Panteras Negras foram vanguarda dos anos 60

Marcha dos Panteras Negras em protesto contra prisão do co-fundador do movimento, Huey P. Newton, em Oakland, Califórnia (Foto: trecho do documentário The Black Panthers: Vanguard of the Revolution)

O Cafezinho reproduz uma série do Opera Mundi sobre prisioneiros políticos nos Estados Unidos, com produção do jornalista Breno Altman, editor do portal. O dossiê “Presos Políticos nos EUA” conta histórias de pessoas que estão presas por motivos políticos no país que se autoproclama campeão de liberdade e terra dos direitos civis.

Para além dos relatos, a série especial também busca expor o aparato repressor construído pelos Estados Unidos para reprimir dissidentes, mostrando tanto o papel do FBI na perseguição a lideranças do movimento negro na década de 1960, quanto a repressão seletiva contra muçulmanos na esteira da política antiterror após o 11 de Setembro.

Abaixo segue a parte dois da série.

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Panteras Negras foram vanguarda dos anos 60

O grupo que desafiou o racismo e o Estado no país mais poderoso do mundo

por Breno Altman, no Opera Mundi

“Eles são a maior ameaça para a segurança interna do país”, sentenciou John Edgar Hoover, o lendário chefe do FBI, durante reunião na qual declarou guerra aberta ao partido de jovens afro-americanos que, no final dos anos 1960, ousava promover motins e enfrentar a polícia.

Os Panteras Negras brotavam como cogumelos nas principais cidades norte-americanas. Rapidamente viravam o símbolo e a direção de quem não aceitava mais oferecer a outra face perante à agressividade das forças racistas.

As leis segregacionistas já estavam abolidas desde 1964, mas a brutalidade repressiva contra os bairros negros e a situação de pobreza não se alteravam.

Os grandes centros urbanos do norte e da costa oeste, para onde migravam os que fugiam do apartheid sulista, tinham se transformado em panelas de pressão. Levantes frequentes agitavam as cidades e a imaginação.

Panteras Negras na assembleia estadual em Sacramento, Califórnia, protestam contra projeto de lei para proibir porte de armas

Quando moradores de Watts, distrito na periferia de Los Angeles, se sublevaram contra a prisão arbitrária de um vizinho, em agosto de 1965, abria-se um novo ciclo histórico. Entre os dias 11 e 15, o chão ficou tingido pelo sangue de 34 mortes e mais de mil feridos. Quase 3,5 mil presos e mais de 40 milhões de dólares em danos materiais foram contabilizados.

Nos três anos seguintes, a cena se repetiu em muitas outras localidades. Os Estados Unidos pareciam caminhar rumo a uma insurreição.

Os encarregados em manter a lei e a ordem perdiam o sono. Estava aparentemente em perigo o sistema que juraram defender.

Ao lado das multidões que marchavam contra a Guerra do Vietnã, a mobilização dos guetos negros sacudia um mundo marcado por regras e hábitos construídos no encontro entre imperialismo e escravidão.

Era esse o clima, em outubro de 1966, no dia 15, quando dois estudantes do Merritt College, em Oakland, cidade vizinha a São Francisco, na ensolarada Califórnia, fundaram o Partido Pantera Negra para a Autodefesa.

Huey P. Newton e Bobby Seale recrutaram mais quatro colaboradores e formaram o núcleo inicial da organização. Também decidiram instituir um uniforme: camisas azuis, calças e boinas pretas, casacos de couro.

Tinham mais simpatia pelas ideias de Malcolm X, assassinado em maio do ano anterior, do que pelo pensamento de Martin Luther King, mortalmente baleado dali a dois anos.

Sentiam-se atraídos por objetivos nacionalistas e de autodeterminação, a compreensão de que o povo negro estava sob jugo colonial desde que escravos africanos foram capturados e transportados contra a vontade.

Flertavam com possibilidades separatistas, entortando o nariz para a narrativa integracionista que predominava nos grupos dominantes da campanha contra a segregação.

