Operação Carne Fraca, a maior barriga da história da Polícia Federal?

A operação Carne Fraca está se revelando o maior fiasco da história da Polícia Federal. Após ler a reportagem da BBC, o jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva opinou que a história está lhe “cheirando a uma nova escola de Base, barriga jornalística”.

Um fiasco e uma barriga que podem nos custar, em plena recessão, um prejuízo de bilhões de dólares.

A acusação, lançada pelo delegado responsável pela operação, Mauricio Moscardi Grillo, de que haveria uso de substância para mascarar a deterioração da carne oferecida aos consumidores, chocou profundamente a população.

Daí começou-se a gritaria sobre “carne podre”.

A suspeita da PF surgiu porque, durante a investigação, os agentes ouviram executivos falando em uso de “ácido ascórbico”.

A informação foi questionada por especialistas ouvidos pela BBC, que falaram em “exagero” e “sensacionalismo”. Eles explicaram que o ácido escórbico não pode ser “demonizado”, porque se trata de substância “necessária para o processamento de alimentos”.

A PF não encontrou, em suas apreensões, nenhuma carne estragada.

O uso de papelão na carne também foi questionado. Segundo a empresa, foi um “grande mal entendido”. O funcionário falava da possibilidade de embalar a carne em papelão, ao invés de fazê-lo em plástico.

Leia a matéria da BBC.

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Papelão e substância cancerígena ou exagero? O que se sabe – e o que é dúvida – na Operação Carne Fraca

Por Camilla Costa e Renata Mendonça
Da BBC Brasil em São Paulo

Carne com papelão? Vitamina C cancerígena na salsicha? Desde que a Operação “Carne Fraca” da Polícia Federal foi deflagrada na última sexta-feira, as informações se espalharam pela internet e causaram pânico em muitos consumidores.

A BBC Brasil conversou com engenheiros de alimentos e especialistas em carnes para esclarecer o que pode e o que não pode ser adicionado no processamento de carnes e quais as preocupações que a investigação da PF deve despertar no consumidor.

Para alguns deles, a maneira como a operação foi divulgada acabou gerando uma desconfiança “exagerada” sobre a carne brasileira.

“A polícia agiu mal com a maneira como divulgaram tudo. Acho que houve um certo exagero, para precipitar a loucura que foi na imprensa ontem”, disse à BBC Brasil o médico veterinário e especialista em carnes Pedro Eduardo de Felício, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.

A engenheira de alimentos Carmen Castillo, da ESALQ – USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), pontua que alguns ingredientes citados nas acusações, como o ácido ascórbico, são necessários para o processamento dos alimentos e é preciso tomar cuidado para não “demonizá-los”.

“Não é problema usar esses ingredientes (em alimentos processados e embutidos), o problema é não respeitar os níveis permitidos na lei”, disse à BBC Brasil.

De acordo com a Polícia Federal, esse seria um dos delitos cometidos pelas empresas, que utilizavam ingredientes no processamento de carnes em quantidades acima do que determina a regulamentação.

“Eles usam ácidos, outros ingredientes químicos, em quantidades muito superiores à permitida por lei pra poder maquiar o aspecto físico do alimento estragado ou com mau cheiro”, explicou o delegado da PF responsável pela investigação, Maurício Moscardi Grillo, em entrevista coletiva na sexta-feira.

A operação deflagrada pela PF foi a maior de sua história e revelou que empresas do setor, incluindo as as gigantes JBS e a BRF, adulteravam a carne que vendiam no mercado interno e externo.

A investigação também revelou um esquema de propinas e presentes dados pelos frigoríficos a fiscais do Ministério da Agricultura, que supostamente recebiam para afrouxar a fiscalização e liberar a comercialização de carne vencida e adulterada.

Sobre as acusações, a JBS se manifestou dizendo que “é a maior interessada no fortalecimento da inspeção sanitária no Brasil”, ressaltando que “no despacho da Justiça Federal que deflagrou a operação, não há qualquer menção a irregularidades sanitárias ou à qualidade dos produtos da JBS e de suas marcas.”

