Considerações de guerra


Falarei sobre dois assuntos: do golpe de misericórdia que a mídia prepara para o PT, e do “relatório Thomas Traumann”, sobre a comunicação do governo. Em seguida, teço algumas considerações políticas gerais.

O PT e o governo parecem alegres cordeirinhos saltitando na direção do matadouro.

A Operação Laja Jato, tanto pela maneira como vem sendo conduzida pelos promotores, como por sua repercussão na mídia, já mostrou a que veio.

O objetivo é garrotear qualquer financiamento privado para o PT em 2016 e 2018.

Doar para o PSDB, PP, PMDB, pode.

Para o PT, não pode.

Essa é a razão pela qual Gilmar Mendes, numa atitude incrivelmente autoritária, segura há quase um ano a votação no STF que proibiria doações empresariais para campanhas políticas.

Com a criminalização inclusive das doações legais para o PT, a oposição tentará ainda um golpe de misericórdia, que é tolher até mesmo o fundo partidário.

Nem PT nem governo reagem politicamente.

O PT apenas consegue lutar através de iniciativas burocráticas e institucionais.

“PT entra na Justiça contra delator”.

“PT vai ao CNJ contra Gilmar Mendes”.

São medidas necessárias, mas sem iniciativas propriamente políticas, ou seja, sem a produção de conteúdo intelectual, sem convencimento da opinião pública, elas não dão resultado, ou tem sua força comprometida, por depender da opinião de juízes que, em sua maioria, se posicionam ideologicamente contra o PT (até porque formam o “nicho” social mais visado pela mídia de opinião).

*

Sobre o relatório “Thomas Traumann”, juro que pensei se tratar de um documento apócrifo e mentiroso.

Se for verdadeiro, trata-se de mais um tiro no pé.

O governo não faz nada em matéria de comunicação ou política, e ainda vaza para a imprensa o único documento em que propõe, em linguagem vulgar, uma reação?

O documento fala o óbvio ululante, embora em termos esquemáticos, traduzindo esse vício medíocre de analisar a comunicação, um universo profundamente subjetivo, em termos puramente contábeis.

É uma confissão chorosa de erros.

O pior, no entanto, não é isso.

O objetivo principal do vazamento parece ser o de expor, desqualificar e difamar os blogs, o único espaço de debate político que foge ao controle da grande mídia.

Ou seja, o documento acusa o governo (com razão) de praticar uma comunicação péssima, mas o próprio documento, e sobretudo a maneira como foi vazado, é uma comunicação ainda desastrosa.

O governo, além de não se comunicar, além de não estabelecer políticas públicas em prol da diversidade da informação, ainda vaza documentos que prejudicam os blogs independentes?

Trechos:

“A campanha digital Dilma/2010 foi mais de resistência e de combate a boatos do que de convencimento. Os blogues não geraram conteúdo, mas foram fundamentais na propagação de reportagens da grande imprensa como caso Paulo Preto e da bolinha de papel.”

Não é verdade.

As remontagens das cenas da bolinha de papel que chegaram à TV sobre a bolinha de papel foram produzidas nas redes sociais e blogs.

Além disso, no debate político, a veiculação de argumentos e opiniões diferentes, o contraponto, também deve ser incluído na categoria de “conteúdo”.

Mas até aí tudo bem. Essa coisa de “conteúdo” é uma questão polêmica.

A blogosfera se autocritica muito por essa característica de apenas “rebater a mídia”, e produzir pouco conteúdo próprio, uma deficiência que nasce de uma causa óbvia: é muito caro produzir reportagem.

Mas é uma deficiência que ela já superou. Hoje a produção de conteúdo próprio pela blogosfera cresce muito rapidamente, e financiada pelos próprios leitores.

É preciso publicidade, e o mercado publicitário brasileiro, público e privado, está amarrado a status quo da Globo e seus tentáculos.

