Comentários a partir da entrevista de Dilma à TV Brasil

A tão falada entrevista de Dilma Rousseff à TV Brasil, conduzida pelo jornalista Luis Nassif, segue abaixo. Eu faço alguns comentários em seguida.

A primeira coisa a chamar a atenção é o seguinte: por que Dilma esperou o golpe acontecer para, só aí, iniciar este périplo de entrevistas? Por que ela sumiu do mapa, por meses, após a eleição de 2014, produzindo um vácuo que, todos diziam, corresponderia a um suicídio político?

Por que Dilma esperou o impeachment ser aprovado na Câmara e no Senado para, só então, dar uma entrevista à TV Brasil?

Ela tinha que ter dado atenção à TV Brasil desde o primeiro dia de seu governo. Claro, havia toda uma discussão sobre se a TV Brasil é do Estado ou do governo. Pois justamente por haver essa discussão, uma discussão justa, necessária (e agora entendemos ainda mais a importância dela), a presidenta Dilma deveria ter participado dela pessoalmente, como era seu direito, enquanto mandatária eleita pela maioria da população (e não herdeira de um golpe), sentando-se junto aos membros do conselho da EBC, garantindo-lhes independência, recursos, autonomia, e ao mesmo tempo argumentando que, como chefe de Estado sob ataque da mídia privada, entendia que a TV pública deveria lhe garantir um espaço mínimo para expor seu ponto-de-vista.

Veja a atenção que a direita, no poder agora com Michel Temer, dá à comunicação: suas primeiras iniciativas foram no sentido de assumir o controle (mesmo que ao atropelo da constituição) da EBC e iniciar o asfixiamento financeiro e político de meia dúzia de blogs que lhe fazem oposição.

Às vezes eu me pergunto: se, por um milagre, Dilma voltar ao poder, ela entenderá a importância, para o país, para a estabilidade política de seu governo, para a própria existência de uma democracia, de um sistema de comunicação mais democrático; ou voltará a se ajoelhar no altar da mídia golpista?

Francamente, ela ainda não me convenceu de que, voltando, mudará alguma coisa neste sentido, então não sei como ela espera – sem uma estratégia de comunicação muito arrojada – reconquistar algum tipo de estabilidade política.

Voltando à EBC, por que não há debates eleitorais na tv pública? Não apenas para presidente, mas para prefeitos, governadores, deputados?

Um dos problemas centrais da nossa democracia é a falta de debates na TV. Num sistema presidencialista, numa das maiores democracias do mundo, os debates presidenciais são exibidos em horários totalmente incompatíveis com a disponibilidade do cidadão médio brasileiro.

Por que isso? Ora, a única explicação é que os grupos privados de TV não se interessam em oferecer à população um debate avançado, democrático, transparente, porque debates com essas qualidades são mais difíceis de serem manipulados segundo os objetivos particulares desses mesmos grupos.

Tanto se falou em reforma política, e a melhor reforma política para o Brasil, a mais simples, a mais factível, seria oferecer aos brasileiros mais debates eleitorais na tv aberta, em horários acessíveis, e valendo para todos os cargos eletivos. Com mais debates, ocupando um tempo mais longo na TV, as campanhas automaticamente ficariam mais baratas, o cidadão mais bem informado e o poder público, ao se aproximar mais da sociedade, tenderia a funcionar melhor.

Como falar em novas eleições, sem falar antes nas condições em que as eleições se darão? A única maneira de melhorar a qualidade dos nossos parlamentos seria, obviamente, permitir que os eleitores conhecessem mais os candidatos, não apenas em propagandas eleitorais de poucos segundos, mas em contínuos e frequentes debates na tv, cuja realização deveria inclusive ser regulamentada.

Michel Temer tenta cavar espaço na TV Brasil na base da força bruta, do autoritarismo, da demissão sumária de diretores e empregados que não lhe prestam obediência cega.

Dilma nunca agiu assim. Ela deu, efetivamente, autonomia à TV Brasil. Aliás, o governo do PT criou a TV Brasil, lutou para que esta tivesse recursos, contra a oposição acirradíssima das mesmas forças que hoje tentam assumir o controle da instituição, para destruí-la.

A prova disso é que esse conjunto de forças difuso que podemos resumir chamando-o simplesmente de “o golpe”, ainda hoje trabalha para que o sinal aberto da TV Brasil não chegue a nenhuma parte.

Não apenas se deixou de fazer a luta política dentro da EBC, como se deixou a instituição ser tomada por coxinhas que, esquizofrenicamente, hoje estão ao lado dos mesmos que querem a destruição da empresa. Essa esquizofrenia é muito comum, infelizmente: é a contradição principal da ideologia conservadora, cuja base é formada por uma classe média que se identifica com os valores do capital, não com os valores do trabalho.

