Lula é indiciado pela PF, mas o que isto significa? Absolutamente nada!

Foto: Ricardo Stuckert/ Instituto Lula

Ex-presidente Lula, durante ato em favor da Petrobras em Niterói, Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Stuckert/ Instituto Lula)

Pelo MP: Indiciamento, um etiquetamento dispensável

por Vladimir Aras, no Jota

O indiciamento não tem qualquer função relevante no processo penal, é uma excrescência no devido processo legal e não se justifica no modelo acusatório (adversarial system), no qual a Polícia é um órgão auxiliar do Ministério Público, e não parte. Contudo, como a imprensa adora rótulos, as manchetes espoucam: “Fulano foi indiciado!”

O que isso significa? Nada. Ou melhor, significa uma etiqueta desnecessária, um estigma inútil aplicado a supostos criminosos por uma instância formal de controle social.

Um dos maiores tesouros do Estado de Direito é a presunção de inocência. O indiciamento, como medida unilateral da Polícia, baixada ao final da investigação policial (inquisitorial), serve a interesses corporativos, e não à boa administração da Justiça.

Indiciar corresponde à ação de reunir indícios precários sobre certa pessoa suspeita de um crime. Hoje, de forma atécnica, a palavra “indiciado” pode ser lida no CPP e também no artigo 1º, §2º da Lei 8.038/1990, que trata das ações penais originárias. Já o indiciamento aparece na Lei 12.830/2013.

O tema voltou à berlinda com a notícia do indiciamento da senadora petista Gleisi Hoffman por suspeita de corrupção. Não importa quem é o investigado, o indiciamento é um excesso procedimental. Não cabe à Polícia (órgão do Poder Executivo) rotular ou etiquetar investigados, pois nisso não há efeito útil algum para a investigação criminal e muito menos para o processo penal.

Ato que é baixado pelo delegado de Polícia antes da formação da culpa e fora do processo, o indiciamento só se tem prestado à espetacularização midiática em detrimento do estado de inocência do investigado, que poderá ser acusado pelo Ministério Público, ou não. A cada indiciamento, luzes, câmeras, um flash. Se não vier a denúncia e final condenação, o interesse público terá sido atingido, podendo o Estado ser acionado pela pessoa indiciada e indevidamente exposta, para a reparação do dano causado a sua honra e sua imagem. As consequências funestas da violação da presunção de inocência na fase investigativa puderam ser vistas em dois casos marcantes da crônica forense brasileira: o caso de Manuel Mota Coqueiro, que no século XIX ficou conhecido como “A Fera de Macabu”, e o caso da Escola Base, nos anos 1990. Todos eram inocentes.

A propósito, a confusão sobre a utilidade do indiciamento parece remontar ao século XIX. Ao que parece, a palavra “indiciado” surgiu pela primeira vez na legislação brasileira no Código de Processo Criminal do Império, de 1832, que sofreu forte influência do modelo processual britânico, onde se emprega a palavra indictment. Certo é que, em Portugal, o indiciamento não tem o sentido que se emprega no Brasil.

Conforme o Merriam Webster Dictionary, o indictment é “a formal written statement framed by a prosecuting authority and found by a jury (as a grand jury) charging a person with an offense”. Isto é, trata-se de uma peça de acusação preparada pelo Ministério Público e recebida pelo grand jury (júri de acusação, geralmente composto por 23 cidadãos), a fim de permitir a submissão do réu a julgamento pelo petit jury (júri de julgamento, geralmente formado por 12 pessoas).

INDICTMENT. An accusation in writing found and presented by a grand jury, legally convoked and sworn, to the court in which it is impaneled, charging that a person therein named has done some act, or been guilty of some omission, which, by law, is a public offense, punishable on indictment. Kennedy v. State, 86 Tex.Cr.R. 450, 216 S.W. 1086; State v. Engler, 217 Iowa 138, 251 N.W. 88. (Black’s Law Dicitionary, 4th ed., 1968, p. 988).