Outro trecho:

“O início do primeiro governo Dilma, no entanto, foi de rompimento com a militância digital. A defesa ferrenha dos direitos autorais pelo Ministério da Cultura e o fim do diálogo com os blogues pela Secom geraram um isolamento do governo federal com as redes que só foi plenamente reestabelecido durante a campanha eleitoral de 2014.”

A expressão “diálogo” está sendo usada pelo pistoleiro-mor da Veja para sugerir venalidade.

Claro, o pistoleiro pensa a partir de seus próprios parâmetros…

Na verdade, voltamos à velha tática da mídia. O governo entrega 99,9% das verbas para a grande mídia e 0,01% para meia dúzia de revistas e sites não alinhados à mídia hegemônica.

O escândalo, segundo a mídia, é os 0,01%.

Devia, segundo ela, ser zero absoluto.

Os blogs, por sua vez, são acusados “preventivamente”.

Ou seja, antes mesmo que haja qualquer democratização dos recursos institucionais, os blogs são acusados de recebê-los.

Com isso, eles aterrorizaram o próprio governo, cujos servidores não quererão se expor, não quererão jamais ser tratados como os bandidos que incluíram blogs de esquerda na carteira de veículos de mídia que podem receber recursos públicos.

Só quem pode receber, claro, é o Fernando Rodrigues, do UOL, que faz um “excelente trabalho” selecionando os nomes que podem ou não ser divulgados na lista do Suiçalão.

Há séculos, a grande mídia brasileira mama nas tetas do Estado, e os blogs, antes mesmo de receberem qualquer publicidade oficial, são tratados como criminosos pelo simples risco de que também possam recebê-la, no futuro.

Eu mesmo, e alguns leitores, já pedimos ao governo que não desse nada a ninguém.

Todo mundo no zero.

O governo podia usar toda a verba oficial de publicidade em programas de educação.

Não seria a medida mais justa do mundo, porque a mídia recebe recursos do Estado há muito tempo. Por que parar de anunciar exatamente no momento em que aparecem novas mídias?

Mas tudo bem. Corte-se a verba para todos. Invista-se, ao invés disso, em políticas para formação de públicos e fomento a uma diversidade autossustentável.

Seria uma revolução!

Como está é que não pode continuar: a mídia recebe 99,9% e ainda consegue criminalizar as mídias não-alinhadas por receberem 0,01%…

Ou mesmo, como é o caso da grande maioria, não recebendo nada.

E aí, quando recebe, é “bandido”, “pistoleiro”, “blog sujo bancado com verba pública”.

Há um trecho que menciona mais diretamente o papel da blogosfera no debate político, e que, portanto, foi logo destacado pelo pistoleiro da Veja:

“As responsabilidades da comunicação oficial do governo federal e as do PT/Instituto Lula/bancada/blogueiros são distintas. As ações das páginas do governo e das forças políticas que apoiam Dilma precisam ser muito melhor coordenadas e com missões claras. É natural que o governo (este ou qualquer outro) tenha uma comunicação mais conservadora, centrada na divulgação de conteúdos e dados oficiais. A guerrilha política precisa ter munição vinda de dentro do governo, mas ser disparada por soldados fora dele.”

Sou obrigado a me repetir.

O governo, além de não ajudar em nada nessa encarniçada guerra política que travamos contra as mentiras diárias da mídia, ainda atrapalha.

Não democratiza a mídia, dá dinheiro para a Globo, e ainda vaza um documento em que associa a blogosfera a uma “guerrilha política com munição vinda de dentro do governo, mas disparada por soldados fora dele”.

Valha-me Deus!

O uso do termos “soldados” expressa bem a ignorância abissal de governo, partidos e quase todas as organizações de esquerda, mesmo de seus quadros mais progressistas, sobre a importância da diversidade para a saúde democrática e, portanto, para a sobrevivência de ideias não alinhadas ao hegemonismo ideológico da grande mídia.

Sindicatos, partidos e governos, mesmo os supostamente progressistas, têm medo da diversidade, porque não podem controlá-la.

Mesmo apanhando da mídia, preferem-na, porque a conhecem, porque a mídia comercial tem uma boa imagem (criada por ela mesmo) junto à opinião pública.

