A cerveja e a democracia


Nunca um país dependeu tanto de um produto como o Brasil dependerá, neste duro ano de 2015, da cerveja.

Calor insuportável, falta d’água, aumento de impostos e juros, mídia mais histérica que nunca, obras de infra-estrutura perdendo ritmo, Petrobrás sob fortíssimo ataque especulativo, governo calado, presidenta calada, comunicação pública desastrosa.

Terrorismo político, econômico, midiático e governamental, 24 horas por dia!

Não fosse a cerveja, a turma que se arrisca a pensar um pouco sobre a política brasileira, já teria saltado do barco há tempos.

Governo e mídia parecem ter se irmanado num dueto sadomasoquista para torturar os brasileiros.

A mídia pratica sadismo contra a classe trabalhadora e contra o governo.

O governo entra com o masoquismo, ao financiar a mesma mídia que só não espanca o governo quando este segue a sua cartilha neoliberal.

Quando o governo adota medidas que prejudicam o trabalhador, a mídia brasileira tira a sua fantasia de “crítica ao poder”, e se torna a mídia mais chapa branca do mundo.

A mídia não vê uma coisa boa acontecendo no Brasil. Sua agenda política vem se estreitando cada vez mais nos últimos anos. São apenas duas pautas lá vai uma década: crise econômica (independente se há ou não) e crise política (idem).

O mensalão foi trocado pela Lava Jato. O modus operandi é exatamente o mesmo.

Entretanto, acho que temos de parar de esmurrar a ponta da faca.

Não vou mais reclamar do Ministério Público, da PF ou do Judiciário, por exemplo.

Apesar de Douglas Fischer, nomeado chefe do grupo de trabalho criado pelo atual Procurador Geral da República (PGR) para elaborar a estratégia do MP para a operação Lava Jato, ser o mesmo promotor federal contratado pelo ex-PGR, Roberto Gurgel, para encontrar uma solução criativa para condenar Dirceu, mesmo não havendo provas, mesmo assim acho prudente dar ao MP um voto de confiança.

Pode ser que eu me engane, e que o MP volte a conspirar politicamente, em conluio com a mídia, como fez na Ação Penal 470.

Entretanto, o que me convenceu a dar um voto de confiança ao MP foi analisar o histórico de Vladimir Aras, um dos promotores que integram o grupo de trabalho do MP para a Lava Jato.

Aras é o retrato do MP no Brasil: brilhante e orgulhoso. Tem um excelente blog, com posts bem escritos, e foi um dos principais teóricos, dentro do MP, a defender a Ação Penal 470 dos ataques que sofreu da comunidade jurídica e da blogosfera.

Sua opinião sobre a AP 470 era corporativa, embora (suponho eu) sincera. De maneira geral, porém, Aras acompanha a política nacional e internacional, e seus desdobramentos no mundo jurídico, com admirável bom senso.

Trouxe-me algum alívio conhecer o pensamento de um dos promotores responsáveis pelo grupo da Lava Jato. Provavelmente não concordamos em inúmeros pontos, sobretudo em relação à AP 470, mas mesmo com essas divergências, ele me pareceu proprietário de um cérebro dotado de bom senso.

Além disso, a atual composição do STF está bem mais equilibrada politicamente. Teori Zavaski, relator da Lava Jato no STF, é um juiz rigoroso, garantista e indiferente aos holofotes. É todavia um homem como outro qualquer e, portanto, suas decisões podem conter equívocos, mas não creio que se prestaria ao triste papel de um Ayres Brito e Joaquim Barbosa, transformados em marionetes da mídia.

Então vou tentar não me preocupar muito, por enquanto, com a degeneração da Lava Jato em conspirata política. Vou dar um voto de confiança às autoridades competentes, mesmo sabendo que a chamada “república do Paraná”, que inclui o juiz Sergio Moro, a seção paranaense da Polícia Federal e alguns promotores, formam um núcleo pró-tucano.

Ainda sobre a Lava Jato, um motivo para estragar o sabor da cerveja seria a angústia de ver a economia brasileira estagnar-se em virtude da paralisação das principais obras de infra-estrutura, já que elas são todas tocadas pelas mesmas empreiteiras acusadas de corrução pelo MP e pela Justiça.

Mas também aí encontro um argumento reconfortante. Para alguma coisa boa tem de servir o capitalismo, e esta coisa é a flexibilidade e a genialidade com que o capital e suas necessidades se ajustam às circunstâncias.

As obras de infra-estrutura em curso são movidas sobretudo pelas demandas do grande capital. Infelizmente, ainda não temos grandes obras de infra-estrutura voltadas exclusivamente ao conforto da população, como a construção de novas linhas de metrô e trens de alta velocidade.

Há obras de metrô em andamento, mas não estruturantes. Há uma nova linhazinha aqui, outra ali. Mas servirão apenas para que a qualidade de vida nas grandes cidades reduza um pouco o seu processo degenerativo, mas não provocarão melhora substancial na vida dos brasileiros que sofrem com a insuficiência da mobilidade urbana no país.

