A charada da Parceria Transpacífico de “livre comércio”

Por Carlos Eduardo, editor assistente do Cafezinho

A imprensa brasileira iniciou a semana exaltando a Parceria Transpacífico (TPP, do inglês Trans-Pacific Partnership), entre os EUA e outros 11 países. Como acontece com tudo que vem do Tio Sam, nossa imprensa noticiou o novo acordo com louvores e comentários positivos, sem nenhum contraponto.

Porém, um dos pontos mais polêmicos do acordo gira em torno das patentes sobre medicamentos e da propriedade intelectual da indústria farmacêutica. Os críticos dizem que o TPP visa somente o interesse do lobby das multinacionais do setor, prejudicando o interesse público. 

Um exemplo bastante elucidativo é dos medicamentos genéricos.

Caso o TPP entre em vigor do jeito que está, os países membros ficariam proibidos de importar, produzir ou comercializar medicamentos genéricos que violassem as patentes das multinacionais farmacêuticas.

A própria candidata à presidência norte-americana, Hillary Clinton, companheira de Barack Obama no partido democrata, criticou o projeto ao afirmar que “companhias farmacêuticas podem ter conseguido mais benefícios e os pacientes menos”.

No caso brasileiro, um acordo como este seria um desastre. O Brasil foi pioneiro no mundo ao criar uma legislação específica para genéricos, aumentando a concorrência e diminuindo os preços. A postura brasileira irritou as multinacionais do setor, mas depois de muita luta, vencemos essa batalha.

Se antes da lei entrar em vigor, em 2002, os genéricos representavam apenas 3,9% do volume de medicamentos vendidos no Brasil, hoje eles respondem por 30%. Ou seja, de cada três medicamentos vendidos, um é genérico.

Imaginem agora se o governo brasileiro seguisse os conselhos dos colunistas e comentaristas da imprensa e aderisse à Parceria Transpacífico? Toda nossa luta pelos genéricos seria jogada no lixo – sem falar no fato de que não temos saída para o oceano Pacífico, o que torna a crítica da imprensa um tanto quanto ridícula, mas isto é assunto para outro post.

Como o TPP ainda precisa ser votado no senado americano é possível que a cláusula sobre patentes de medicamentos seja derrubada até lá. No entanto, meu ponto aqui é mostrar que nem tudo são flores nesse novo acordo, como deu a entender nossa imprensa.

Abaixo segue artigo de Joseph E. Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia e professor da Universidade de Columbia, e Adam S. Hersh, economista sênior do Roosevelt Institute.

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A charada da Parceria Transpacífico

Por Joseph E. Stiglitz e Adam S. Hersh, traduzido do site Project Syndicate.

À medida que negociadores e ministros dos Estados Unidos e de 11 outros países da costa do Pacífico se reúnem num esforço para finalizar a ampla Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), um pouco de sóbria ponderação se faz necessário. O maior acordo de comércio e investimento regional da História não é o que parece.

Muito se ouvirá sobre a importância da TPP para o “livre comércio”. Mas a verdade é que se trata de um acordo para administrar as relações de comércio e investimento de seus membros — e fazê-lo segundo os interesses dos lobbies mais poderosos de cada país. Não se engane: considerando-se as principais questões em destaque, sobre as quais os negociadores ainda estão regateando, fica evidente que a TPP não é sobre comércio “livre”.

A Nova Zelândia ameaçou abandonar o acordo por causa da forma como Canadá e EUA regulam o comércio de produtos laticínios [Os laticínios correspondem por 95% das exportações neozelandesas]. A Austrália não está contente com o modo que EUA e México administram o comércio de açúcar. E os EUA não estão satisfeitos com a maneira como o Japão gerencia o comércio de arroz. Esses segmentos são apoiados por grupos sociais com importante peso eleitoral em seus respectivos países. E eles representam apenas a ponta do iceberg em termos de como a TPP avançará uma agenda que, na verdade, opera contra o livre comércio.

Para início de conversa, consideremos o que o acordo faria para expandir os direitos de propriedade intelectual para as grandes companhias farmacêuticas, analisando versões vazadas do texto em negociação. Um estudo da American Economic Research mostra que o argumento de que tais direitos de propriedade intelectual estimulam a pesquisa é, no mínimo, débil.

