O capitalismo e os zumbis da mídia

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Arpeggio – coluna política diária

Por Miguel do Rosário

Há muito tempo eu especulo sobre os novos mitos da dramaturgia moderna. Interessante notar, por exemplo, que os vilões vão deixando de ser os vampiros, seres inteligentes e diabólicos, para se tornarem os zumbis, a representação máxima da cupidez estúpida e brutal.[/s2If]

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À diferença dos vampiros, que embora não consigam controlar sua sede de sangue (alguns mais moderninhos até conseguem), permanecem conscientes de sua força e malignidade, os zumbis são totalmente inconscientes de sua violência.

Os vampiros tem personalidade, preservam suas memórias, são extremamente capazes nos campos da sensualidade e da comunicação.

Os zumbis, por outro lado, são todos iguais uns aos outros. Não tem mais personalidade. Vagam sem direção, grunhindo um ódio difuso, em busca apenas de carne, de preferência humana.

Para mim, a hegemonia contemporânea dos zumbis é uma denúncia desesperada da cultura contra a massificação estupidificante dos seres humanos.

Filmes e séries não costumam dar muitas explicações sobre a origem do vírus ou doença que produz o zumbi. A meu entender, porém, a origem é a mídia corporativa. Ela é a raiz do comportamento estranho, agressivo, massificado, do indivíduo moderno.

Hoje mesmo, dando um passeio no calçadão da praia, fui até a pedra do leme e parei num dos quiosques para comprar uma água de côco. Um homem passou por mim, acompanhado de uma mulher, e me encarou de cima a baixo. Seu olhar então pareceu me reconhecer e eu pude identificar um brilho puro de ódio. Ele seguiu em frente, mas olhava para trás de vez em quando, as pupilas dilatadas pela hidrofobia.

Acho que foi a primeira vez, que eu me lembre, que fui vítima de um ódio político assim na rua. De qualquer forma, o post não é sobre isso, nem foi esse episódio que me trouxe à mente a metáfora dos zumbis.

Entretanto, o principal mito da ficção científica moderna é o domínio da máquina sobre o homem. Desde o 2001, uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, até Blade Runner, passando pelo Exterminador do Futuro e Matrix, elas estão sempre lá, as máquinas, metáforas do sistema burocrático, automatizado, frio, que vem se tornando todas as democracias ocidentais.

As máquinas representam o Estado, o capital, as corporações, contra os indivíduos, os 99%, a classe média, os trabalhadores, os pobres, os excluídos.

Os personagens centrais de todas essas ficções são sempre membros da resistência.

Aliás, de uns vinte anos para cá o mito da resistência tem crescido de maneira extraordinária no cinema. Em The Walking Dead e The Falling Skies, duas famosas séries de ficção modernas, os mocinhos da história são membros de grupos – organizados ou não – de resistência contra zumbis ou extraterrestres.

Essas narrativas fazem sucesso porque as pessoas se identificam com aqueles grupos de resistência que sobrevivem aos zumbis, às máquinas, ao fim do mundo.

No Brasil, não é diferente. O golpe contra a democracia foi um ataque duplo: máquinas e zumbis, a burocracia e a classe media imbecilizada pela mídia querendo devorar a maioria da população.

A partir dos clássicos de Aldous Huxley e George Orwell, respectivamente Admirável Mundo Novo e 1984, a humanidade criou o mito do totalitarismo absoluto, geralmente associado à imagem degenerada que temos do comunismo soviético.

Entretanto, talvez tenhamos subestimado a criatividade da vida, que costuma sobrepujar qualquer ficção. O Brasil parecia o laboratório perfeito para pensar um totalitarismo midiático e judicial. Numa tacada só, tudo parecia caminhar para que o país fosse dominado por fórmulas neoliberais criadas em computadores de Chicago, ou seja, por máquinas, e que a população, ou parte importante dela, fosse transformada em zumbis, seja fisicamente, através da miséria, seja psicologicamente, através da tentativa de destruir qualquer independência intelectual, qualquer insurgência natural, própria de indivíduos de uma nação supostamente soberana e democrática.

