Comentário sobre as manifestações de sexta-feira

(Cinelândia, Rio de Janeiro, 10 de junho de 2016. Foto: Cuca da UNE).

Cheguei à Cinelândia relativamente cedo, por volta das 19 horas. Ainda não tinha muita gente, talvez algumas centenas de pessoas, mas já o suficiente para abarrotar a escadaria da Câmara dos Vereadores e o espaço em frente.

Algumas faixas já haviam sido estendidas: Todos contra o golpe, Botafoguenses contra o golpe, Globo golpista.

Uma grande bandeira do PT pendia ao lado da escadaria.

A marcha que vinha da Candelária ainda não havia chegado.

Em seguida, houve movimentação na escadaria, os músicos de uma orquestra sinfônica haviam se posicionado por lá e começaram a tocar canções populares. Tocaram também uma versão de Carmina Burana na qual o refrão é cantado com um “Fo-ra Te-mer”, “Fooo-ra Te-meeer”.

O público começava a se adensar. As centenas já começaram a se tornar milhares.

Eu perambulava por ali bebericando heinekens e cumprimentando amigos e conhecidos.

De vez em quando, alguém me reconhecia, batia no meu ombro e me dava parabéns pelo blog. Menciono isso para ilustrar uma coisa mais geral: já está sendo construída, há algum tempo, uma nova cultura política no país, baseada em outros meios de informação. Não importa se ela ainda não é hegemônica e sim que ela existe, cresce muito rápido e oferece um baluarte emocional para milhares, quiçá milhões de pessoas.

Esta nova cultura – sobre a qual ainda iremos falar muito – é a maior derrota do golpe.

A esta altura, oito e pouco da noite, a Cinelândia já estava lotada. E começa a chegar ainda mais gente, vindo junto com marcha que havia começado na Candelária, tendo à frente o caminhão de som e os bandeirões das centrais.

Eu olhei os bandeirões gigantes com uma simpatia quase nostálgica. Eu sempre tive implicância contra esses bandeirões e bolas infláveis gigantes, que tem apenas o nome da entidade. Achava-os insossos, sem criatividade. A onda de bandidos reacionários que assaltou o país me fez olhá-los desta vez com uma simpatia especial. Não os via mais como exibição de força corporativa, e sim como símbolos de resistência da classe trabalhadora.

O público cresceu, eu encontrei meus velhos amigos, as bandas começaram a tocar no caminhão de som.

Comentávamos que, mesmo diante do maior ataque conservador das últimas décadas, com uma horda golpista e criminosa tendo assaltado o poder, nossa manifestação não era raivosa como a dos coxinhas.

A gente continua comemorando a festa da democracia, realizando eventos políticos de grande envergadura, onde parlamentares como Marcelo Freixo e Jandira Feghalli, lideranças sindicais como o Marcelinho da CUT-RJ, fazem seus discursos e são ouvidos respeitosamente pelo público.

Não há ódio à política no campo progressista.

Há, pelo contrário, um grande amor pela política.

A direita não consegue, nem de perto, fazer um evento como esse no Rio de Janeiro. Um evento não apenas grande, mas homogêneo, organizado, político, divertido.

Não vejo muita graça em participar de um evento monstruoso de rua, mas cheio de manifestações bizarras e fascistas, como a daquele sujeito na Paulista que, convidado pela organização a falar no carro de som, começou a mandar Montesquieu “tomar no cu”.

Os eventos do campo progressista, assim como os da direita, ainda se restringem, porém, a setores da classe média, apesar de que os nossos são mais diversos em todos os sentidos: socialmente, etnicamente, etariamente. Somos mais jovens, mais negros, mais femininos, mais pobres.

Ainda precisamos, todavia, chegar à grande massa, mas isso virá naturalmente, com ajuda de um governo e de uma mídia que não demonstram a mínima preocupação com as dificuldades materiais do povo brasileiro – vide a virulência e desprezo com que tomaram os ministérios sociais, fazendo desaparecer, em dias, departamentos inteiros que cuidavam de programas importantes.