O que vemos são refinarias, hidrelétricas, portos, ferrovias de carga, obras essenciais para a economia brasileira, e que, naturalmente, se refletirão na vida de cada um, mas de uma maneira um pouco mais indireta.

Mas o capital não irá deixar que elas parem por muito tempo. A mídia tem interesse em produzir paralisação e dificuldades até 2018, para reduzir o número de inaugurações a serem feitas por Dilma ao longo de seu mandato. Mas Dilma tem a vantagem do tempo, de um lado, e da necessidade do capital de ir avante, de outro.

Não vamos pois nos preocupar tanto com a questão da infra-estrutura. Mal ou bem, com paralisações, atrasos, sabotagens, ela vai andar, empurrada pela necessidade do capital e pelo irresistível lobby da indústria.

Nos restam dois temas preocupantes: a economia e a política.

A economia não vai bem. O crescimento foi baixo em 2014 e o governo vem aumentando juros e impostos.

No entanto, também aqui, a meu ver, não deve residir nossa preocupação principal.

As coisas estão seguindo um roteiro bastante previsível. Triste, mas previsível.

Já sabíamos que 2015 seria um ano de apertos e ajustes. Não concordamos com eles, mas sabíamos que viriam, porque é a única fórmula que autoridades do Banco Central, do ministério da Fazenda, e do mercado conhecem.

Os ajustes viriam com Dilma ou Aécio, mas nos pareceu infinitamente mais seguro, do ponto-de-vista do trabalhador, que o verdugo fosse uma mulher com um longo histórico na esquerda.

A fórmula neoliberal, que vem de fora, vale apenas para país emergente.

País desenvolvido, quando vem a crise, reduz os juros. Aqui, a gente aumenta.

Mas desde que não haja um aumento galopante no desemprego, e desde que a inflação seja efetivamente controlada, a gente toma umas cervejas, xinga o conservadorismo idiota e colonizado do governo, em especial do ministro da Fazenda, e aguenta o tranco por um ou dois anos.

Não quero passar uma impressão leviana. Não será fácil. Recessão econômica, num país sem colchão social como o nosso, significa aumento da miséria e da violência urbana, e uma crescente atmosfera de desespero nas áreas mais pobres do país.

Não faltarão merecidos xingamentos ao governo. Sobretudo porque as medidas carecem de lógica. O governo aumenta impostos para elevar a arrecadação, mas aumenta os juros, o que implicará em maior gasto do governo com a dívida pública. Ou seja, piora-se a situação do cidadão e as contas do governo ficam ainda piores. É um jogo de perde-perde que foge à nossa compreensão.

Talvez tenhamos que apelar, com vistas a preservar nossa saúde mental, para não somente “umas cervejas”, mas para uma quantidade considerável, e teremos que procurar os bares mais populares.

Mas sobreviveremos. Em um ano, o governo terá de voltar a baixar substancialmente os juros, caso não queira implodir a economia brasileira. No segundo ano, a economia deve engrenar, porque é assim que funciona o capitalismo, ciclicamente.

O Brasil não é a Rússia, cuja atividade econômica repousa demasiadamente num só produto, o petróleo.

Nossa economia é diversificada. Mesmo nossa dependência de commodities é relativa, porque não dependemos de apenas uma ou duas commodities, mas de uma quantidade enorme delas: soja, ferro, carnes, algodão. Somos grandes em tudo. E a queda na cotação de uma compensa outra.

Claro, temos que economizar muita água, e rezar um bocado para que São Pedro continue nos tocando com sua úmida graça. Seria desgraça demais acontecer uma seca generalizada no país, e não quero sequer pensar nisso. Vai chover e nossas reservas voltarão se encher, porque Deus é bom. De qualquer forma, espera-se que o poder público, o federal e os estaduais, tomem juízo e elaborem estratégias para dar maior segurança hídrica ao país. É ridículo que um país que abriga os maiores rios do mundo, e que vive enfrentando enchentes e inundações trágicas, tenha problema de falta d’água…

Enfim, nosso principal problema, aquele que poderia nos levar, efetivamente, ao alcoolismo (sem que isso nos traga alívio), e transformar nossa vida num inferno moral por tempo indeterminado, é a política.

Aí repousa, ou melhor, não repousa, a nossa maior preocupação.

A questão da democratização da mídia, agora isso ficou bem claro, é um problema vinculado à política.

Temos a impressão que o governo, quando fala em regulação econômica da mídia, está apenas fazendo um jogo de cena, tentando reduzir um pouco a pressão cada vez maior que vem de suas bases sociais.

Tipo assim: estamos aumentando juros e impostos, propondo redução de direitos trabalhistas, cortando verbas de áreas estratégicas como educação, só damos entrevista para a Globo, não acenamos com nenhuma mudança na distribuição das verbas publicitárias, mas estamos falando sobre “regulação econômica da mídia”.