Acima de tudo, consideravam inaceitável a estratégia de resistência passiva, não violenta, apregoada por Luther King, com quem costuravam acordos pontuais, mas tendendo a enxergá-lo como um anexo do sistema que sonhavam demolir.

Partiam do pressuposto que a falta de reação, cedo ou tarde, afetaria o ânimo e a capacidade de mobilização. A resistência ativa, por outro lado, poderia elevar a autoestima e intimidar os inimigos de sua causa.

Nas Olimpíadas de 1968, no México, Tommie Smith e John Carlos erguem o punho durante hino nacional dos EUA (Foto: WikiCommons)

Viam-se, em certa medida, como herdeiros de Malcolm X, ainda que não partilhassem seus pendores islâmicos. O que definitivamente os entusiasmava era o propósito de ser a ponta de lança das comunidades negras. Seus organizadores e protetores armados frente aos atropelos do Estado e de agremiações racistas como a Ku Klux Klan.

Contavam, a seu favor, com uma lei californiana que permitia a todos os cidadãos carregarem suas próprias armas. De rifles no ombro e revólveres em punho, funcionavam como tropa de choque contra a ação policial, protegendo manifestações e protestos.

Crescimento após ação audaciosa

A fama nacional veio com uma ação espetacular, em maio de 1967.

A Assembleia Estadual da Califórnia, sediada em Sacramento, tinha agendado a discussão de projeto que proibia o porte de armas. Sob comando de Bobby Seale, trinta militantes ocuparam, armados, as instalações do organismo legislativo, em protesto contra medida que enfraqueceria os Panteras Negras diante da polícia.

Imagens de tamanha audácia percorreram o país.

Seu prestígio cresceu aceleradamente, atraindo jovens militantes por toda a parte, que abriam escritórios do partido, aderiam a seu programa e se paramentavam para a guerra.

As ambições eram vigorosas: emprego, educação, habitação, fim da brutalidade policial, julgamento de negros apenas por juízes e júris negros, revogação do serviço militar obrigatório, liberdade para os afro-americanos decidirem se queriam continuar incorporados aos Estados Unidos ou fundar sua própria nação.

Também manifestavam seu repúdio à intervenção norte-americana no Vietnã. Não queriam apenas a paz e a retirada das tropas. Batalhavam pela vitória dos comunistas de Ho Chi Minh, o líder da independência do país asiático, contra os exércitos chefiados pela Casa Branca.

Foi nessa batida que logo se transformaram na corrente mais relevante do chamado Poder Negro.

Sob esse guarda-chuva se abrigava, entre os anos 60 e 70, uma constelação de movimentos e grupos dispostos à insurgência contra um modelo que, aos seus olhos, estava marcado pelo cruzamento entre supremacia branca, domínio dos ricos e neocolonialismo.

“Nascemos como uma organização comunitária, mas logo nos reivindicamos como partido revolucionário”, relembra Kathleen Neal Cleaver, primeira mulher a integrar o comitê central dos Panteras Negras. “Sob a influência da Revolução Cubana e da guerra de libertação dos vietnamitas, além do impacto das ideias de Mao Tse Tung, assumimos identidade marxista, mas nas condições específicas da luta anticolonial dos negros norte-americanos.”

Aos 71 anos, Kathleen é atualmente professora na Universidade de Yale, uma das mais prestigiadas do planeta. Formada em Direito, dedica-se ao estudo de questões afro-americanas.

Casada por vinte anos com um dos chefes históricos dos Panteras Negras, Eldridge Cleaver, o terceiro homem da troika que também incluía Newton e Seale, ela foi secretária de Comunicação do partido entre 1967 e 1969, antes de se exilar na Argélia, com o marido, então condenado por tentativa de homicídio, durante tiroteio contra policiais de Oakland.

“Os Estados Unidos são diferentes de outros países capitalistas”, afirma, resumindo análise que embasava sua organização. “A estrutura econômica e social tem um componente de dominação colonial dentro do próprio território, para o qual outros povos foram trazidos à força. Não se trata apenas de preconceito racial, mas de supremacia como forma de Estado e sociedade.”