No Brasil, porém, o indiciamento (ato policial) não se confunde com o indictment (ato processual). Aquele tem lugar na fase pré-processual, restringindo-se à inclusão dos dados de qualificação do suspeito nos registros de antecedentes policiais, ainda durante o inquérito, o que revela seu caráter de etiquetamento. Indiciar no jargão policial é concluir que fulano foi o autor do crime. Já o indictment equivale à nossa pronúncia ou ao recebimento da denúncia.

Embora esse registro policial não sirva sequer como maus antecedentes na dosimetria da pena, o fichamento do suspeito terá impacto na emissão de folhas de antecedentes, o que pode dificultar atividades singelas do cidadão indiciado (mesmo inocente), como conseguir emprego, especialmente como vigilante (segurança privada). Tampouco poderá o indiciado obter autorização de porte de arma ou tornar-se motorista de táxi, dado que a existência de indiciamento, ainda que indevido ou proferido em inquérito já arquivado, impedirá o exercício de tais ocupações por uma pessoa inocente ou não acusada nem condenada por crime algum.

Tal ato policial não estava claramente previsto no ordenamento jurídico até a sanção da Lei 12.830/2013. A conclusão do delegado de Polícia sobre o envolvimento do indiciado no crime é precária, pois unilateral e anterior ao devido processo legal. Segundo o §6º do art. 2º da Lei 12.830/2013, o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia, o que mostra sua feição inquisitorial. Felizmente, o legislador, ao regrar pela primeira vez tal ato, determinou que o indiciamento “dar-se-á por ato fundamentado”.

Fundamentado ou não, certo é que o juízo sobre presença de indícios suficientes para que alguém seja julgado por um crime pertence primeiramente ao Ministério Público (art. 129, I, CF) e, na sequência, à autoridade judiciária que receberá ou não a denúncia. O ato de indiciar não cumpre função processual alguma.

Dizendo de outra maneira, o Ministério Público pode denunciar uma pessoa que não tenha sido indiciada, como também pode arquivar a investigação contra uma pessoa indiciada.

O ato fundamental para o devido processo na persecução criminal é adenúncia do MP, pois é a peça que delimita a acusação. O réu – e só haverá réu quando a denúncia for recebida por um juiz ou tribunal – defende-se da narrativa apresentada ao juiz pelo promotor ou procurador, não importando o indiciamento, que corresponde assim a uma intromissão indevida do Poder Executivo (representado pela Polícia), na formação da decisão acusatória que cabe ao Ministério Público, conforme a Constituição.

Num processo penal de partes, a bilateralidade e a paridade de armas são essenciais ao devido processo legal. Atribuir ao Ministério Público a função de acusar (denunciar) e facultar à Polícia a decisão de indiciar é superfetação inconstitucional e sobreposição indevida de atividades estatais em detrimento do investigado/denunciado e do seu estado de inocência.

O ato de indiciamento não é opinio delicti. Não é senão um rótulo, uma etiqueta ou estigma que se sustenta de forma débil no CPP aprovado noutros tempos (anos 1940) e mais modernamente na Lei 12.830/2013, cujo §6º do art. 2º assim dispõe:

§6º. O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

A pergunta é: para quê?

Tal dispositivo, fruto de uma campanha corporativa que não foi percebida a tempo pelo Congresso Nacional, agora cobra seu preço. Manchetes garantidas. No caso Lava Jato, perante o STF, uma senadora indiciada pela Polícia; no caso Acrônimo, perante o STJ, um governador de Estado também foi indiciado, isso tudo antes de o processo penal ser iniciado

No devido processo legal, no momento legal adequado, o órgão constitucionalmente habilitado a formular uma acusação, o Ministério Público, poderá apresentar ou não a denúncia ao órgão jurisdicional competente.

A mobilização corporativa para dar alguma utilidade ao indiciamento – além da sua finalidade hoje puramente midiática – prossegue. Tramita no Senado o PL 4/2012, de autoria do Senador Humberto Costa, que introduz o indiciamento no artigo 6º-A do CPP e o transforma emcausa interruptiva da prescrição, como se fosse um ato processual de conteúdo decisório, coisa que não é.