No entanto, por razões que ainda demoraremos décadas para entender, a TV Brasil foi abandonada politicamente pelo governo Dilma, como aliás todo projeto sério de comunicação.

Isso é um problema que vem desde Lula, mas agrava-se com Dilma.

Os ministros de Dilma não davam entrevistas à TV Brasil.

Os programas da emissora não tinham audiência, não tinham interatividade com a internet (ainda não tem), e ninguém parecia se preocupar com isso.

Qual o sentido, por exemplo, em oferecer um programa para o Nassif, blogueiro de grande audiência, e não ter, desde o início, construído um sistema de interação com a internet?

Os programas não tinham audiência também porque o governo não parecia se importar. Por exemplo, uma entrevista com a presidenta da república, se bem divulgada, exibida em horário acessível, ajudaria a dar audiência a emissora. Por que Dilma preferia dar entrevista ao Jô Soares, às 3 horas da manhã? Por fetiche em relação à Globo?

O máximo que se fazia em termos de esforço por mais audiência era se encher a emissora de diretores demitidos da Globo, possivelmente na esteira desse fetiche doentio de alguns setores do PT em relação à mídia tradicional.

Entretanto, mesmo com todos esses problemas, a TV Brasil vinha evoluindo, vinha estabelecendo parcerias com tvs públicas de outros países e, se lhe fosse dado mais tempo, poderia vir (ou poderá vir) a ser um participante vital em nossa democracia.

Voltando à entrevista, Nassif fala do aumento da relação entre Dilma e a população, durante o processo eleitoral, o que elevou muito a sua aprovação, e pergunta porque essa relação interrompida após as eleições, mesmo após a oposição deixar claro que estava disposta a levar adiante um terceiro turno eterno.

Dilma não responde. Ela faz uma lista das ações de inconformismo, inéditas na história recente da democracia brasileira, da oposição, contra o resultado eleitoral, mas não responde à pergunta de Nassif: por que ela não encetou a luta política em prol de sua imagem pessoal como presidenta, através de entrevistas constantes à mídia nacional, à mídia internacional, à mídia alternativa e à mídia tradicional?

Por que nunca deu uma entrevista ao Brasil de Fato, à Carta Maior, à Caros Amigos? Por que encerrou o Café com a Presidenta quando deveria ter não apenas continuado essa experiência de rádio, mas a ampliado, a transformado num programa semanal em vídeo?

Apenas quando o poder lhe foge das mãos, Dilma percebe o que todos lhe diziam diariamente, há anos: a política nasce da comunicação. Não adianta ganhar eleições e perder de 7 a 1, todos os dias, a batalha da opinião pública. Um governo, numa democracia de massas, precisa de um porta-voz, precisa responder aos ataques da mídia.

Alguns irão falar que águas passadas não movem moinhos, e que, em virtude do golpe, não é hora de fazer críticas. Ora, o golpe não é de hoje, nem termina aqui. E a estratégia de comunicação de Dilma, e da esquerda em geral, ainda continua ruim. O PT, por exemplo, ainda não tem – é incrível isso – uma estratégia de inserção internacional, e isso mesmo possuindo uma rede de núcleos petistas em quase todas as grandes cidades do mundo.

Em algum momento de sua história recente, provavelmente durante o julgamento do mensalão, o PT sofreu um colapso político do qual nunca mais se recuperou: sua comunicação é incrivelmente pobre, desarticulada, baseada num modelo ultrapassado de propaganda, de autolouvaçâo, que não atinge nem o povo mais pobre nem a intelectualidade. E isso contando com uma rede de intelectuais muito mais vasta, diversa e qualificada do que qualquer outro partido.

De maneira geral, não gostei da entrevista de Dilma à TV Brasil. A presidenta não consegue se comunicar bem nesse formato. Ela se atrapalha, usa termos desnecessariamente complicados. Até mesmo o espectador atento, politizado, bem informado, tem dificuldade de acompanhar. Ela se expressa de maneira irritantemente burocrática, tem uma obsessão chatíssima por números, agarrando-se a eles como a uma tábua de salvação para suas dificuldades argumentativas.

Eu mesmo testemunhei essa obsessão de Dilma por números quando tivemos, eu e alguns blogueiros, a oportunidade de entrevistá-la, dois dias depois da votação fatídica na Câmara, que aceitou o pedido de impeachment.

Ao sentarmos à mesa, Dilma e os blogueiros iniciamos um papo para quebrar o gelo da conversa.

Mesmo vivendo o auge da maior crise política do século, a presidenta usou o tempo anterior á entrevista falando em números dos reservatórios hídricos… Os assessores de comunicação da presidenta entraram e saíram calados da entrevista.

