Reflexões pós-paneleiras

Ontem foi um dia estranho, nervoso.

Um dia de acreditar em golpe.

À tarde fui bater um papo com o Caíque Tibiriçá, secretário da Jandira Feghali e representante, no Rio, do chamado Grupo Brasil, um movimento nacional organizado justamente para formar a resistência ao golpe paraguaio que mídia, Cunha e setores do PSDB querem aplicar no governo.

Caíque é um dos organizadores da manifestação do dia 20 de agosto, que visa dar uma resposta à marcha golpista do dia 16.

Não saí otimista do papo. Caíque me pareceu bastante preocupado, e me contou que o governo não está ajudando.

É uma coisa esquizofrênica: de um lado, o movimento social tentando salvar o governo; de outro, o próprio governo atirando, dia e noite, furiosamente, contra o próprio pé.

Mercadante aparecera, no dia anterior, chamando o PSDB para “conversar”.

Conversar a gente conversa sempre, explicou Caíque, isso não é problema. A esquerda madura não é sectária.

A maneira como Mercadante se posicionou é que foi lamentável, como que se curvando diante dos adversários.

Mercadante simboliza hoje tudo o que o governo tem de pior, de mais pusilânime.

Ninguém vê Mercadante fazendo uma mísera defesa do governo, em momento algum. No início do ano, ele deu uma entrevista, para Miriam Leitão, na tv fechada… Fora isso, nada.

Nem uma entrevista, nem uma declaração. Ao menos, nada que tenha causado qualquer repercussão positiva em favor do governo.

Não ajuda em nada.

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a mesma coisa.

Não se posiciona, não dá uma opinião.

Sua relação com a sociedade se dá exclusivamente via Globo, Folha, Veja ou Estadão.

A cúpula tucano-petista do governo é absolutamente submissa aos quatro cavaleiros do apocalipse midiático.

E aí, quando alguem deles fala, é sempre para chancelar a narrativa da mídia, capitular, entregar os pontos.

São uns derrotados por natureza!

Voltando ao dia de ontem, apesar do aprofundamento da crise política, eu estava tranquilo, quase estoico, ponderando reflexões assim: “se vier o golpe, enfrentaremos com energia, mas serenidade.”

Por outro lado, o governo demonstra tanta apatia, deixa transparecer tanta incompetência política, que a gente quase pensa: bem feito!

Aí o dia terminou com a propaganda do PT na TV e um tremendo panelaço nas grandes cidades, em especial nos bairros de classe média.

A política tem umas coisas estranhas.

O panelaço foi grande, e mesmo assim me pareceu um anticlímax.

Perdeu o sabor de novidade, e começou a ficar ridículo.

Nas periferias e áreas pobres, quase não se ouviu nada.

Em São Paulo, terra da tucanolândia, onde rádios, jornais, tvs, redes sociais, trituram o PT dia e noite, não se ouviu panelaço na periferia. E não sou eu que digo, mas o próprio boletim tucano por excelência.

Eu terminei a quinta-feira na Lapa, num desses bares que Nelson Rodrigues chamaria de “bar ideológico”, onde comunistas, anarquistas, socialistas, petistas, esquerdistas, malucos, artistas, sentam-se em mesas na rua, para analisar a conjuntura nacional e mundial.

Bebendo Serra Malte com dois colegas de Barão, o Theo Rodrigues e o Gilberto Souza, discorríamos calmamente sobre o golpe.

A aprovação, pela House of Cunha, de todas as contas dos governos anteriores, deixando a bola na marca do gol (as contas do governo Dilma) para chutar mais tarde, não é bom sinal.

Gilberto dizia não acreditar em golpe. Theo e eu estávamos pessimistas.

Pessimistas, mas calmos. Bem humorados, até ( algumas cervejas permitem essas contradições).

Não deixa de ser morbidamente engraçado que, em pleno 2015, o Brasil, após 13 anos de vigoroso crescimento econômico, desemprego baixíssimo, melhora do poder aquisitivo da população, imensas obras de infra-estrutura em andamento, programas inovadores, revolucionários mesmo, no campo da educação (Ciência Sem Fronteiras, Prouni, Pronatec, etc), e da Saúde (Mais Médicos, Brasil Sorridente, etc), discuta a deposição de uma presidente da república eleita com 54 milhões de votos.

De uma coisa, porém, não podemos mais ser acusados: não sermos autocríticos.

A querida Dilma e o famigerado PT apanham que nem gente grande nos bares políticos da Lapa.

Por que não fizeram isso, por que não fizeram aquilo, nos perguntamos, e talvez seja isto o que mais nos causa indignação, mais até que o golpismo.

Por que os golpistas sempre foram golpistas, e no fundo não nos surpreende que eles continuem sendo golpistas e se aproveitem dos erros políticos do governo para fazerem a única coisa que sabem fazer: golpe.

O que nos revolta, mais que tudo, é a apatia do governo.

Não somos burros ou sectários ou radicais.

Entendemos tudo.