Essa lógica levou os Panteras Negras a aceitarem filiação apenas de afro-americanos. Apostavam que interesses comuns seriam defendidos por coalizões entre distintas agremiações, cada qual com sua própria identidade nacional ou étnica.

Estado versus Panteras Negras

Parte da imprensa aproveitou este critério para enquadrar o agrupamento como racista, defensor de alguma espécie de supremacia negra. A outra perna da campanha de desconstrução era pintá-lo como adepto da violência e do terror.

“Nós estávamos em guerra e tínhamos o direito de nos defender”, declara Elaine Brown, a última presidente do partido antes de sua dissolução. “Mas recorríamos à violência apenas quando atacados. Nosso trabalho principal era educacional e de organização social.”

Kathleen Cleaver (esq.) e Elaine Brown (dir.), em fotos dos anos 70 e atualmente

Nascida em um gueto de Filadélfia, atualmente com 73 anos, a ativista também se fez cantora e escritora. Quando os Panteras Negras estavam já em seu ocaso, divididos e sob severa repressão, Elaine foi nomeada por Newton, foragido em Cuba, a nova comandante do movimento, cargo que ocuparia entre 1974 e 1977.

“Ninguém tinha a receita para enfrentar o padrão repressivo que foi sendo adotado pelo governo”, relembra Elaine. “Tentamos aplicar uma das máximas de Mao, de que a guerrilha deve se mover entre as pessoas como um peixe nadando no mar. Mas o cerco se fechava.”

Além da autodefesa, a legenda fez-se conhecida por implantar programas de assistência nos bairros mais pobres, dos quais o mais famoso talvez tenha sido o café da manhã para crianças de famílias paupérrimas. Provou-se estratégia inteligente para ampliar influência e atrair novos militantes, além de permitir a construção de expressiva rede financeira entre artistas, intelectuais e até empresários.

Os Panteras Negras também conseguiram manter um semanário de circulação nacional e construir escolas de formação política, nas quais milhares de homens e mulheres foram educados.

Participaram igualmente de processos eleitorais, na fórmula do Partido Paz e Liberdade, uma casa de esquerda até hoje em atividade, pela qual Eldridge Cleaver disputou as eleições presidenciais de 1968. Conquistou menos de 50 mil sufrágios: poucos eram os afro-americanos inscritos para votar.

Não alcançaram, em seu auge, mais que 10 mil militantes, segundo cálculos de vários dirigentes. O potencial de crescimento social, político e até militar, contudo, despertou a atenção e a ira dos organismos de segurança.

Hoover ordenou ao FBI que praticasse toda sorte de operação para desmoralizar, dividir e destruir os Panteras Negras. A caixa de ferramentas contra a organização rebelde era completa: infiltrações, denúncias forjadas, assassinatos, prisões em massa, provas plantadas.

A polícia de Los Angeles, seguida pela de outras cidades, deu contribuição cinematográfica à caçada anunciada, com a criação da SWAT, tropa especial forjada para o combate ao partido de Newton, Seale e Cleaver. Seu batismo de fogo foi uma batalha para tomar de assalto a sede da agremiação na cidade dos anjos.

Fim do grupo nos anos 80

O Senado norte-americano, em 1975, reconheceria oficialmente as ilegalidades cometidas. Nenhuma reparação, no entanto, foi determinada. Os que haviam sobrevivido, muitos apodrecendo atrás das grades, não foram contemplados por qualquer lei de anistia ou indulto. Os policiais responsáveis jamais seriam punidos.

A esta altura, além do mais, o fardo de prisões, mortes e divisões já era insuportável. O partido praticamente deixara de existir, apesar dos empenhos de sobrevida até 1982.

Muitos de seus militantes iriam se incorporar a outros agrupamentos, especialmente ao Exército Negro de Libertação, atuante até meados dos anos 80. O poder de mobilização e representação dos Panteras Negras, no entanto, tinha sido esmagado pelo Estado mais poderoso do mundo.

O chefe da polícia federal norte-americana cumprira a ameaça contida em um documento oficial do FBI: “Jovens negros e ativistas moderados precisam entender que, caso resolvam se transformar em revolucionários, serão revolucionários mortos.”

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