De Doria e do Salário Doado

Photo: Prefeitura de São Paulo

O Prefeito de São Paulo, João Doria, resolveu doar seu salário de 17.948,00 à Associação de Assistência à Criança Deficiente. Gesto que já está sendo aplaudido por muitos e que ele mesmo chamou de ‘política pública’.

Mas este ato, supostamente altruístico, gera implicações seríssimas para a democracia e as políticas públicas.

Em primeiro lugar, ele está estabelecendo um precedente. Vista por muitos como ‘nobre’ e ‘generosa’, a doação cria expectativas que afetam a própria essência da democracia.

Isso porque, a ‘generosidade’ de Doria só é possível, por ser um homem rico. Do contrário, ele não poderia se desfazer do salário. Se este comportamento se torna esperado, afetará quem poderá ser e não ser prefeito.

As pessoas mais pobres não podem doar o salário ou tratar a posição de ‘prefeito’ como ato altruístico. E se outros perfeitos não podem segui-lo, eles não serão vistos como prefeitos tão aptos como Doria, que pode doar seus salários.

Antigamente, havia a necessidade de ser proprietário para poder participar da política. Por séculos argumentou-se que os ricos poderiam ser mais idôneos e agir no interesse público, pois não teriam a necessidade de se ‘corromper’.

Daí a ideia do político ‘gentleman’, que não só não teria interesse em fazer uso pessoal da ‘coisa pública’, como também teria o tempo livre necessário para a prática da política e para dedicar-se ao público.

Foram justamente as várias lutas pela emancipação que extinguiram a necessidade de ser proprietário, para que toda a população pudesse participar na política. Um ganho de extrema importância, que não podemos perder de vista.

Não nos esqueçamos também que os ricos não são isentos de corrupção. Haja visto Paulo Maluf que, pelo menos até o ano passado, continuava na lista de procurados da Interpol.

A outra questão que o gesto de Dória levanta tem a ver com o assistencialismo e as políticas públicas.

A palavra ‘assistencialista’ tem sido usada pela mídia pelo menos nos últimos 14 anos (desde que o governo petista lançou o programa Fome Zero e a Bolsa Família) de maneira pejorativa.

Ao meu ver, nunca tivemos um debate adequado sobre este assunto.

Examinemos o que Doria está fazendo aqui: está doando seu salário (que é pago por nós contribuintes) a uma organização de sua escolha pessoal – o que ele chama de ‘política pública’.

O problema é o seguinte: em teoria, quando pagamos impostos, eles são redistribuídos pelo Estado para atender diferentes necessidades que são organizadas por prioridades e de acordo com os programas de governo dos partidos que se elegeram.

Em outras palavras, os governos (sejam eles municipais, estaduais ou federais), utilizam-se dos impostos de maneira democrática (ou pelo menos deveria). Isto é, de acordo com a escolha da população.

Além da escolha democrática, o Estado, por lei, precisa alocar os recursos de maneira diversificada, e não pode, por exemplo, aplicar todo o seu orçamento somente na educação. Porque as demandas no Estado são múltiplas e diversas e fundamentadas nas leis.

Quando uma pessoa rica faz um ato caritativo, é ela que escolhe quem ajudar. É um privilégio seu e somente seu.

Por exemplo, Bill Gates, através da sua fundação, escolhe gastar parte de sua fortuna na pesquisa de soluções para doenças como a malária, a tuberculose e a Aids. Doenças, aliás, nas quais as grandes empresas de produtos farmacêuticos não gostam de investir.

Deveríamos, portanto, nos sentir gratos a Bill Gates e sua generosidade?

Pois, a gratidão é a nossa única opção, já que não temos participação ou influência nenhuma sobre como Gates usará a sua fortuna.

Ele poderia estar bancando a disseminação do individualismo radical, criando think-tanks e pagando a mídia para difundir a sua visão do mundo, como alegadamente fazem os Irmãos Koch, não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, administrando palestras, convidando políticos e juristas, ajudando a financiar campanhas como o Brexit, por exemplo.

Não temos porque reclamar. A prerrogativa do que fazem com o dinheiro deles, é só deles. E o menos impostos eles (e Gates) pagam, mais eles terão a direito de decidir e menos poder de influência teremos nós.

É por isso que o que Gates faz, e Doria está fazendo, é assistencialismo – eles ‘assistem’ voluntariamente a quem quiserem. Diferentemente das políticas públicas – democraticamente decididas e aplicadas – como o bolsa família.

E é por isso, que vale mais nossa pena pagar impostos que devem ser redistribuídos democraticamente, e de acordo com as leis vigentes, do que nos valer da boa vontade de benfeitores ricos.

E a corrupção? Ouço já vocês perguntarem… Sem democracia, sem accountability, sem a participação política da população, sem estado de direito e um sistema justo de pesos e contrapesos não vamos nunca acabar com a corrupção. Certamente não é através do aviltamento da política que nos livraremos da corrupção. Mas isso já é outra história.

Mariana T Noviello:
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