A mudança pretendida pelo lobby dos delegados inseriria o indiciamento no rol do artigo 117 do CP como ato capaz de interromper a contagem do prazo prescricional de qualquer crime. Seria ali o único ato de autoridade do Poder Executivo a ter esse efeito, em contraste com as demais ocorrências processuais, todas dependentes do Poder Judiciário:

Causas interruptivas da prescrição
Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se:
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
II – pela pronúncia;
III – pela decisão confirmatória da pronúncia;
IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis;
V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena;
VI – pela reincidência.

Como o STF tem enfrentado a questão do indiciamento de pessoas aforadas naquela corte em ações penais originárias? Em 2007, o STF decidiu que não cabe à Polícia Federal indiciar autoridades sujeitas a foro especial. Foi na QO na Petição 3825/MT:

Questão de ordem em Petição.

1. Trata-se de questão de ordem para verificar se, a partir do momento em que não se constatam, nos autos, indícios de autoria e materialidade com relação à única autoridade dotada de prerrogativa de foro, caberia, ou não, ao STF analisar o tema da nulidade do indiciamento do parlamentar, em tese, envolvido, independentemente do reconhecimento da incompetência superveniente do STF. Inquérito Policial remetido ao Supremo Tribunal Federal (STF) em que se apuram supostas condutas ilícitas relacionadas, ao menos em tese, a Senador da República.

2. Ocorrência de indiciamento de Senador da República por ato de Delegado da Polícia Federal pela suposta prática do crime do art. 350 da Lei nº 4.737/1965 (Falsidade ideológica para fins eleitorais).

3. O Ministério público Federal (MPF) suscitou a absoluta ilegalidade do ato da autoridade policial que, por ocasião da abertura das investigações policiais, instaurou o inquérito e, sem a prévia manifestação do Parquet, procedeu ao indiciamento do Senador, sob as seguintes alegações: i) o ato do Delegado de Polícia Federal que indiciou o Senador violou a prerrogativa de foro de que é titular a referida autoridade, além de incorrer em invasão injustificada da atribuição que é exclusiva desta Corte de proceder a eventual indiciamento do investigado; e ii) a iniciativa do procedimento investigatório que envolva autoridade detentora de foro por prerrogativa de função perante o STF deve ser confiada exclusivamente ao Procurador-Geral da República, contando, sempre que necessário, com a supervisão do Ministro-Relator deste Tribunal.

4. Ao final, o MPF requereu: a) a anulação do indiciamento e o arquivamento do inquérito em relação ao Senador, devido a ausência de qualquer elemento probatório que aponte a sua participação nos fatos; e b) a restituição dos autos ao juízo de origem para o exame da conduta dos demais envolvidos.
(…)

9. Segunda Questão de Ordem suscitada pelo Ministro Cezar Peluso. A partir do momento em que não se verificam, nos autos, indícios de autoria e materialidade com relação à única autoridade dotada de prerrogativa de foro, caberia, ou não, ao STF analisar o tema da nulidade do indiciamento do parlamentar, em tese, envolvido, independentemente do reconhecimento da incompetência superveniente do STF. O voto do Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, abriu divergência do Relator para apreciar se caberia, ou não, à autoridade policial investigar e indiciar autoridade dotada de predicamento de foro perante o STF. Considerações doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema da instauração de inquéritos em geral e dos inquéritos originários de competência do STF: i) a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que, nos inquéritos policiais em geral, não cabe a juiz ou a Tribunal investigar, de ofício, o titular de prerrogativa de foro; ii) qualquer pessoa que, na condição exclusiva de cidadão, apresente “notitia criminis”, diretamente a este Tribunal é parte manifestamente ilegítima para a formulação de pedido de recebimento de denúncia para a apuração de crimes de ação penal pública incondicionada. Precedentes: INQ nº 149/DF, Rel. Min. Rafael Mayer, Pleno, DJ 27.10.1983; AgR 1.793/DF”>INQ nº 1.793/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, maioria, DJ 14.6.2002; ED 1.104/DF”>PET – AgR (AgR) – ED nº 1.104/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 23.5.2003; PET nº 1.954/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, maioria, DJ 1º.8.2003; PET nº 2.805/DF, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ 27.2.2004; PET nº 3.248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, decisão monocrática, DJ 23.11.2004; INQ nº 2.285/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJ 13.3.2006 e AgR 2.998/MG”>PET nº 2.998/MG, 2ª Turma, unânime, DJ 6.11.2006;(AgR) iii) diferenças entre a regra geral, o inquérito policial disciplinado no Código de Processo Penal e o inquérito originário de competência do STF regido pelo art. 102, I, b, da CF e pelo RI/STF. A prerrogativa de foro é uma garantia voltada não exatamente para os interesses do titulares de cargos relevantes, mas, sobretudo, para a própria regularidade das instituições em razão das atividades funcionais por eles desempenhadas. Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o STF (CF, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STF. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do STF.

