Menu

O conto preferido de Clarice Lispector

Ontem, publiquei aqui no Cafezinho a única entrevista em vídeo com Clarice Lispector. Perguntada qual seu texto preferido, ela menciona esse conto, Mineirinho, que ela fez inspirada no sentimento de piedade em relação a um bandido assassinado pela polícia. Clarice admite que é um de seus textos mais políticos. “Um só tiro bastava, e foram […]

9 comentários
Apoie o Cafezinho
Siga-nos no Siga-nos no Google News

Ontem, publiquei aqui no Cafezinho a única entrevista em vídeo com Clarice Lispector. Perguntada qual seu texto preferido, ela menciona esse conto, Mineirinho, que ela fez inspirada no sentimento de piedade em relação a um bandido assassinado pela polícia.

Clarice admite que é um de seus textos mais políticos. “Um só tiro bastava, e foram 13 tiros. Aquilo foi vontade de matar. E isso me deu muita revolta”, diz a escritora, na entrevista.

Eu fiquei curioso e fui ler o conto, e o reproduzo abaixo, para partilhar o prazer com os leitores do Cafezinho.

***

Conto: “Mineirinho”

Por Clarice Lispector

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo pro­curar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perple­xidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.

Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.

Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.

E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que esta­mos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido com­preendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

Apoie o Cafezinho

Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

Mais matérias deste colunista
Siga-nos no Siga-nos no Google News

Comentários

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site O CAFEZINHO. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Escrever comentário

Escreva seu comentário

DANIELA BORALI

14/12/2017 - 02h03

(…) Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.

Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça. (…)

(Clarice Lispector)

Cibele Nunes Alencar

13/12/2017 - 11h05

Desde que conheci Clarice Lispector, não percorrem meus olhos simples palavras. Eu as degusto ou as devoro a depender do ritmo das vírgulas. E ainda depois de mastigadas as palavras são por mim sentidas no trajeto do meu corpo. Eu as degluto e as rumino… e, jamais as defeco. Por vezes as vomito, requentadas as engulo outra vez. Elas não têm fim e se incorporam em minha proteína e compõem o meu DNA. Percebo que a cepa de Clarice não vem dela, nem ao menos vem do ancestral comum entre todos os primatas. A cepa de Clarice é anterior ao divino Faça-se.
Dramaticamente, a edição de todos os contos me observa da cabeceira da cama. Ilusão, Lispector’s olhos observam as organelas da célula de Mineirinho, da galinha e do ovo. Eles se voltam para dentro deles mesmos, olhos infinitamente introvertidos. Vejo com espanto: o de dentro deles sou eu?!… Ela observa o nada e pontua a mim: eu que ainda não me percorri como quem ainda não tem a alma pronta. Ela lista o que em mim encontrou, tentando ela mesma se pontuar, tendo por mim um parâmetro!?… Feiticeira! Bruxa! Arrepio-me pasma e atônica, como uma velha moradora que encontra pela primeira vez um sótão em sua própria casa. No humor vítreo dos olhos do mundo clariceano pululam baratas expressivas, volantes, tão visíveis quanto o nariz em um rosto. No meu rosto… Oh, Deus! Sou a barata, sou assassina, sou Clarice. Deixe-me ser, Clarice… Suplico-te que me deixes ser…. Mas, Lispector’s olhos, voltados à luz anterior ao próprio feixe que de dentro deles poderia sair, veem o caminho que a alma percorre, quando anônimos olhos acostumados às grandes coisas piscam tranquilos, sem se darem conta do infinito vazio que os compõem. Clarice ocupa o vazio que encontrei em mim. Se não houvesse o 10 de dezembro de 1920 eu existiria?
#claricelispector

Renata

13/12/2017 - 00h59

Simplesmente adoro esse texto de Clarice Lispector. Brutalmente belo.

Mar

12/12/2017 - 15h23

Já li um livro da Clarice Lispector: A hora da estrela. Confesso que não sou muito fã dela não. Sobre o conto, me perdoe a falta de sensibilidade neste momento para análise literária deste conto, mas em tempos de golpe e farsa jato, não tive como não pensar no Mineirinho da atualidade. Isso mesmo, no Mineirinho da lista da Odebrecht. Semelhante ao Mineirinho do conto, o Mineirinho da atualidade é dado a tirar vidas, já ameaçou até a acabar com a vida do próprio primo caso ele delatasse. Os danos que o Mineirinho da atualidade faz, é bem maior que o do conto: apostou no quanto pior melhor para derrubar sua adversária do poder, não se importando se isto afetaria milhares de vidas, ele tira direitos do trabalhador, entrega o patrimônio nacional ao capital estrangeiro e tem malas de dinheiro proveniente de propinas. Tem outros crimes também ligados a certo helicóptero que rondava lá pelas bandas de MG, que nem vou me aprofundar muito. A lista é grande, o Mineirinho da atualidade sabe tocar terror. Porém algo me chamou atenção, no que se refere a postura da polícia com o Mineirinho. A polícia do conto, não hesitou em por fim a vida de crimes do Mineirinho, matando-o com 13 tiros (aliás número bastante sugestivo). Já a polícia da atualidade é parceira do Mineirinho, não mexe com ele nem por um decreto. Aliás não só a polícia, mas todo o judiciário. O Mineirinho da atualidade está de boa. Espero que em 2018 o 13 seja de novo o número que vai por fim a lista dos crimes do Mineirinho, pelo menos na política.

    Nemo

    12/12/2017 - 19h07

    Zezé é um trabalhador comum que ama sua namorada Maria das Graças. Sua vida sofre uma reviravolta quando uma mulher desconhecida entra no bar onde estava e lhe pede ajuda contra três homens que a perseguiam. Zezé tenta impedir que os bandidos agridam a mulher e é violentamente espancado. Achando que vai morrer, Zezé mata o líder dos bandidos com uma garrafada na cabeça. Nesse momento é ouvida a sirene da polícia e todos fogem, inclusive Zezé que é levado pela mulher que se chama Isabela para um barraco no Morro da Mangueira, onde ela vai cuidar de seus ferimentos.

    Fizeram um filme sobre este Mineirinho (não o atual, que é indigno)…. “A vítima de Zezé era uma bandido temido e a imprensa sensacionalista abre grandes manchetes sobre o caso, apelidando Zezé de Mineirinho. A polícia continua a investigar e sobe o Morro, mas no caminho acontece um tiroteio com o traficante Cobrinha e seu bando, que também estavam atrás de Isabela. Os três policiais que estavam na ação são mortos e a imprensa atribui os crimes a “Mineirinho”, que assim se torna o “Inimigo Público Número Um”. O Comissário Geraldo e seus homens entram no caso, cercam o morro e começam a vigiar a namorada de Zezé. Mas Zezé consegue escapar do cerco com a ajuda de Isabela e de bandidos (Neném, Caveira, Cabo, Onofre) e moradores da favela. Revoltado com a situação, Zezé reage com violência e começa a liderar os bandidos em várias ações criminosas e também se torna um “benfeitor” da favela, agindo como um “Robin Hood” do morro, o que acirra ainda mais a perseguição a ele por parte das autoridades e da polícia.”

Monica Valente

12/12/2017 - 14h24

Noosssa, que soco no estômago! Brilhante e atual! Obrigada por publicar e partilhar.

Ricardo G Ramos

12/12/2017 - 13h51

“… o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que esta­mos todos certos e que nada há a fazer.” Imensa Clarice!


Leia mais

Recentes

Recentes