A BRF disse que “apóia a fiscalização do setor e o direito de informação da sociedade com base em fatos, sem generalizações que podem prejudicar a reputação de empresas idôneas e gerar alarme desnecessário na população.”

Exagero?

O delegado Grillo explicou os problemas encontrados na carne das empresas investigadas pela operação – que iam desde mudar a data de vencimento e a embalagem de carnes estragadas, que eram usadas como matéria-prima para embutidos, até injetar água em frangos para alterar seu peso e mascarar a deterioração de carnes com o uso de ácido ascórbico.

“São dois anos de análise de fatos, desde utilização de papelão por essas empresas – até essas que já citei de grande porte (JBS e BRF) – para colocar esse tipo de situação em comidas, pra fazer enlatados, e outras coisas que podem prejudicar a saúde humana. (…) Tudo isso mostra que o que interessa para esse grupo é o capitalismo, é o mercado, independente da saúde pública”, disse.

“Determinados produtos, cancerígenos até, em alguns casos, eram usados pra poder maquiar as características de um produto estragado ou com cheiro.”

Mas alguns especialistas ouvidos pela BBC Brasil avaliam o modo como as informações foram divulgadas como “sensacionalista”.

“A divulgação da operação foi muito sensacionalista. Essa é uma questão pontual. Estou nesse mercado, estudando e trabalhando, há 30 anos. Uma das empresas que dirijo importava carne do Uruguai e da Argentinos até 2012. Hoje, 100% da carne que usamos é produzida no Brasil porque melhorou muito a qualidade”, afirma Sylvio Lazzarini, dono do restaurante Varanda Grill, em São Paulo.

Já Felício ressaltou a importância da investigação e disse que a operação revela um problema no setor, que “precisa de uma renovação no sistema de fiscalização”. Ele destaca, porém, que é preciso esclarecer melhor as informações divulgadas sobre ingredientes comuns na indústria de carnes, como o ácido ascórbico, “que é utilizado no mundo todo”.

Tanto Felício quanto Lazzarini apontaram o fato de que, ao anunciar a operação, a PF não explicitou quais infrações foram cometidas por quais empresas, o que facilitaria uma “generalização” do problema.

A BBC Brasil procurou a Polícia Federal, mas não obteve resposta até o fechamento dessa reportagem.
Pata de porco com selo de inspeção brasileiroDireito de imagemREUTERS

Sistema de fiscalização precisa de renovação, mas carne brasileira é de alta qualidade, segundo Pedro Felício

Papelão

Ao anunciar a operação, a PF mencionou que empresas envolvidas no esquema de corrupção “usavam papelão para fazer enlatados (embutidos)”.

Em uma das ligações telefônicas citadas no relatório da Polícia, funcionários da BRF falam sobre o uso de papelão na área onde produzem CMS (carne mecanicamente separada, comumente usada na produção de salsichas).

No áudio, é possível ouvir:

Funcionário: o problema é colocar papelão lá dentro do cms também né. Tem mais essa ainda. Eu vou ver se eu consigo colocar em papelão. Agora se eu não consegui em papelão, daí infelizmente eu vou ter que condenar.

Luiz Fossati (gerente de produção da BRF): ai tu pesa tudo que nós vamos dar perda. Não vamos pagar rendimentos isso.

Pedro Felício acredita que a referência ao papelão não foi feita como ingrediente para o processamento da carne. “Acho muito difícil isso ter acontecido. O que acontece é que tem áreas dentro das indústrias que são chamadas de áreas limpas, onde não podem entrar embalagens secundárias, como caixas de papelão”, diz.

“Na gravação que ouvi, duas pessoas falavam em entrar com uma embalagem de papelão na área limpa.

Evitar papelão nessas áreas faz parte das boas práticas de manufatura, mas não fazer isso não é o mesmo que usar papelão dentro da salsicha.”

Em nota, a empresa BRF afirmou que “houve um grande mal entendido na interpretação do áudio capturado pela Polícia Federal”.

