Quanto Vale a vida?

Mariana (MG) - Área afetada pelo rompimento de barragem no distrito de Bento Rodrigues, zona rural de Mariana, em Minas Gerais (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho

Eu escrevo sob um chão seco, coberto por pisos e cercado por paredes bem fixas e sólidas. Provavelmente, você, leitora, leitor, também esteja lendo esse texto sob um chão seco, cercado por paredes fixas e sólidas, com a certeza de que sua fome será saciada tão logo ela chegue, assim como sua sede e seu sono.

Mas eu não quero falar de nós. Nem da nossa tão certa segurança.

Eu quero falar de pessoas que, em um piscar de olhos, perderam a vida como conheciam e agora vivem um novo mundo que não escolheram, muito menos fizeram por merecer.

Na tarde da última quinta-feira (5), por volta das 15h, o rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco, propriedade da Vale e da empresa anglo-australiana BHP, liberou um mar de 62 milhões de metros cúbicos de lama.

O subdistrito de Bento Rodrigues foi dizimado. Mais de 600 pessoas, que moravam no local, tiveram suas casas soterradas, sem qualquer possibilidade de recuperação. Os dados oficiais contabilizam, hoje, oito mortos, dentre eles, três prestadores de serviços à Samarco, uma menina de cinco anos de idade e um menino de sete anos. A lista oficial de pessoas desaparecidas conta com 21 nomes, sendo 11 de funcionários da Samarco.

Toda a população de Bento Rodrigues que não está morta ou desaparecida foi abrigada em hotéis e pousadas de Mariana, cidade a 35 km do vilarejo. São pessoas que só têm, agora, a certeza de um futuro incerto.

Além de Bento Rodrigues, o tsunami de lama afetou outros distritos mineiros, como Camargos, Paracatu e Ponte do Gama. Chegou ao Rio Doce, prejudicando a distribuição de água de dezenas de cidades, não só de Minas Gerais como também do Espírito Santo.

Os habitantes das cidades atingidas passaram a viver em estado de calamidade pública, como conta uma moradora de Governador Valadares (MG), que preferiu não ser identificada: “A situação de Valadares é ‘estado de guerra’. O rio está morto. Todo mundo está falando que é pra ir embora, não ficar aqui; que não é pra pensar em vestir, é pra pensar em beber. Eles estão mandando água para as escolas, mas o povo está saqueando os caminhões pipa. Eu não sei o que fazer. Valadares é a única cidade que não tem outra captação de água. Tem criança que não tem o que comer e beber em casa. É como se fosse guerra mesmo”.

Guerra.

O rompimento das barragens foi a “bomba de Hiroshima” no Brasil. Os efeitos da destruição que o mar de lama causou serão sentidos por, no mínimo, mais dez anos. Foram destruídas cidades, famílias, casas, escolas, a fauna e a flora regional.

Um laudo de amostras coletadas no Rio Doce aponta concentração de metais como mercúrio, arsênio, ferro e chumbo em níveis muito acima dos aceitáveis. São substâncias tóxicas, que podem afetar todo o organismo da população a elas exposta. Peixes, anfíbios, répteis, algas e toda a vida que dependia do Rio Doce estão sendo afetados. Para tentar impedir a extinção de 100% das espécies que habitam o leito do rio, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Espírito Santo iniciaram uma operação, denominada “Arca de Noé”, coletando animais.

Os rejeitos tóxicos contribuem também para a infertilidade do solo da região, pois a lama, conforme for secando, dificultará a penetração de água. Em se plantando, nada mais ali nascerá pelos próximos anos.

É o maior desastre ambiental da história do Brasil. Porém, curiosamente, não vem sendo tratado como tal.

Vale e BHP limitam-se a dar declarações vazias e frias por meio de notas de assessoria de imprensa.

Um dia após o rompimento, a Vale declarou que “lamenta profundamente o grave acidente ocorrido nas barragens de rejeitos nos municípios de Mariana e Ouro Preto, em Minas Gerais, e solidariza-se com os empregados, suas famílias e as comunidades atingidas”. No mesmo sentido, o CEO da BHP, Andrew Mackenzie, deu uma declaração dizendo não saber a “a extensão total da situação”, mas estar “trabalhando junto com a Samarco e com a Vale para entender melhor a situação”.

Sobre os danos causados à população e ao meio ambiente, a Samarco também se manifestou por meio de nota: “A empresa reforça que o rejeito é o classificado como material inerte e não perigoso, conforme norma brasileira de código NBR 10004-04, o que significa que não apresenta riscos à saúde pública e ao meio ambiente. Proveniente do processo de beneficiamento do minério de ferro, o rejeito é composto basicamente de água, partículas de óxidos de ferro e sílica (quartzo)”.

O fato é que tanto Vale quanto BHP continuam em sua zona de conforto, sem sofrer qualquer arranhão com a tragédia que causaram. Por enquanto, a multa estipulada à Samarco pelo Governo Federal é de R$ 250 milhões. O Ibama também multará a mineradora em R$ 250 milhões e a prefeitura de Mariana deve cobrar multa de R$ 100 milhões para reconstrução de casas, escolas e pontes destruídas.

Os R$ 600 milhões já estipulados em multa para a Samarco são uma quantia risível ante os lucros da mineradora e de suas donas, Vale e BHP. Apenas em 2014, a Samarco lucrou R$ 2, 8 bilhões. Já a Vale, apenas neste ano, já acumulou receita líquida de R$ 62, 8 bilhões. Enquanto a BHP, maior mineradora do mundo, registrou lucro líquido de US$ 6,4 bilhões entre junho de 2014 e junho de 2015.

As empresas continuarão a ignorar o crime que cometeram enquanto todo o “prejuízo” que sofrerem puder ser sanado em um mês de lucro; enquanto suas atividades continuarem normalmente.

O presidente da Vale, Murilo Ferreira, disse, em entrevista coletiva, que tem “uma visão de longo prazo em relação a Samarco”. E que “agora, a decisão de retomar ou não as operações não será uma decisão da Vale e da BHP somente. Agregam-se a isso todos esses importantes stakeholders [partes interessadas]”. A Samarco disse ainda que não está “fazendo contabilidade dos custos e dos impactos financeiros do acidente”.

“Stakeholders”, “custos”, “impactos financeiros”.

Quando a ganância do lucro é mais importante do que a vida, pessoas são substituídas por palavras de mercado, crimes se tornam “acidentes”.

Outras barragens se romperão, outros milhares de pessoas terão suas vidas destruídas enquanto empresas como Vale e BHP continuarem a ter certeza de que, não importando o crime que cometam, continuarão sempre impunes e lucrativas.

Lia Bianchini:
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