De fato, não há nenhum motivo para festejar. O desmantelamento brutal do Estado mínimo de bem estar social montado por Lula e Dilma ainda se fará sentir pesadamente sobre as classes mais pobres.

A alegria que víamos na praça não era uma alegria de comemoração, todavia.

Era uma alegria que vem da sensação de força, que por sua vez nasce da união com seus iguais, do sentimento de alívio em saber que ainda temos uns aos outros.

Até nossas divergências internas, no campo da esquerda, foram postas de lado ontem. Psol, PT, PCdoB, Povo sem Medo, Cut, CTB, movimento estudantil, além da maioria de pessoas sem ligações com nenhuma organização, estávamos todos ali, sem hostilizarmos uns aos outros, tolerantes com nossas diferenças.

Eu acho realmente incrível o desprezo com que a grande mídia trata o campo progressista, como se ele não tivesse vencido quatro eleições presidenciais consecutivas, como se não contasse com a elite intelectual do país, como se não fôssemos milhões de trabalhadores, cidadãos patriotas, honestos, eleitores, cumpridores da lei, consumidores, pagadores dos nossos impostos.

Só para constar, na Cinelândia ontem, estavam presentes inúmeros artistas, alguns famosos, globais, cineastas premiados, como Claudio Assis e Matheus Nachtergaele.

Eu conversava com meus amigos: essa praça cheia, com 5, 10, 20 mil pessoas, é o que conseguimos fazer. Não é nenhuma demonstração gigantesca como as dos chavistas em seus bons tempos, com 700 mil pessoas nas ruas de Caracas, mas é o suficiente para ganharmos eleições, como ganhamos, de fato, por quatro vezes consecutivas!

Nos últimos meses, no Rio de Janeiro, o campo progressista, antigolpe, organizou grandes manifestações na Praça XV, na Carioca, na Lapa e agora na Cinelândia.

Foram, simplesmente, as maiores manifestações políticas da cidade das últimas décadas! Importante enfatizar que foram eventos políticos, com discursos de parlamentares, lideranças sindicais e de movimentos sociais.

A direita, é bom repetir, não consegue fazer nada parecido com isso.

No palco, Tico Santa Cruz, lá pelas nove ou dez horas, cantou Tente outra vez, de Raul Seixas. Eu comentei com os amigos e amigas, que cantavam e dançavam perto de mim, como aquela música parecia atual.

Não diga que a vitória está perdida, pois é de batalhas que se vive a vida! Tente outra vez!

Aquela canção que eu já ouvira tantas vezes, a ponto de não gostar mais dela justamente pelo excesso, por esse enjoo inevitável que sentimos quando ouvimos, por muitos anos, a mesma música: de repente, o Tente outra vez de Raul voltara a ser uma novidade!

Não havia por perto nenhuma rede de televisão. A última rede que cobria nossas manifestações era a TV Brasil, destruída em alguns dias pelo diretor imposto por Eduardo Cunha.

Os poucos dias de Laerte Rimoli à frente da EBC, antes do retorno de Ricardo Melo via medida judicial, foram devastadores: ele demitiu inúmeros diretores considerados “petistas” ou de esquerda, e foi assediado por todos os traidores, invejosos e puxa-sacos, prontos a atacar seus colegas em troca de promoções, que aliás conseguiram. Em suma, Limoli tornou a empresa praticamente desfuncional.

De maneira que não há mais cobertura tradicional de nossos eventos, o que traz conforto à plutocracia, porque é como se eles não existissem.

Para nós, por outro lado, este bloqueio reforça a tendência do nosso campo de procurar seus próprios meios de informação, de criar suas próprias redes. Ou seja, esse abandono nos fortalece. Não encontrando informações sobre esses eventos nos meios tradicionais, mas sabendo que eles aconteceram, as pessoas (e não só do nosso campo) as procuram em outra parte. Daí o crescimento constante, acelerado, da audiência das nossas redes sociais e blogs.

O golpe não conseguiu – ao contrário, está se afastando cada vez mais disso – realizar o seu principal intento, que é se tornar “social”, que é se firmar como um fato histórico positivo. Não conseguiu. Eles perderam a batalha da narrativa, e a prova disso é que Michel Temer não consegue se movimentar fora dos salões da TV Globo e da Fiesp. Fora desses ambientes praticamente militarizados, é escracho, escracho, escracho!

