Marielle: o duplo assassinato de uma militante

 

Jeferson Miola

A cada dia, a biografia de Marielle Franco é enriquecida com novas revelações de uma trajetória de vida que é digna de livro e filme.

Marielle não era muito conhecida além do circuito do Rio de Janeiro e de setores de vanguarda da esquerda partidária e social. Apesar disso, a barbárie e a covardia do seu assassinato causaram uma impressionante comoção no Brasil.

À medida, entretanto, que sua bela história política e de vida foi sendo contada, a revolta e a indignação política se adicionaram à comoção que tomou conta do país e se espraiou pelo mundo.

É irônico que, enquanto viva, a trajetória desta extraordinária militante libertária tenha sido sonegada e escondida pela mídia elitista e colonizada que encontra tempo para programação imbecil ao estilo big brother e faustão, mas não destina 1 segundo do tempo da sua televisão para retratar a vida digna das sobreviventes da favela e das suas legítimas representantes.

É irônico porque, se Marielle tivesse sido celebrizada pela Globo como seu cadáver está sendo agora incensado pela emissora da família Roberto Marinho, provavelmente ela teria tido a justa e merecida notoriedade que poderia lhe assegurar um pouco mais de proteção e de inibição de ataques fascistas como o que a vitimou.

Antes do atentado facínora do qual foi vítima na noite do 14 de março de 2018, Marielle Franco já era Marielle Franco – a jovem, negra, LGBT, “cria” da Maré, lutadora de fibra, democrata, feminista, socialista, defensora da liberdade e dos direitos humanos e vereadora pelo PSOL.

Antes do seu assassinato, portanto, já existiam as razões para este reconhecimento público que, só ocorrido agora, é cínico e perverso, porque só ocorre postumamente, com o corpo mortificado e inerte e a voz asfixiada, emudecida.

Marielles mortas valem mais que Marielles vivas – as primeiras ganham notoriedade; as segundas, simplesmente não existem. A regra é simples: Marielles devem permanecer invisíveis em vida; seus exemplos, suas lutas e suas resistências devem ser silenciadas, abafadas e escondidas.

No manual da mídia que reproduz o pensamento único capitalista, não cabem vocábulos como pluralidade, diversidade, dissenso e tolerância. As lógicas contra-hegemônicas, consideradas ameaçadoras do status quo, são banidas do noticiário.

Quando esconde a realidade, sobretudo a realidade das favelas e da vida concreta da maioria do povo pobre, a mídia simplesmente faz de conta que não existem políticas alternativas e que não existem sujeitos históricos como Marielle Franco.

O poder da mídia não provém exclusivamente da manipulação da notícia e da realidade, mas principalmente do ocultamento daquilo que não interessa ao sistema mostrar. Roberto Marinho dizia que “A Globo é o que é mais pelo que não publicou do que pelo que publicou”.

No livro Quarto Poder, Paulo Henrique Amorim comenta sobre as ordens do doutor Roberto Marinho para o telejornalismo da Globo:

– “Ordem número 1: não quero preto nem desdentado no Jornal Nacional. Ordem número 2: se o Brizola se jogar debaixo de um trem para salvar uma criança, e se a criança se salvar e o Brizola morrer, mesmo assim devo ser consultado para saber se autorizo publicar o nome dele no Jornal Nacional”.

A extraordinária obra política e social como a da Marielle não deve ser mostrada no Jornal Nacional, no horário nobre do noticiário ou nos programas dominicais que, aliás, são concebidos para alienar, abastardar e estupidizar o povo, nunca para educá-lo e libertá-lo.

Antes de ser silenciada por terroristas bárbaros na noite do último 14 de março, quando foi vítima do seu segundo assassinato, Mirelle já tinha sido silenciada pela mídia dominante, que a assassinou pela primeira vez, escondendo e enterrando sua trajetória.

A luta da Marielle Franco – mulher, LGBT, feminista, negra, favelada, jovem e militante socialista – é uma luta transcendental, porque é uma luta de resistência de uma vida inteira contra o banimento midiático, econômico e social dela e da sua classe, a classe dos subalternos.

Marielle está presente! Mais do que nunca! E ela tem tudo para se transformar num rastilho de pólvora.

Jeferson Miola:
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