A eclosão das ocupações em escolas, institutos federais e universidades, no entanto, completa a narrativa moderna: onde houver opressão, haverá resistência. Onde houver tirania, haverá luta.

Daí temos essa ironia tão interessante. Eu tenho um pouco de vergonha disso, mas demorei muito para me formar. Eu já trabalhava muito, desde os dezesseis anos. Entrei na UERJ em 1998, para estudar Letras. Depois fiz outro vestibular, para Comunicação, em 2001 ou 2002, e passei. Demorei anos para terminar a faculdade porque trancava e voltava, a toda hora.

Mas pude acompanhar a atmosfera política da UERJ na era FHC, depois na era Lula e ainda pegar uma casquinha da era Dilma.

De fato, a era Lula/Dilma, por todas as realizações que trouxe, e apesar de tantas contradições, foi uma época morna na vida política das universidades e escolas.

É a lei mais básica da dialética: ela é movida pelo choque de interesses, por conflitos.

O golpe explodiu a juventude brasileira.

Primeiro, um impeachment tocado por bandidos, liderado por um bandido-mor, hoje preso em Curitiba (e não confundir com os presos políticos da Globo na mesma cidade. O caso de Cunha é diferente: suas contas na Suíça foram denunciadas pelo Estado suíço).

Segundo, uma série brutal de medidas para jogar toda a crise fiscal nas costas da população mais vulnerável: jovens, pobres, negros.

Terceiro, um aumento da repressão chegando de todos os lados, uma marcha alucinada na direção do fascismo, liderada pelas instituições mais aristocráticas do Estado.

O judiciário, o ministério público, as polícias federal e estadual, a classe política, a mídia, todas as instituições tradicionais do Estado foram desmascaradas pelo golpe. Estão todas corrompidas pelo poder e pelo dinheiro.

As castas mais privilegiadas, com maiores salários, se tornaram o esteio do golpe. E as categorias mais exploradas pelo Estado, profissionais da educação e da saúde, são forçadas a aderir à resistência, para não serem devorados pelas máquinas e seu exército de zumbis.

Quase metade do orçamento público federal está sendo consumido por juros, o que não é normal. Nenhum outro país vive uma situação similar. Lula e Dilma não mexeram nisso, e mesmo assim foram derrubados porque as máquinas queriam assumir as rédeas para elevar o nível de repressão.

O principal erro de Dilma, naturalmente, foi a nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda. Foi uma tentativa desesperada de reagir à guerra especulativa que já se mostrara brutal durante a campanha presidencial. O mercado não queria mais o PT e jogou pesado em favor de Aécio. As ações da Petrobrás disparavam quando Aécio crescia nas pesquisas e desabavam quando ele caía.

Nos últimos meses, as ações da Petrobrás voltaram a crescer, porque o mercado queria um governo como o de Temer, disposto a vender a estatal na bacia das almas, oferecendo dividendos rápidos e fáceis aos acionistas. É claro que as ações se valorizam!

Uma empresa como a Petrobrás já tinha sido fragilizada por Fernando Henrique Cardoso, quando abriu seu capital na Bolsa de Nova York, deixando-a vulnerável a todo tipo de ataque especulativo. O que passou a valer, então, para a mídia, não era mais a produção de petróleo, onde a Petrobrás vem batendo recordes sobre recordes, superando em competência qualquer outra petroleira no mundo, e sim a cotação da estatal nas bolsas. A Petrobrás já estava em mãos das máquinas, e não mais da população, que é quem compra seus produtos e a tornou uma das maiores empresas do mundo.

A primavera contra o golpe, um movimento formado por uma juventude despida dos preconceitos de seus pais (em geral não tem partido, mas não odeiam partido, não são prisioneiros de nenhum ódio ou rancor), mostra que a nossa história política permanece viva e prenhe de surpresas.

Os grupos de resistência aos poucos se estabilizam, encontram refúgio, desenvolvem técnicas novas de combate, criam laços de solidariedade entre si, organizam-se melhor, amadurecem, crescem, multiplicam-se.

O coração do Brasil, ferido pelo golpe, envenenado pela mídia, ainda pulsa.

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Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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