Isso, no entanto, não significa nada. Se houvesse em torno de Dilma uma estratégia de comunicação que levasse em conta a sua personalidade, suas virtudes e defeitos, todos esses ruídos seriam minimizados.

Na pergunta de Nassif sobre a Lava Jato, porém, encontra-se outra explicação para o golpe: a presidenta perdeu completamente o controle da narrativa em torno das investigações. Aí também fica patente um certo egoísmo da presidenta, porque ela tenta comover a opinião pública com um discurso sobre os erros e contradições processuais no julgamento do impeachment. Ela tenta se colocar como vítima, dizendo que é acusada (e já foi inclusive condenada, pois a perda do mandato, mesmo que ainda provisória, é uma terrível condenação) de um crime que não cometeu. Eu concordo com a presidenta. Ela, de fato, é uma vítima. Mas Dilma precisa entender que esse processo não começou com ela. O golpe vem sendo construído desde o julgamento do mensalão.

Ao ouvir Dilma falando sobre o plano safra, usado pelos conspiradores como um dos argumentos para o impeachment, eu me lembrei de Pizzolato. No caso dele, também havia fartura de documentos provando que não ele não havia assinado nenhum documento em favor da Visanet, que não era o funcionário responsável pela gestão do fundo Visanet e que, portanto, não havia, objetivamente, nenhuma prova contra ele num desvio que (para cúmulo do surrealismo judicial) também não tinha ocorrido. De que adiantou? Foi condenado do mesmo jeito, inclusive por Ricardo Lewandowski, que apesar de ser o melhor dos juízes do STF, entrou no jogo da mesma forma que todos os outros (assim como voltou a entrar agora, no caso do impeachment).

Dilma explica que o plano safra não passou por suas mãos. Ele foi aprovado diretamente por um secretário do ministro da Fazenda, que à época era o heroi da mídia, Joaquim Levy. Este secretário hoje comanda a pasta de Desenvolvimento do governo golpista. Outro surrealismo que me lembra alguns momentos da Ação Penal 470.

Mas essas questões objetivas não importam. Quando se quer condenar, quando se precisa condenar, quando há necessidade absoluta de condenar, então se condena.

Como explicou o ministro Barroso, em palestra recente proferida a estudantes de Direito, num arroubo de inacreditável cinismo:

“O impeachment depende de crime de responsabilidade. Mas, no presidencialismo brasileiro, se você procurar com lupa, é quase impossível não encontrar algum tipo de infração pelo menos de natureza orçamentária. Portanto, o impeachment acaba sendo, na verdade, a invocação do crime de responsabilidade, que você sempre vai achar, mais a perda de sustentação política”

Se Dilma quiser fazer um discurso convincente, precisará passar do particular para o universal, e denunciar a pior corrupção de todas no Brasil de hoje: a corrupção do judiciário, da qual ela não é a única, nem a primeira nem será a última vítima. Não é uma corrupção apenas pecuniária: refiro-me sobretudo à corrupção ética, de termos um judiciário se vergando a interesses políticos e pressões midiáticas.

Parece-me previsível que setores do PT, assim como Dilma, imaginem que possam usar a Lava Jato contra seus adversários. É o discurso de que a oposição deu golpe para “derrubar a Lava jato”. Quanta ingenuidade. A pesquisa CNT/MDA mostrou que a maioria da população associa a Lava Jato a Lula e à Dilma. Essa percepção foi sendo construída – em parceria com a mídia – desde o início da operação.

Alguns petistas comemoram o pedido de prisão de Renan, Jucá e Sarney, feito por Rodrigo Janot, procurador geral da república, esquecendo que o mesmo Janot pediu indiciamento de Dilma por “obstrução de justiça”, e tem procurado construir na mídia a narrativa de que Lula é o “chefe do petrolão”.

Sem provas, atendo-se a ridículos pedalinhos, Janot faz uso daquele neofascismo judicial que vem se tornando o padrão das intermináveis conspirações lideradas pela PGR: “Lula não podia não saber”.

O pedido de prisão dos caciques do PMDB foi uma demonstração de força por parte das castas burocráticas, o primeiro capítulo de uma batalha interna dos protagonistas do golpe pelo controle político do Estado.

Além disso, a PGR tem um objetivo: forçar o apoio, por parte dos caciques do PMDB, às medidas defendidas pelo Ministério Público Federal contra a corrupção. Na verdade, um conjunto de iniciativas que irá conferir ainda mais poder aos procuradores, agravando o atual quadro de arbítrio e autoritarismo, em que o Estado tem cada vez mais instrumentos para acusar o cidadão e o cidadão cada vez menos instrumentos para se defender.

É o famoso liberalismo brasileiro, que funciona às avessas: menos liberdade e menos direitos e garantias a muitos, mais poder, mais privilégios e mais autoritarismo a poucos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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