A empresa afirma que um de seus funcionários falava que tentaria embalar a carne em papelão. O produto é embalado normalmente em plásticos.

“Na frase seguinte, ele deixa claro que, caso não obtenha a aprovação para a mudança de embalagem, terá de condenar o produto, ou seja, descartá-lo”, afirma a empresa.

Ácido ascórbico

O ácido ascórbico – a popular vitamina C – também foi citado pelo delegado da PF como algo utilizado para “maquiar” o aspecto da carne.

“Eles usam ácido ascórbico e outras substâncias na carne pra maquiar essa imagem ruim que ficaria se ela fosse expostas dessa forma. Inclusive cancerígenas. Então se usa esses produtos multiplicados cinco, seis vezes pela quantia permitida pela lei para que não dê cheiro, e o aspecto de cor fique bom também”, disse Grillo.

A partir daí, muitas pessoas entenderam que o ácido ascórbico é uma substância potencialmente cancerígena.

De acordo com a OMS, ela pode contribuir com distúrbios gastrointestinais, cálculos renais e outros problemas de saúde se for consumida em excesso e por longos períodos de tempo, mas não há evidências de relação direta com o câncer.

Falta saber que substâncias cancerígenas estariam sendo usadas e por quais empresas, de acordo com a investigação da Polícia Federal.

Os especialistas alertam que o uso de ácido ascórbico na carne não é problema.

“O uso dele tem benefícios e não é para mascarar carne adulterada. Ele tem uma função nas carnes processadas como antioxidante, ajuda a melhorar a estabilidade do sabor e reduzir o teor de nitrito residual. O nitrito é um aditivo para realizar a cura, que é uma etapa importante no processamento da maior parte dos produtos processados. Todo ingrediente não cárneo tem função a cumprir no processamento de alimentos”, afirmou Carmen Castillo.

Pedro Eduardo de Felício pontua que o ácido ascórbico “evita que a carne fique com uma coloração marrom” e que “isso é feito no mundo todo”.

A substância, segundo Felício, conseguiria mascarar a deterioração da carne no princípio, quando ela só tem algumas manchas, mas não quando o estado é mais avançado.

De qualquer forma, ela só deve ser usada somente em produtos embutidos como parte de seu processamento, e não nas carnes que são vendidas como matéria-prima para estes produtos – nem nas carnes compradas no supermercado.

“A carne usada como matéria-prima não deve ter qualquer aditivo, nem o ácido ascórbico. Se a Polícia achou isso, não deveria acontecer”, diz.

Brasil exporta carne para mais de 150 países em todo o mundo, em mercado que movimenta milhões de dólares

Salsicha de peru sem peru

A descoberta de que, no Paraná, alunos da rede pública estadual consumiram salsicha de peru sem carne de peru – preenchida com proteína de soja, fécula de mandioca e carne de frango – deu início à investigação de dois anos.

“Muitas vezes verificou-se a falta de proteína, por exemplo, numa merenda escolar, trocada por fécula de mandioca ou então a proteína da soja, que é muito mais barata do que a carne, então substituía. Muitas vezes até tinha a quantidade de proteína suficiente, mas não era a proteína da carne, era proteína de outro alimento, que não traz as mesmas substâncias pro corpo humano como a carne”, afirmou o delegado.

O uso de soja e de fécula de mandioca são comuns na produção de embutidos em todo o mundo, segundo os especialistas, porém é preciso respeitar as quantidades determinadas pela lei.
“É preciso observar as quantidades usadas, porque elas só podem ser usadas dentro dos limites da lei. Senão, você tem um produto de carne que tem predominância de matérias-primas não cárneas”, diz Felício.

Injeção de água no frango

Segundo a PF, fiscais teriam descoberto que frangos da empresa BRF, a maior exportadora de frango do mundo, teriam “absorção de água superior ao índice permitido”.

“Injetar água no frango é um problemão com o qual o Brasil vive e luta contra há muito tempo. Há oito anos que o Ministério da Agricultura é cobrado pelo Ministério Público que o frango não pode ter mais de 8% de água”, afirma Felício.