10. A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis.

11. Segunda Questão de Ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. (STF, Pleno, QO-Pet 3825/MT, rel. min. GilmarMendes, j. 10/10/2007)

Nessa mesma perspectiva, a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (COBRAPOL) propôs a ADI 5073 contra a Lei 12.830/2013. No seu parecer, a PGR entendeu que (p. 44-50):

“Para a ação penal, indiciamento é ato juridicamente irrelevante e total, absoluta e completamente dispensável. Qualquer neófito em Direito sabe que somente se consolida relação processual penal, para cada acusado, se houver denúncia do Ministério Público e se esta for recebida. Fere o princípio da proporcionalidade impor elaboração de ato fundamentado de indiciamento, porquanto isso servirá só para gerar estigma completamente inútil para qualquer cidadão investigado e para dar ares de decisão judicialiforme a análise de delegado de polícia, desviando-o de sua função de investigador de crimes, sem com isso gerar benefício algum para a investigação, muito menos para o processo criminal.

Ao contrário, a nociva prática de “indiciar” pessoas acarreta prejuízos à investigação e à atividade judiciária, pois (a) gera pecha inútil para o investigado; (b) consome tempo de delegados, que deveriam empregá-lo na investigação, não em inúteis análises jurídicas; (c) acarreta ajuizamento de habeas corpus e outras ações e incidentes, para discutir ato desnecessário, com desperdício de tempo e recursos do Poder Judiciário para processar e julgar essa inutilidade.”

Assim, concluiu o PGR que “a norma não atende, portanto, aos princípios da finalidade e da proporcionalidade, razão pela qual se mostra incompatível com a Constituição da República. Ante o exposto, o art. 2º, §6º da Lei 12.830/2013 é flagrantemente inconstitucional, por afronta ao princípio da finalidade, ao princípio da proporcionalidade e aos arts. 144, § 4º, e 129, I, da Constituição da República”.

No HC 5.399/SP, relatado pelo min. Anselmo Santiago, j. 14/4/1997, o ministro Vicente Leal do STJ assim votou:

Sr. Presidente, esta Turma tem proclamado o entendimento de que o inquérito policial não é condição de procedibilidade da ação penal, porém mera peça informativa de que se vale o Ministério Público para embasar a ação penal. Se o Ministério Público se vale de outros elementos, tais como documentos de ação fiscal-administrativa ou outra qualquer peça que noticia a presença de crime, torna-se desnecessária não só a instauração do inquérito policial como essa figura do indiciamento, que sequer tem previsão na Lei Processual Penal.

Disto se pode concluir que:

• O indiciamento viola o sistema acusatório e é incompatível com o processo penal de partes.

• O indiciamento não deve ser convertido em marco para a interrupção da prescrição pretensão punitiva estatal, já que não é ato processual e não tem qualquer relação com o exercício da ação penal pelo Ministério Público, auto que rompe a inércia estatal;

• O indiciamento deve ser suprimido da prática policial, em todos os níveis, dados os seus efeitos nocivos à presunção de inocência e à regular marcha processual;

• A existência do indiciamento na investigação criminal estimula atuações midiáticas da Policia, estigmatiza suspeitos e aumenta a possibilidade de lesões à honra e à imagem do investigado, com risco ao patrimônio público, caso presente o dever de reparar o dano;

• Conforme precedente adotado pelo STF em 2007, autoridades sujeitas a foro especial por prerrogativa de função perante aquela corte só podem ser indiciadas com autorização do próprio tribunal, a pedido do Procuradoria-Geral da República.

Redação:
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