Por outro lado, é sintomático que, quando a blogosfera começa a ganhar prestígio real enquanto produtora de conteúdo, enquanto investigadora, enquanto crítica do próprio governo, apareça um documento da Secom associando os blogs a “guerrilha política” do governo…

Com isso, eles fecham o círculo.

O governo não fala nada.

O governo só apanha.

E agora os blogs, além de serem processados judicialmente por Ali Kamel, são criminalizados politicamente – com ajuda do próprio governo.

Segundo essa interpretação preconceituosa, as investigações dos blogs sobre a sonegação dos barões da mídia, sobre a falta de água, as entrevistas com Thomas Piketty, etc, não são jornalismo.

São “guerrilha”.

Outro dia saiu notícia sobre uma propina de R$ 50 mil a um blogueiro da Veja, paga por uma empreiteira envolvida na Lava Jato.

Veja e da Globo ganham milhões de governos. Os governos de SP compram, sem licitação, dezenas de milhares de assinaturas da Veja e São Paulo.

O blogueiro oficial da mídia ganha propina de empreiteira.

Seus proprietários e colunistas tem contas secretas no Suiçalão.

As contas secretas dos franceses no HSBC eram quase todas fruto de evasão fiscal. Não acho, portanto, que o caso dos brasileiros seja diferente.

Ah, mas os criminosos, os guerrilheiros políticos, os soldados, são os blogueiros…

A situação revela ainda uma triste condição da blogosfera.

Com a reeleição da presidenta Dilma, eu tive uma esperança.

Tive esperança que o governo se afirmasse politicamente, gerando um espaço de liberdade onde os blogs pudessem, enfim, sair um pouco desse universo asfixiante que é a guerra entre PIG X PIG: partido da mídia versus partido do governo.

Por ocasião do ataque terrorista ao jornal francês Charlie Hebdo, o Le Monde entrevistou um jornal da esquerda síria, para apurar como os diferentes espectros ideológicos do islamismo se posicionavam na polêmica que se criou.

O Le Monde conta que a publicação tinha uma postura crítica, ou mesmo de oposição, ao governo Bashar al-Assad, por razões óbvias: é um ditador, sem grandes compromissos com o bem estar social e sem nenhum respeito pela opinião divergente.

Entretanto, quando começaram os ataques imperialistas ao governo sírio, a esquerda do país imediatamente se uniu em defesa de Bashar al-Assad. Por razões também óbvias: a desestabilização do governo, ou sua derrubada, não visavam cumprir nenhuma agenda social em prol da classe trabalhadora síria, mas apenas substituí-lo por um governo corrupto aliado aos setores mais cínicos do Ocidente. Como fizeram na Líbia, no Egito, na Ucrânia, como fizeram durante décadas no mundo inteiro.

A mesma coisa vale para os governos petistas.

Quando o segundo governo Dilma começou, achei que, finalmente, teríamos uma conjuntura de estabilidade política que nos permitiria, aos blogs e redes progressistas, fazer críticas contundentes ao governo, pressionando-o a adotar iniciativas mais ousadas em prol da classe trabalhadora, incluindo aí os setores médios. Afinal, queremos pressionar o governo a apertar o cerco contra a sonegação, a instituir um sistema tributário mais progressivo, onde os ricos paguem mais, a democratizar a mídia, etc.

Com isso, nos libertaríamos, enfim, da pecha de “chapa-branca”, com que a mídia corporativa, que se consolidou, em termos financeiros, sociais e políticos, como a grande chapa-branca oficial do regime militar, tentava (e ainda tenta) desqualificar nosso trabalho.

Fazer uma crítica ao governo que possa influenciá-lo é um capital politico que a mídia quer exclusivamente para si.

Mas o governo capitulou e a ofensiva midiática se tornou ainda mais asfixiante.

Agora somos forçados, novamente, a defender o governo, mesmo sendo um governo fraco, que não se defende, um governo que nunca propôs um debate sobre a importância da pluralidade e diversidade da informação, e que, para cúmulo, ainda vaza documentos que servem como munição para que nos ataquem.

