A tragédia brasileira. Por Cláudia Versiani

Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

Por Cláudia Versiani*

À saída do cinema, na Rua Nélson Mandela, no Rio, há bares cheios de gente conversando, bebendo, comendo. Poucos passos adiante, maltrapilhos dormindo na rua se amontoam, tentando se aquecer na noite de inverno carioca, mais frio que nunca. Tudo normal. Sem qualquer estranhamento. Assim funciona o país com a segunda pior distribuição de renda do planeta.

O Brasil vive a fratura de um golpe de estado perpetrado por corruptos com interesses inconfessáveis contra uma presidente honesta, eleita por 54 milhões de votos. As pessoas dos bares da Rua Nélson Mandela não se abalam. Apatia, desconhecimento?

Nas redes sociais, progressistas vociferam contra o presidente interino que se empenha, mesmo na interinidade, em fazer o país retroagir décadas, certamente atendendo a demandas espúrias. A Rua Nélson Mandela e tantas outras Brasil afora continuam com a mesma fisionomia: festa de um lado, miséria de outro.

As manifestações contra o golpe se sucedem. Mas os integrantes do chamado povão, para os quais a democracia ainda não chegou, não comparecem. Ou apenas descem das favelas para vender cerveja nas passeatas. Talvez não se considerem cidadãos. E talvez não sejam mesmo. Talvez acreditem que não lhes cabe protestar. Não vale a pena. Pois na favela Dona Marta, em plena Zona Sul carioca, o esgoto corre a céu aberto desde sempre, e incontáveis ruas da periferia sequer têm calçamento. Sem contar que nas prisões lotadas quase que exclusivamente de pobres, tortura é rotina. Esses despossuídos de cidadania vivem, sob vários aspectos, num eterno regime de exceção. Nunca foram tocados pelas benesses da democracia. Por que se importariam com um incompreensível e longínquo golpe – que, aliás, toda noite a televisão lhes garante não existir?

Enquanto isso, setores da classe média permanecem inertes, possivelmente por desconhecimento, anestesiados pela opinião das seis ou sete famílias que controlam a mídia nativa. Há também os apáticos que “detestam política”, sem se darem conta da dura realidade de que, gostem ou não, a política controla suas vidas. Alguns praticam o que o colunista blasé de um jornal do Rio – que acha chique manter distância do problema – definiu como “tendência fashion do escapismo”.  Impossível entender como funciona esse fashionismo.

Assim, parcialmente adormecida, a pátria mãe, tão distraída, é subtraída em tenebrosas transações, como cantou Chico Buarque com todas as rimas. Caso prevaleçam os tenebrosos planos de Temer, Serra e Parente, os possíveis 200 bilhões de barris de petróleo e os correspondentes 10 trilhões de dólares que contribuiriam para tornar o Brasil o terceiro maior produtor mundial podem se esvair, e com eles empregos e tecnologia brasileiros, desenvolvimento da indústria nacional e recursos para educação, saúde e programas sociais.

“Minério não dá duas safras”, dizia um slogan nos anos 60 do século passado, época da luta contra a ditadura militar. O Brasil é detentor de mais de 95% das reservas de nióbio – mineral estratégico para a tecnologia de ponta, usado em automóveis, gasodutos, turbinas de avião, tomógrafos de ressonância magnética e nas indústrias aeroespacial, bélica, nuclear e naval. Entretanto, embora em 2010 o WikiLeaks tenha vazado um documento secreto do Departamento de Estado americano que inclui as minas brasileiras de nióbio entre os locais cujos recursos são imprescindíveis aos EUA, no Brasil não há política específica para o metal. As minas são controladas por duas mineradoras privadas, e especialistas denunciam essa ausência de estratégia como lesiva aos interesses nacionais. Se em treze anos de governos progressistas não foram implementadas políticas para o setor, o que aconteceria se um governo com outro viés assumisse o poder?

Talvez o ser humano possa viver sem petróleo ou nióbio, mas não sem água. E o Brasil possui 12% da água doce do mundo. Não só nos rios caudalosos, mas também nos aquíferos, como o Guarani e o Alter do Chão. O primeiro é a reserva subterrânea que se estende do centro-sudoeste do Brasil até o Paraguai, a Argentina e o Uruguai. São 45 mil km³ que se calcula poderem suprir a necessidade de água potável da humanidade por duzentos anos. Quase duas vezes maior em volume é o Alter do Chão, no subsolo do Amazonas, do Pará e do Amapá. Tesouro inimaginável e cobiçado.

O século XXI é o século da água – ou melhor, da escassez dela, que estudiosos calculam começar daqui a vinte anos. E já há empresas estrangeiras querendo entrar no mercado brasileiro de projeto e controle do abastecimento urbano – captação, distribuição e construção de reservatórios.  Sem contar que moradores da estância hidromineral mineira São Lourenço lutam há anos contra a Nestlé, que adquiriu o Parque das Águas local e é acusada de destruir os reservatórios subterrâneos com a exploração predatória.

Ameaças de privatizações, da possibilidade de venda de terras a estrangeiros, desmonte dos programas sociais, leis retrógradas… O golpe branco contra a democracia brasileira destrói o incipiente e tímido estado de bem estar social e ataca a soberania nacional, enquanto se esforça por manter aparência de legalidade. Muitos acreditam. A mídia manipula a realidade. As pessoas da rua com o emblemático nome de Nélson Mandela talvez desconheçam o perigo que correm as futuras gerações.

*Cláudia Versiani é Jornalista, Fotógrafa e Professora do curso de Comunicação Social da PUC-Rio, além de autora dos livros “Os homens de nossas vidas” (crônicas) e “Bodas de Sangue: a construção e o espetáculo de Amir Haddad” (fotografias)

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