A coisa soa tão falsa que o vídeo divulgado nas redes sociais da presidenta era um trecho de uma resposta que ela deu ao Miro Borges, na entrevista com os blogueiros, no segundo turno da campanha do ano passado. O governo sequer produziu um conteúdo novo.

Como se o governo apenas quisesse se defender de uma coisa que, afinal, não vai fazer, ou não vai fazer tão cedo. Uma ação defensiva. Quase um pedido de desculpas, não sei bem se aos movimentos sociais ou à mídia. Talvez a ambos.

Agora está claro que tudo vem junto: reforma política, regulamentação econômica da mídia, investimento em comunicação pública, redistribuição das verbas publicitárias. São medidas que, em seu conjunto, podem ser resumidas em apenas um conceito: fazer política.

Por exemplo, se o governo falar em regulamentação da mídia e não mudar completamente a lógica da distribuição da publicidade institucional no país, então saberemos que ele está tentando nos enganar.

Mudar a lógica da distribuição de publicidade não é dar dinheiro para meia dúzia de sites ou blogs, o que, ao cabo, não mudaria nada, e acabaria por gerar acusações de falta de republicanismo. Mudar seria implementar uma mudança massiva, gerando milhares de empregos na internet, salvando a profissão do jornalismo de um processo de decadência melancólica, em que o profissional tem de escolher entre a submissão aos barões da mídia ou a indigência.

A reforma política também faz parte da estratégia. Por que só meia dúzia de famílias lucram com a campanha eleitoral, através dos descontos tributários concedidos para a veiculação da propaganda partidária?

Por que as campanhas da própria Justiça Eleitoral apenas são veiculadas nos mesmos canais da TV aberta?

Agora explica-se porque a Globo, a maior entusiasta da ditadura, se tornou uma paladina (hipócrita, mas nem por isso menos fervorosa) da democracia: porque todos os recursos da democracia são canalizados para ela. As propagandas eleitorais, a publicidade institucional, as entrevistas com o governo, tudo.

Daí que a família Marinho, que já era a mais poderosa durante a ditadura, agora se tornou, na democracia, também a mais rica.

Essa é uma falha indesculpável do governo. Diante da força descomunal de um monopólio construído durante o regime militar, as forças progressistas, ainda dispersas, extremamente frágeis economicamente, tinham esperança de que o governo propusesse políticas públicas que permitissem o surgimento de pequenas e médios empreendimentos de comunicação, autossustentáveis.

Por que o governo pode emprestar mais de 150 bilhões de reais ao ano para a agricultura, a juro próximo de zero, e, em alguns casos, até a fundo perdido, e não pode ajudar a nossa democracia a desenvolver meios de expressão mais plurais?

Por que o governo pode gastar mais de R$ 12 milhões num filme ruim e chato do Jabor que ninguém vai ver e não pode investir em blogs e sites de internet, vistos e admirados por milhões?

Tudo isso é política. Porque o sistema brasileira de comunicação implica num governo eternamente acuado pelas forças do mercado e por um determinado setor social que não representa a maioria. Que é inimigo dessa maioria.

A política é o foco, porque é a maior deficiência do governo.

O governo não percebe que, ao não fazer política, ao não se comunicar, aumenta vertiginosamente o preço cobrado por cada parlamentar para lhe apoiar?

Não podemos nem chamar isso de pragmatismo!

A antipolítica praticada pelo governo é também antipragmática!

O governo não se comunica e não estimula a comunicação.

Além disso, trata-se de um problema para o qual, diferentemente da economia, não há esperança de melhorarmos em um ou dois anos.

O apagão político do governo continua progredindo a todo vapor!

A presidenta Dilma e seus principais ministros continuam adeptos do mais entusiástico “far niente” quando se trata de intervir democraticamente no debate político nacional. Não falam nada, não contratam um porta-voz e não criam uma secretaria decente de imprensa.

Este é um problema que, infelizmente, nem a cerveja poderá nos ajudar, pois a degeneração do debate político destrói nosso paladar e esquenta nossa bebida.

A falta de política e comunicação adoece o caráter das novas gerações, como já vem acontecendo, e aniquila o que nós, que gostamos tanto do debate, das polêmicas, da participação, mais prezamos: o amor pela democracia.

Quando morre o amor pela democracia, num país ainda em processo de desenvolvimento, abre-se espaço para o autoritarismo da mídia, mesmo que com trajes democráticos; e passamos a ser governados por plutocratas astutos.

Por fim, também morre o amor pela cerveja, que ao invés de uma bebida filosófica, que estimula o debate político (mesmo que travestido de conversa fiada), se torna uma garapa sem graça, usada apenas para nos escondermos da dolorosa constatação de que nossa opinião não vale nada.


 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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