Aceitamos (quase) todos os acordos.

Já defendemos coisas inomináveis, como o encontro entre Lula e Maluf, para garantir mais tempo à Haddad e assegurar sua vitória eleitoral.

O que não aceitaremos nunca, porém, é a covardia, a omissão, o silêncio.

Conversamos também sobre a Lava Jato.

Hegelianamente, entendemos a sua importância. Eu já escrevi sobre isso aqui no blog. Somente numa conjuntura como a que vivemos, com um governo fraco, sem condições de interferir em nada, poderíamos assistir a um abuso tão gritante de poder.

É como se vivêssemos uma era de terror judicial.

No entanto, esse terror, assim como todos os terrores, talvez tenha uma função profilática.

Nem poderá durar para sempre.

Haverá um refluxo em algum momento, e a sociedade terá aprendido que é preciso combater a corrupção, doa a quem doer, sem aliviar para ninguém, independente de sua filiação política, posição na hierarquia do Estado, ou magnitude de sua conta bancária – mas que os abusos de poder não podem ser tolerados.

Os abusos corrompem a luta contra a corrupção.

E então saberemos que é preciso fortalecer os órgãos de controle externo aos aparelhos de repressão, como o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça, que deveriam ser compostos não por membros dessas instituições, mas por juristas independentes, postos lá de preferência através de um processo democrático e transparente de escolha.

Procuradores, delegados e juízes não podem mais agir sem a moderação democrática de um poder externo.

Autonomia é importante; sem moderação democrática, porém, ela degenera rapidamente em abuso de poder, que é exatamente o que está acontecendo.

E abuso de poder por parte dos aparelhos de repressão é o preâmbulo de um estado fascista.

A questão da delação premiada terá de ser revista. Do jeito que está, é muito fácil montar uma conspiração, como estão fazendo na Lava Jato. Basta pressionar os réus para contarem uma historinha coerente com a narrativa do próprio Ministério Público.

Quem conta uma história diferente, não ganha delação premiada. Eis uma conspiração perfeita!

Ainda este mês, teremos delação premiada de Baiano, Duque, Cerveró e Marcelo Odebrecht. Não é preciso ser muito esperto, para saber que eles falarão exatamente aquilo que os procuradores querem ouvir: alguma coisa para detonar o PT e dar manchetes anti-governo à mídia.

Na maior cara de pau, ameaça-se as famílias dos réus, para que estes cedam à tortura psicológica imposta pela mão pesada do Estado.

Ainda ontem, assisti, no auditório do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, um seminário com o relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza.

Lanza criticou duramente os países latino-americanos, como o Brasil, que não avançaram na regulação da mídia.

O poder da mídia, diz ele, tornou-se um problema democrático, porque corresponde a um poder político de fato, e não é regulado como os outros poderes. O “check and balance” não vale para mídia, e com isso ela se torna uma besta-fera sem controle, despótica, antidemocrática.

Não por outra razão, a mídia latino-americana é historicamente golpista.

Todos os golpes de Estado dos últimos 50 anos, que aconteceram na América Latina, tiveram apoio protagonista da mídia corporativa; e os regimes autoritários que resultaram desses golpes foram sustentados pela mídia.

Em muitos casos, com financiamento explícito do capital norte-americano, como é o caso da Globo no Brasil.

A Time-Life subsidiou a criação da TV Globo e o Estado americano aprovou empréstimos a juros abaixo do mercado à Globo.

Lanza explicou que o cenário midiático da América Latina é totalmente diverso do que vemos na Europa e nos EUA.

Na Europa, até pouco tempo, a maioria das tvs eram públicas. Havia países ocidentais, democráticos, em que não havia tvs privadas.

Quando a Europa começa a entregar suas tvs para a iniciativa privada, ela somente o faz após aprovar uma rígida regulamentação.

Na Suécia, a instituição mais prestigiada do país é a tv pública, que realiza reportagens investigativas contra os poderes estabelecidos, sem aderir a nenhum golpismo, como acontece por aqui.

Nos EUA, há regulamentação bastante rígida da mídia, feita pela FCC, e foi esta regulação que permitiu o surgimento de uma enorme diversidade, que resultou, por exemplo, no sucesso das séries americanas no mundo inteiro.

Ainda na palestra do Sindicato, a professora Suzy dos Santos, da Escola de Comunicação da UFRJ, apresentou um painel com informações estarrecedoras sobre o passado de corrupção da Globo e o caráter oligárquico de todos os meios de comunicação tradicionais do país.

Tempos engraçados esses de hiper-informação.

A gente sente a atmosfera política no ar. É como um cheiro. Tem dia que cheira a golpe, tem dia que o cheiro diminui.

Hoje, por exemplo, o dia amanheceu com cheiro menor de golpe.  O panelaço não foi aquilo tudo, e a aprovação às pressas das contas de governos anteriores, pela turma de Cunha, gerou uma impressão de ridículo na sociedade.

A violência midiática produziu, afinal, uma armadilha para ela mesma.

