um processo notoriamente polêmico (o próprio Barroso não disse que era “um ponto fora da curva”?), após anos de intenso bombardeio político e midiático, a um estuprador sanguinário de Taguatinga?

Entendo que o STF tenha feito um jogo político.

Para o PT e para o governo, talvez seja até melhor manter Genoíno preso.

Conceder o direito ao trabalho externo para Dirceu foi um avanço democrático que a nossa mídia medieval já está usando politicamente.

Não houve um editorial em favor da decisão do STF de derrubar a decisão de Barbosa de negar o direito a trabalho externo aos réus da AP 470. Um direito que há mais de quinze anos todos os presos no Brasil possuem, e que Barbosa, num arroubo tirânico e vingativo, tentou anular numa canetada monocrática.

Só que, neste momento, neste raciocínio, eu não estou interessado no PT ou no governo.

Estou preocupado em registrar uma decisão antidemocrática e um raciocínio antihumanista, protagonizados pela casa que deveria, acima de tudo, prezar a democracia e o humanismo.

Já li dezenas de romances sobre presídios.

Já li umas duas vezes Recordações da Casa dos Mortos, do Dostoiésvki, e umas três vezes os dois volumes de Memórias do Cárcere, do Graciliano.

Já assisti dezenas de filmes sobre presídios.

Uma coisa eu aprendi com esses livros, escritos por gênios da humanidade.

Somos todos filhos de Deus. E não falo isso num sentido religioso, pois não sou religioso, mas num sentido filosófico.

Falo no sentido de que os direitos humanos de um preso comum são os mesmos de um executivo do banco Itaú. Este é o verdadeiro sentido de uma democracia, cujos valores foram sedimentados por gênios como Dostoiésvski e Graciliano, que mostraram que executivos de banco podem ser mais crueis e mais desumanos do que sentenciados a perpétua num presídio de segurança máxima.

Se o STF decidiu condenar Genoíno, muito bem! A gente acompanha o processo e sabe que é injusto, e que houve um golpe aí. Um golpe construído meticulosamente pela Procuradoria Geral, e que contou com a maior pressão midiática da história mundial sobre um julgamento. O problema é que à injustiça original, que foi condenar Genoíno por um crime que ele não cometeu, vão se encadeando uma série infinita de arbitrariedades. Tantas que a gente vai até se conformando.

O clima em torno de tudo ligado à Ação Penal 470 continua muito ruim, sobretudo por causa da aproximação do processo eleitoral.

A parte mais poderosa do embate político atual, a mídia corporativa, tem interesse direto em manter as críticas ao julgamento ocultas embaixo do tapete.

Promove um sensacionalismo torpe para manter aceso o fogo linchatório, e estimular o sentimento baixo do povo.

O governo e o PT estão de mãos amarradas.

O governo não pode confrontar o STF, nem tem interesse nisso. Há um país a ser governado.

O PT agora tem uma eleição complicada à sua frente, e não dá tempo para derrubar um muro tão alto e tão espesso, feito à base de mentira, preconceito e ódio.

Os réus estão novamente sozinhos.

Quer dizer, não completamente sozinhos. Criou-se uma blogosfera crítica a tudo que aconteceu na Ação Penal 470 e atenta a eventuais novas arbitrariedades do STF.

Há milhares de pessoas conscientes de que o julgamento do mensalão foi eivado de mentiras. Joaquim Barbosa ocultou criminosamente documentos importantes para esclarecer a opinião pública, e permitir melhor defesa dos réus, como o Laudo 2828 e o Inquérito 2474.

Barbosa mentiu descaradamente em plenário, ao dizer que o Inquérito 2474 não tinha “nada a ver” com o mensalão. Ora, o inquérito 2474 era justamente um aprofundamento das investigações sobre o mensalão. O autor do relatório do 2474, o delegado Luiz Fernando Zampronha, faz um levantamento minucioso da movimentação financeira de Marcos Valério.

E mostra que o dinheiro da Visanet, que o STF disse ter sido desviado para pagamento de parlamentares, acabou, em verdade, nas mãos da Globo.

O próprio Joaquim Barbosa desfrutou duplamente do dinheiro de publicidade da Visanet.

A companhia patrocinou um encontro de juízes num resort do litoral baiano, com direito a show de Ivete Sangalo, regado a muita bebida e comida de primeira. Joaquim estava lá, dançando.

Depois a Visanet contratou a Tom Brasil, onde o filho de Barbosa trabalhou.

A única esperança da mídia agora é vencer as eleições e prorrogar ao máximo o desmascaramento do papel que desempenhou na propagação de mentiras e na ocultação de verdades.

Para se ter uma ideia do papel pernicioso da imprensa na disseminação de preconceitos, atente para o que disse Clovis Rossi, dias atrás, em sua coluna:

Sofisma barato de botequim! É incrível a facilidade com que os jornalistas da grande mídia esquecem toda a sua “sofisticação” intelectual quando lhes é conveniente. Rossi se limitou a gritar, qual um barnabé grosseirão, que “lugar de bandido é na cadeia”.

Fazem uma confusão deliberada. Ora, se o STF condenasse o PT e os réus por crime de caixa 2, tudo bem!  Só que não foi isso. Rossi finge desconhecer que o STF derrubou a teoria do caixa 2, por razões óbvias: não teria satisfeito o objetivo político de todo esse processo. Ayres Brito, nesse ponto, foi figura chave para derrubar a teoria do caixa 2.  Fez o diabo, até chamar a Visanet de “empresa do sistema público”, alegando como “prova” o fato dela ter a palavra “brasileira” no nome. O nome jurídico da Visanet é Companhia Brasileira de Meios de Pagamento. E a partindo da premissa – absurda – de que a Visanet era pública, e que o dinheiro dela era público, concluiu que não houve caixa 2.

Caixa 2 nem é considerado crime no código penal. É uma infração eleitoral. Eticamente grave, mas não é crime penal. Os réus seriam condenados, mas não a  10, 20, 40 anos, como fizeram com os réus da AP 470, num exagero ridículo, com condenações superiores a que sofreu o “monstro da Noruega”, que matou dezenas de jovens a sangue frio.

Os partidos pagariam multas, e o Brasil poderia mergulhar num debate necessário sobre a reforma política.

Ao inventarem uma teoria escalafobética com vistas a consumar um golpe jurídico, uma espécie de terceiro turno, a Procuradoria, Barbosa e a mídia negaram ao Brasil a oportunidade de discutir um assunto crucial para modernizar a nossa democracia, que é o financiamento eleitoral.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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