Há enormes áreas sociais onde a direita jamais vencerá. O golpe, ao contrário, blindou ainda mais áreas sociais inteiras contra o avanço da direita e do fascismo.

Talvez seja isso o que mais os desespere, que os façam vir aqui no blog, fazer comentários raivosos, ofensivos. Eles não conseguem acreditar que não precisamos, como eles, de governos, de grande mídia, de corporações patronais, a bancar repressão, a convocar manifestação, a patrocinar patos infláveis. Eles não conseguem acreditar que as derrotas políticas não significam, para nós, mais que etapas, quiçá necessárias, de uma luta eterna por mais democracia e liberdade.

É esse desespero de nos ver sempre alegres e dispostos que os faz desistirem da luta clássica, honesta, e aderirem a todo tipo de jogo sujo e golpista. Mas eles não terão nossos corações e mentes jamais, porque estamos blindados por dez mil anos de lutas sociais.

Que dez mil anos! Estou convencido que as lutas sociais continuam um processo ainda mais antigo, de milhões de anos, que é a luta do homem contra todos os elementos que o oprimem, contra sua própria estupidez, contra seu próprio egoísmo, contra sua própria violência, contra as forças da natureza que parecem querer lhe destruir.

A alegria serena das pessoas na Cinelândia, ontem, era uma alegria de guerreiros, dançando em volta de uma fogueira, depois de uma dura batalha.

É a alegria de quem está preparado para lutar a vida inteira, e cujo maior prazer é justamente esse: olhar para a sua amiga ao lado com dignidade nos olhos, sentindo orgulho de estar a seu lado, orgulho por você e por ela!

Nossos erros, somos os primeiros a admiti-lo, com uma consciência moral que eles – bando de safados golpistas – jamais terão. Admitimos e estamos prontos a corrigi-los agora e no futuro. Mas os nossos erros, ou de nossas lideranças, não nos farão mudar de lado! Jamais! No máximo, escolheremos outras lideranças, ou ajudaremos as que temos a se corrigirem!

Eles podem nos caluniar, nos prender, nos bater, nos amarrar, nos asfixiar financeiramente. Podem nos matar. Nós somos muitos e nos multiplicamos e nos reproduzimos.

Somos a maioria da população – não a efêmera e falsa maioria das pesquisas, mas a maioria do voto e, sobretudo, a maioria dos que trabalham duramente e precisam de serviços públicos de qualidade – serviços que apenas um Estado de bem estar social, que tribute fortemente os mais ricos, poderá prover.

Atrás de nós, nos protegendo, nos embalando, nos incitando a ir em frente, temos milhares de séculos de lutas. Não só atrás – também à nossa frente!

Poetas, guerreiros, políticos, feministas, intelectuais, trabalhadores, vagabundos, herois, santos, bandidos, profetas, o panteão da nossa história não é ocupado por mauricinhos de camisa da CBF, por hipócritas apoiadores do golpe, e sim por aqueles que, mesmo sabendo que jamais veriam, em vida, os resultados de seus esforços, mesmo assim lutaram bravamente pela liberdade de seu povo.

Como dizia Shelley,

Rise like lions after slumber
In unvanquishable number;
Shake your chains to earth like dew
Which in sleep had fallen on you.
You are many, they are few.

(The mask of anarchy).

Que eu traduzo literalmente assim:

Ergam-se qual leões após o repouso
em número invencível;
Lancem seus grilhões ao chão como orvalho
que tenha caído à noite sobre suas costas.
Vocês são muitos, eles são poucos.

(A máscara da anarquia)

Abaixo, fotos da manifestação Fora Temer em São Paulo e Rio de Janeiro.

Primeiro, São Paulo (fotos do meu amigo Wagner Moraes):

Mais São Paulo. Desta vez, foto dos Jornalistas Livres.

Mais São Paulo, foto do Ricardo Stucker:

Agora, Rio de janeiro (fotos do Cuca da UNE):

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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