A naturalização do horror

O genial desenho animado americano South Park, em um episódio chamado Dead Kids (Crianças Mortas), fez uma crítica mordaz à naturalização, pela população dos EUA, das chacinas de crianças em escolas. No episódio, os tiroteios que se sucedem na escola da cidade não são mais percebidos como absurdos ou chocantes. Ao invés, são tratados como eventos corriqueiros.

É horripilante constatar que caminhamos para a mesma naturalização diante da morte de inocentes por arma de fogo.

A retórica do “bandido bom é bandido morto” chegou à presidência da República e autorizou, implicitamente, as forças de segurança a condenarem suspeitos à pena de morte e a executarem, de pronto, a sentença fora da lei.

A autorização explícita foi encaminhada ao Congresso pelo ministro Sérgio Moro. A ampliação das hipóteses de legítima defesa proposta por Moro no seu “projeto anticrime” foi classificada por muitos juristas como uma licença para matar. “É um gesto de que não importa quanto a polícia mate, ainda é insuficiente para o quanto deve matar”, disse o juiz Marcelo Semer.

Sobre os 80 tiros do exército contra o carro que o músico Evaldo Rosa dos Santos dirigia pelas ruas do Rio de Janeiro, Moro disse que “esses fatos podem acontecer”. Evaldo foi morto pelos tiros. Seu sogro e um transeunte, também atingidos, estão no hospital. A esposa de Evaldo, seu filho de 7 anos e uma sobrinha de 13 sobreviveram. A família estava indo para um chá de bebê.

Jair Bolsonaro, autoridade política máxima do país, mantém sobre o caso, até agora, um silêncio ensurdecedor.

Além da licença para matar, temos como proposta governamental a facilitação do acesso a armas para toda a população.

Como se vê, colocamos no poder um grupo tacanho que usa a violência e a intimidação como métodos e, pior, as alça a condutas louváveis e redentoras.

Pensando bem, não chegaríamos a este ponto se a morte já não estivesse naturalizada. Anos à fio de reacionarismo penal midiático estão cobrando seu preço.

Há menos de um mês houve uma chacina em um colégio de Suzano, em São Paulo, cometida por dois jovens. Nos moldes das que ocorrem corriqueiramente nos EUA.

O General Mourão, vice-presidente do país, relacionou o massacre aos videogames violentos que um dos atiradores, Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, jogava. Guilherme tinha, no entanto, referências importantes fora do mundo virtual. Suas redes sociais revelaram que ele era um apreciador de armas e da família Bolsonaro.

Ao contrário dos zumbis do jogo Walking Dead, os Bolsonaro são pessoas de carne e osso. E sangue.

O poder de que estão investidos legitima a barbárie.

O estrago está, em boa medida, feito. Que possamos acordar desse pesadelo antes da completa naturalização do horror.

Atualização em 12/04/2019: Seis dias depois da morte de Evaldo, Jair Bolsonaro declarou o seguinte: “O Exército não matou ninguém, não, o Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino não. Houve um incidente, houve uma morte, lamentamos a morte do cidadão trabalhador, honesto, está sendo apurada a responsabilidade”.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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