Para manter o clima de crise política, a mídia tem que manter o frenesi em estado permanente de histeria.

Já ficou repetitivo, porém.

Prende Dirceu, solta Dirceu, prende Dirceu, solta Dirceu.

Dirceu, Dirceu, Dirceu.

Prende, prende, prende, prende, prende.

O povo acha legal, claro, prender os “grandes”, “ricos” e “poderosos”.

Mas essa campanha contra o PT também enche o saco.

E talvez alguém comece a desconfiar dessas denúncias explosivas toda semana, programadas como se fizessem parte de uma campanha orquestrada.

A oposição conseguiu enfraquecer o governo – isso é fato. Mercadante quase pediu ao PSDB para assumir o poder.

Entretanto, sempre que a situação chega no limite, que tudo parece perdido, que os prognósticos de fim de governo e fim do PT parecem mais convincentes, quando menos se espera, todos batem num muro invisível.

Um muro transparente, diáfano, translúcido.

A oposição consegue enxergar do outro lado do muro: vê o poder, vê as possibilidades de saquear as riquezas do país e entregá-las aos Estados Unidos.

Entretanto, apesar de invisível, transparente, translúcido, o muro é sólido.

O material do qual é feito é uma pergunta: quem vai substituir Dilma?

Esse muro é a própria democracia.

Qual será o processo de escolha do próximo presidente?

Novas eleições?

Ok. Mas será concedido tempo suficiente para que os diferentes projetos montem suas campanhas?

Quem serão os candidatos?

Aécio Neves, de novo?

Não soará um tanto ridículo fazer o Brasil, em plena crise econômica, gastar dezenas de bilhões de reais com uma nova eleição?

E para que? Para derrotarmos Aécio Neves novamente?

Sim, porque Aécio pode ganhar essas novas eleições; mas pode perder também, não?

No fundo, vai ser a repetição de 2014: a grande mídia e o capital estrangeiro apoiando Aécio, e todas as organizações da esquerda, sindicatos, movimentos sociais, nordeste, intelectuais, apoiando Lula.

Em novas eleições, a esquerda continuará votando na esquerda, só que dessa vez não aceitará mais promessas vazias de campanha.

Defendemos a legalidade contra o golpe, já começamos a montar, em todo país, uma rede de resistência que vai se tornar importante inclusive se não houver golpe.

Mas estamos todos muito magoados com o governo e com a presidenta Dilma.

Entenderíamos perfeitamente alguns recuos na política econômica.

Jamais, porém, o seu recuo na política.

Esse recuo, na conjuntura em que estávamos, representou um movimento de suicídio político.

O enfrentamento da mídia é a única maneira de Dilma recuperar a sua popularidade.

Se Dilma se tornou tão impopular, é porque não responde à mídia.

Claro que tudo vai depender da qualidade desse enfrentamento.

O enfrentamento tem de ser elegante, incisivo, culto, agressivo, irônico.

Dilma tem de abandonar de vez o vício do protocolo, dos rapapés, dos agradecimentos. Tem de se expressar com o máximo de naturalidade e liberdade.

A presidenta não dá entrevistas e aí, quando dá, é para a Globo, às três horas da manhã? Isso não é um desrespeito ao trabalhador pobre, que tem de acordar cedo?

Por que não organiza um pool de jornalistas progressistas para lhe entrevistar?

Por que não produz um programa semanal de TV, para falar ao povo sobre a conjuntura nacional?

Que espécie de presidenta é essa que se elege e, no dia seguinte, abandona o povo aos meios de comunicação da oposição?

Se Dilma não gosta de falar, então não gosta de política, e se não gosta de política, me desculpe, então é melhor renunciar mesmo e entregar o poder a Michel Temer, porque governar sem política é absolutamente impossível.

Ou então empodere um conselho político, composto pelos principais partidos da base, e entregue o poder a este conselho!

Em política, não confiamos em quem se omite. Isso vale, sobretudo, para os ministros da Comunicação, da Secom, da Fazenda e da Casa Civil.

A democratização da mídia tem de ser prioridade número 1 do governo. E democratizar a mídia é um processo cuja aprovação, no Congresso Nacional, de um novo marco regulatório, é apenas a última etapa.

Em primeiro lugar, é preciso vencer o medo de fazer o debate.

Em sua entrevista ao Jô, as três da manhã, ao ser perguntada sobre a regulamentação da mídia, a presidenta fez uma careta de medo e se calou.

Ora, Dilma, assim não dá.

Converse com o papa, com os representantes da ONU, leia um pouco sobre o assunto, reflita!

Se a presidenta não enxerga as consequências nocivas, à democracia, da concentração dos meios de comunicação, então ela não sabe o que é democracia, não ama a democracia e não merece, portanto, ser amada pelo povo.

E se enxerga e não fala, então está traindo o povo brasileiro, que a elegeu justamente para que ela, como representante política máxima da maioria da população, enfrente essas corporações privadas que, há séculos, exploram e enganam os cidadãos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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