Falta de justa causa. Por Leonardo Isaac Yarochewsky

Sao Paulo- SP- Brasil- 20/09/2016- O ex-presidente Lula, durante coletiva de imprensa onde anunciou a campanha internacional “Stand with Lula” (“Estamos com Lula”), o objetivo é defender o ex-presidente de abusos judiciais no Brasil e denunciar os “poderosos interesses” que tentam impedir sua livre atuação política. Foto: Ricardo Stuckert

Ex-presidente Lula, durante o lançamento da campanha “Stand With Lula” (Foto: Ricardo Stuckert)

por Leonardo Isaac Yarochewsky, no Empório do Direito

Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava as noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poderá dormir tranquilamente o juiz que sabe possuir, num alambique secreto, aquele tóxico subtil que se chama injustiça e do qual uma ligeira fuga pode bastar, não só para tirar a vida, mas o que é mais horrível, para dar a uma vida inteira indelével sabor amargo, que doçura alguma jamais poderá consolar?” 

(Piero Calamandrei)

A instauração de ação penal contra alguém, na Democracia, precisa ser justificada por condutas concretas e não imaginadas. Neste sentido, o acórdão do TJSC, da lavra do Des. Carlos Alberto Civinski, reafirma a necessidade de elementos consistentes. (Recurso Criminal n. 2014.090676-7).[1]

Ao receber a denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a ex-primeira-dama Marisa Letícia e mais seis pessoas, o juiz Federal Sérgio Moro da 13ª Vara Federal de Curitiba transformou todos em réus.

Com a entrada em vigor da Lei nº 11.719/2008 o legislador pátrio inseriu de forma expressa a chamada “justa causa” no Código de Processo Penal, transformando-a em requisito indispensável a ser analisado pelo juiz quando do recebimento da denúncia ou da queixa.

De acordo com o Código de Processo Penal (art. 395, III),

“A denúncia ou a queixa será rejeitada quando:

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III- faltar justa causa para o exercício da ação penal”.

Para Afranio da Silva Jardim a justa causa é uma quarta condição da ação que se junta às três outras (legitimidade das partes, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido). De acordo com o eminente processualista, “a justa causa, ou seja, um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal lastro probatório nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal”.[2]

No mesmo sentido Aury Lopes Júnior para quem a justa causa constitui uma condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar. Assevera o citado autor que: “A acusação não pode, diante inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu”.[3]

É a justa causa, no dizer de Casara e Melchior, que demonstra “a seriedade da acusação, que impede acusações levianas ou imputações temerárias, despidas de suporte fático”.[4]

Necessário salientar, ainda, que a denúncia – se assim pode ser chamada a peça assinada pelos acusadores da Lava Jato – é completamente inepta, posto que, como é de pleno conhecimento, a acusação deve ser “determinada, circunstanciada, especificando-se, inclusive, o máximo possível, em que consistiu a conduta delituosa e a participação de cada um dos autores do fato”.[5]

Qualquer pessoa desprovida de paixão, de interesses políticos, comprometida com o processo penal democrático, com o direito penal garantista e com o próprio Estado democrático de direito que tem como postulado o respeito à dignidade da pessoa humana, tem ciência de que a peça acusatória oferecida pela Força Tarefa da operação Lava Jato – em espetáculo midiático e pirotécnico – não tem o suporte probatório mínimo para embasar uma denúncia.

Promover uma ação penal sem indícios razoáveis de autoria e materialidade, destituída de qualquer suporte fático e, portanto, sem justa causa, representa uma afronta ao consagrado princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII da Constituição da República).

No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência e a prova, Alexandre Morais da Rosa, em seu instigante Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos assevera que a carga probatória é toda da acusação. De acordo com o magistério de Rosa, “por força da presunção de inocência, o acusado deveria iniciar a ação penal absolvido, derrotando-se ao decorrer do jogo penal o status de inocente, razão pela qual a carga probatória é toda da acusação no tocante aos fatos constitutivos da denúncia ofertada. Cabe ao Ministério Público comprovar, step by step, os requisitos legais para verificação da conduta e prolação da decisão condenatória”.[6] Assim sendo, “o acusado não possui a necessidade de produzir qualquer prova no processo, atribuindo o ônus probatório exclusivamente à acusação, sendo que a falta de prova, a sentença absolutória torna-se uma medida impositiva”. [7]

As garantias do processo penal observa Geraldo Prado, “são, relativamente às liberdades públicas afetadas pela persecução penal, garantias materiais dos direitos fundamentais”.[8] Mais adiante, o sempre lúcido processualista, afirma que: “O processo penal, pois, não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas, incluindo-se nesta categoria os integrantes do Poder Judiciário”. [9]

Por tudo, restaria ao juiz Federal Sérgio Mora apenas e tão somente rejeitar a denúncia por falta de justa causa para o exercício da ação penal.

Data do recebimento da denúncia sem justa causa, 20/09/2016.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/justa-causa-para-deflagracao-de-acao-penal-precisa-ser-concreta-decide-tjsc/

[2] JARDIM, Afranio Silva. Direito processual penal: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

[3] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volume I – 5ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[4] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[5] BONACCORSI, Daniela Villani. A denúncia alternativa no crime de lavagem de dinheiro. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2014.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. atualizada e ampliada. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

[7] WEDY, Miguel Tedesco e LINHARES, Raul Marques. O juiz e a gestão da prova no processo penal: entre a imparcialidade, a presunção de inocência e a busca pela verdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 24. v. 119, mar-abril de 2016.

[8] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[9] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos… ob. cit.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)

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