Aos Ministros sem medo

Brasília - O Supremo Tribunal Federal (STF) realiza sessão extraordinária para encerramento do Ano Judiciário (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

por Gisele Cittadino e Rogerio Dultra dos Santos, no Democracia e Conjuntura

A revolução burguesa foi profundamente refratária ao Poder Judiciário. Venal, hereditário, aristocrático, o Poder Judiciário francês foi acantonado pela Revolução a ponto de não poder expressar-se a não ser através da lei. Apenas boca da lei, o Judiciário, na modernidade política, nasce como um poder menor. Um órgão a ser contido. Um órgão capaz de produzir a irracionalidade do decisionismo autocrático do antigo regime se liberado para funcionar sem controle.

Este fato, na história constitucional francesa, foi tão radical que até pouco tempo atrás, ainda nos anos 2000, o controle de constitucionalidade das leis não estava a cargo do Judiciário, mas sim de um Conselho Constitucional Legislativo, ou seja, dentro do Parlamento.

A história da consolidação do Judiciário no Brasil, embora possa se remeter ao modelo constitucional burguês, tem nuances fortemente distintas. O Poder Judiciário traz aqui a carga de sua potência de razão de Estado medieval. Nesse sentido, a configuração do Estado brasileiro se dá, em larga medida, a partir da institucionalidade colonial, da presença capilar do Judiciário: o juiz de paz, autoridade pública máxima e às vezes única, forjou a burocracia das instituições no país.

Essa trajetória do Judiciário brasileiro implica reconhecer a diferença estrutural entre um órgão contido pelo direito, limitado pela lei e controlado pela política em contraposição a um poder demiúrgico, capaz de entender o desenvolvimento da história brasileira à sua imagem e semelhança.

Então, ser juiz no Brasil sempre comportou, desde a colônia, e continuou a significar no Império e no advento da República, um status de caráter inegavelmente aristocrático. Sua função e operacionalidade nunca foram total ou seriamente delimitadas pela lei e pelas constituições. O decisionismo judicial brasileiro é modelar a ponto de merecer uma classificação sui generis: o juiz brasileiro sempre pôde decidir não porque é uma autoridade submetida à norma, mas porque é uma autoridade. Ponto.

“A autoridade, não a verdade, que faz a lei”, diz o aforismo hobbesiano. E o Judiciário brasileiro incorporou esta máxima autocrática a ponto de não pensar sequer em se submeter à Constituição. Nem mesmo quando cumpre a função de seu guardião. Após quase 30 anos de promulgada a Constituição Cidadã, não é surpresa que o decisionismo judicial possa violar direitos fundamentais, ignorar o devido processo legal ou arvorar-se em regente republicano de uma camada da sociedade que, em sua sanha punitivista, julga-se proprietária exclusiva da virtude. Afinal, um juiz ainda é uma autoridade.

Cinco anos atrás, se alguém, no Brasil, apontasse para a possibilidade de uma quebra da institucionalidade e de um regresso autoritário, em quaisquer dos seus moldes possíveis, seria, muito provavelmente, ignorado ou mesmo visto como um ser em delírio. Os poderes legislativo e executivo não só estabeleciam diálogos institucionais e conduziam o país através de processos democráticos e acordos políticos legítimos, como o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, destravava pautas não majoritárias e autorizava o aborto de fetos anencéfalos, as uniões homoafetivas, o uso de células-tronco embrionárias e a política de cotas para negros e indígenas.

Nesses tempos sombrios em que o decisionismo judicial prende para obrigar as delações que lhe interessam, arquiva investigações contra ator político de grupo inimigo, vaza seletivamente os depoimentos que sustentam aquilo que pretende provar, e ocupa tribunas variadas pedindo o apoio da população ao seu trabalho, o que faz o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição?

Desde logo, e como estratégia para não arriscar um único arranhão em sua própria autoridade, assiste, paralisado, aos desmandos da outra autoridade. Como acredita que sua legitimidade decorre exclusivamente do fato de que é autoridade, colocar limites à autoridade alheia representa colocar limites em si próprio.

Quando um ministro do STF não consegue nem mesmo definir um conflito de competências, como fez recentemente a ministra Rosa Weber, a informação que chega ao conjunto da sociedade é que a mais alta corte de justiça do país acredita que pode manter-se distante da crise. Para isso, até argumentos como “não gosto e não entendo de política” são utilizados, como se a um ministro do STF pudesse ser dado o direito de desconhecer a dimensão política de sua atividade.

Isso, no entanto, nem é o mais grave. Após várias decisões em processos de natureza penal e, especialmente, diante da relativização do princípio da presunção de inocência, o Supremo tem revelado o seu conservadorismo em matéria penal. Ao mesmo tempo, e como já salientamos, em questões de natureza comportamental (cotas ou união homoafetiva), o STF assume uma posição liberal.

Ambas agradam, sobremaneira, a classe média brasileira, aquela que os ministros encontram nos restaurantes e aviões do país.

Mas como serão lembrados os atuais ministros do STF em 2020 ou 2025? Como liberais ou como conservadores? Talvez uma outra avaliação seja feita no futuro. Pelo menos por enquanto, e diante da paralisia da corte suprema – com a enfática exceção de Marco Aurélio Mello –, os atuais ministros podem ser lembrados como vaidosos, pois não pretendem desgastar suas imagens diante de uma certa opinião pública que pertence ao grupo que encontram em restaurantes e aviões. Há, no entanto, uma alternativa pior: eles podem ser lembrados como covardes.

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