“É uma luta difícil. Eu não duvido que isso aconteça muito por aí, mas existe um esforço para combater.”

A prática não chega a ser prejudicial à saúde, mas altera o peso da carne. “É uma fraude econômica”, diz o engenheiro.

Mais de 20 empresas estão sendo investigadas pela PF, incluindo as gigantes do setor, JBS e BRF, que negam irregularidades

Cabeça de porco

O uso da carne de cabeça de porco ou de boi em linguiças é discutido em uma das ligações interceptadas entre os sócios do frigorífico Peccin e é proibido no Brasil. “Usavam cabeça de porco, animal morto, tudo para fazer esse tipo de produtos, principalmente esses derivados, salsicha, linguiça, e outros produtos”, afirmou Grillo.

A utilização de cabeça de porco é admitida em outros países, segundo Felício. “Não será a melhor linguiça do mundo, mas não é prejudicial à saúde. Será um produto comestível, mas de categoria inferior.”

“No Brasil, essa carne é considerada como matéria-prima nas formulações de embutidos cozidos, como mortadela, mas não em linguiças, que são cruas.”

O consumidor deve se preocupar?

Segundo Sylvio Lazzarini, as irregularidades encontradas pela Polícia Federal devem ser punidas, mas não representam a totalidade dos produtos feitos no Brasil e vendidos em supermercados e restaurantes.

“A carne brasileira evoluiu muito nos últimos anos e é muito segura. Senão o Brasil não exportaria para os países asiáticos, e muito menos para os EUA, que tem um dos maiores controles fitossanitários do planeta”, diz Lazzarini.

Para o empresário, “irregularidades desse nível existem em todo o mundo porque bandidos existem em todo lugar”.

O Ministério da Agricultura divulgou nota também para acalmar os ânimos dos consumidores.

“O Serviço de Inspeção Federal é considerado um dos mais eficientes e rigorosos do mundo. Tem um quadro de 2.300 servidores e inspeciona 4.837 unidades produtoras habilitadas para exportação para 160 países. Foi com este Serviço que construímos uma reputação de excelência na agropecuária e conseguimos atender às exigências rigorosas de diferentes nações”, afirma a pasta.

Segundo delegado da PF, consumidores podem ter comprado produtos de qualidade inferior ao que deveria ser fornecido.

O delegado da PF chegou a ser questionado na coletiva de imprensa se seria correto afirmar que “quase nenhum produto no mercado hoje está 100% livre dessas possíveis fraudes”. Ele respondeu com cautela, mas não escondeu sua preocupação.
“É possível que a gente tenha consumido alimentos de baixa qualidade, no mínimo, com qualidade inferior do que deveria ser fornecido.”

“Hoje é realmente complicado. Tenho ido ao mercado e passeio um bom tempo até escolher um produto, mudou esse aspecto na minha vida. É difícil porque a confiança que a gente tem nas empresas, pelo menos da minha parte, mudou muito. São empresas que a gente considerava corretas, então assusta.

Obviamente deve ter empresas sérias, corretas, mas na investigação foi assim, foi aparecendo uma, depois outra. Acho que a gente pode dizer que todas as empresas que a gente teve o azar ou a sorte de investigar tiveram problemas sérios. Foram quase 40.”

Para evitar problemas, Pedro Eduardo de Felício afirma que os consumidores devem conferir se os estabelecimentos de onde compram carne vendem produtos com certificação de origem e de inspeção, mesmo após as acusações de corrupção de inspetores federais.

“Este escândalo é de desvio de conduta de 33 funcionários, que foram afastados, entre mais de quatro mil inspetores. E o Ministério da Agricultura estar tomando atitudes para corrigir o problema. A partir de agora, todo mundo vai ficar alerta.”

“Os erros que foram cometidos devem ser comprovados e punidos, com certeza. Mas eu não acredito que essas acusações possam ser generalizadas, acho que esse foi problema localizado e o governo terá que resolver”, diz.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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