Aliás, há evidência do contrário: quando a Suprema Corte invalidou a patente da Myriad sobre o gene BRCA, houve uma explosão de inovação, que resultou em melhores testes e custos mais baixos [em 2013, a suprema corte americana decidiu que os genes humanos não podem ser patenteados, invalidando a patente da empresa farmacêutica Myriad Genetics]. De fato, provisões na TPP iriam restringir a concorrência aberta e elevar preços para os consumidores nos EUA e em todo o mundo — maldição do livre comércio.

A TPP iria lidar com o comércio de medicamentos por meio de uma variedade de mudanças de regras aparentemente arcanas sobre itens como “vínculo entre patentes”, “exclusividade de dados” e “biológicos”. O resultado é que as companhias farmacêuticas obteriam efetivamente licença para ampliar — em alguns casos indefinidamente — seus monopólios sobre patentes de medicamentos, manter os genéricos mais baratos fora do mercado e bloquear concorrentes “biossimilares” de lançarem novos medicamentos durante anos. É desta forma que a TPP vai lidar com o comércio do setor farmacêutico, se os EUA impuserem sua voz.

Da mesma forma, considere como os EUA pretendem usar a TPP para lidar com o comércio do setor de tabaco. Durante décadas, as companhias de tabaco com sede nos EUA vinham usando mecanismos de adjudicação de investidores estrangeiros, criados em acordos semelhantes à TPP, para escapar de regulações desenhadas para conter o flagelo para a saúde pública que o ato de fumar representa. Sob estes sistemas de solução de controvérsias entre investidor e Estado (ISDS, da sigla em inglês), os investidores estrangeiros obtêm novos direitos de processar governos nacionais mediante a ligação de arbitragem privada em relação a regulações que eles vejam como redutoras das projeções de lucro de seus investimentos.

Interesses corporativos internacionais tornaram o ISDS necessário como proteção aos direitos de propriedade onde faltam a regra da lei e uma Justiça eficaz. Mas o argumento não faz sentido. Os EUA estão buscando o mesmo mecanismo em um mega-acordo similar com a União Europeia, a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, embora haja muito pouca dúvida sobre a qualidade dos sistemas legal e judicial da Europa.

Para garantir, os investidores — onde quer que considerem seu lar — merecem proteção de expropriação ou regulações discriminatórias. Mas o ISDS vai além: a obrigação de compensar os investidores por perdas de lucro previsto pode e tem sido aplicada mesmo onde as regras não são discriminatórias e o lucro provém de malefícios ao público.

A ex-corporação conhecida como Philip Morris está processando atualmente com base nesse tipo de regra a Austrália e o Uruguai (que não é um parceiro TPP), por exigirem a inclusão de avisos nos maços de que cigarros fazem mal à saúde. O Canadá, ameaçado de um processo semelhante há alguns anos, desistiu de adotar tal alerta.

Dado o véu sigiloso em torno das negociações da TPP, não está claro se o tabaco será excluído de alguns itens da ISDS. De qualquer modo, a questão maior continua: tais provisões tornam mais difícil para os governos conduzirem suas funções básicas — proteger a saúde e garantir a segurança de seus cidadãos, buscar a estabilidade econômica e proteger o meio ambiente.

Imagine-se o que teria ocorrido se tais normas estivessem em vigor quando os efeitos letais do amianto foram descobertos. Em vez de fechar os fabricantes e forçá-los a indenizar aqueles que foram prejudicados, sob o ISDS, os governos teriam que pagar aos fabricantes para não matarem seus cidadãos. Os contribuintes seriam atingidos duas vezes — primeiro ao pagar para tratar os efeitos nocivos do amianto à saúde, e depois ao compensar os fabricantes pela perda de lucros, quando o governo atuou para regular um produto nocivo.

Não deveria surpreender que os acordos internacionais dos EUA produzam mais controle do que livre comércio. É isto que ocorre quando o processo de gerar regras é fechado a participantes não empresariais — sem mencionar os representantes eleitos do povo no Congresso.

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Para entender melhor a questão do tabaco, citada por Stiglitz e Hersh, recomendo este episódio de Last Week Tonigh with John Oliver. Mesmo sendo um programa de comédia, eles tratam de assuntos bem sérios e explicam o absurdo que é permitir à indústria do tabaco processar governos de países que tentam regular o consumo de produtos patenteados por essas empresas. Infelizmente o vídeo está em inglês, sem legendas em português.

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