Um governo que elogia aqueles que os xingam, e age com indiferença em relação àqueles que tentam defendê-lo.

Por que somos forçados, pelas circunstâncias, a defender esse governo?

Porque, conforme vimos no dia 15 de março, os que pretendem derrubá-lo, não querem fazê-lo em prol do bem estar da classe trabalhadora.

Eles querem reimplantar o neoliberalismo e vender barato nossa soberania aos Estados Unidos.

A presença, não importa se pontuais, de faixas pedindo intervenção militar, ainda por cima em inglês, mostra claramente o perigo que voltamos a correr.

Os golpistas procuraram, explicitamente, atrair os abutres imperialistas internacionais.

Pode parecer simplório, mas infelizmente é a pura verdade.

O discurso contra a corrupção, por sua vez, é infinitamente hipócrita.

Todas as instituições do Estado brasileiro são corruptas: Ministério Público, Judiciário, políticas estaduais, estatais.

As instituições privadas também são corruptas, pois o Brasil é o país com maior sonegação do mundo.

A imprensa é corrupta. Seus repórteres mentem descaradamente.

Mas a nossa mídia conseguiu vender à opinião pública a narrativa de que a corrupção está centrada no PT.

Para isso, articulou e patrocinou nova patranha judicial.

Empreiteiros e servidores são presos por tempo indeterminado, até que delatem o PT, e assim constróem um novo mensalão.

O Globo não esconde a estratégia, como mostra o editorial de hoje: “Chegou a hora do lulopetismo no petrolão”.

Foi muito esperto, da parte deles, publicarem o suiçalão dos barões da mídia na véspera do 15 de março. Agora abafam completamente, como fizeram com a compra da reeleição, o Banestado, a privataria, o mensalão tucano, o helicóptero com 500 quilos de pó, o aecioporto, etc.

A mídia consegue produzir uma realidade paralela.

Veja o caso do PT.

Imagine um partido de esquerda que começou do zero, sem dinheiro, sem ajuda estatal, sem mídia, contra tudo e contra todos.

Imagine que após somente 30 anos, esse partido tenha se tornado o partido com maior número de deputados na Câmara, um dos maiores no Senado, um dos maiores em número de prefeitos (incluindo a maior cidade do país) e governadores.

Um partido que ganha há quatro eleições seguidas, a presidência da república.

Um partido que recebe a maior quantidade de recursos partidários, que tem o maior tempo de TV.

Um partido que tem o maior número de militantes no país.

Um partido que acumula uma dolorosa e longa experiência de crise política, em virtude dos ataques que sofre, desde que chegou ao poder, por parte dos estamentos aristocráticos, plutocráticos e midiáticos.

Essa experiência de crise política também é um patrimônio, porque permitirá a este partido, no futuro, a construir estratégias de defesa.

Imagine um partido assim.

Pois é esse partido que a mídia conseguiu transformar num “trapo”?

Esse é um partido “morto”?

Sim, o PT pode diminuir em 2016 e perder a presidência em 2018, se não perder ainda antes.

O PT é um partido que cometeu grandes erros políticos, como aliás todos os partidos, na história do mundo, já cometeram.

O PT foi acossado pela corrupção, como todos os partidos do mundo, incluindo os de esquerda, foram acossados.

Mas seria uma leviandade afirmar que o PT morreu.

O PT se tornou grande demais, orgânico demais, brasileiro demais, para morrer assim.

Ele se consolidou como um patrimônio da nossa democracia, assim como o PMDB, o PCdoB, o PSOL e o PSB.

O DEM é que tem flertado com a morte desde o início do governo Lula, por sua incapacidade de entrar no jogo político como oposição.

Mesmo assim, o DEM sobrevive.

Ninguém morreu, ninguém foi derrubado. Ainda temos muito jogo pela frente.

Mas o governo precisa jogar. E parar de fazer gol contra!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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