“O Mecanismo”: as velhas engrenagens e os perigos do melodrama.

(Charge: Jota Camelo) Por Cíntia Christiele Braga Dantas,

 

A série “O Mecanismo”, produzida pela Netflix, apela para os recursos do gênero melodramático na construção de uma obra “fictícia”, que se arroga imparcial, e busca escrever um dos mais importantes capítulos de nossa História apenas àqueles que “sabem ler”, como afirmou em entrevista o diretor e produtor José Padilha. Uma grande contradição já que, tradicionalmente, o melodrama é também conhecido por “cinema de lágrimas”, ou seja, um estilo de narrativa que recorre ao sensacionalismo, à emoção a flor da pele, conduzida pelo arco dramático de um protagonista, que atravessa um deserto de sofrimentos e injustiças, carrega consigo uma legião de seguidores, e se arrasta com todas as forças em busca da redenção.

Assim é apresentada a trajetória do personagem do delegado Ruffo (Selton Mello). Um melodrama, de rasa pretensão estética e comedida elaboração artístico-intelectual. A série é contada do ponto de vista (POV) de um policial federal, visivelmente identificado com o lado mais fraco da história, isto é, com o lado pobre, sem nenhuma ligação com forças políticas de alta envergadura. Ruffo seria um representante do povo, dos manifestantes, daqueles que do dia para noite, depois de mais de 500 anos de corrupção endêmica, resolveram ir às ruas para salvar a República e bater panelas para reclamar dos políticos. Se o expectador se identifica com o protagonista, isso não é sem propósito, faz parte de um posicionamento político, que dentro do estilo melodramático ganha status de apartidário, já que se trata de um drama pessoal, ou seja, da luta de um indivíduo contra todo um sistema, contra “O Mecanismo”.

No decorrer da trama o delegado enlouquece com tantos números, contas, num quebra cabeça, que quase o conduz a um desfecho fatal. Em decorrência de seu debilitado estado psicológico é afastado das investigações. Ruffo chega ao extremo do suicídio, o que desperta a comoção do espectador que se compadece do herói e se une à causa. Um milagre acontece e ele escapa de uma bala na cabeça. Ressuscita dos mortos para levar adiante seu plano de salvar o Brasil dos corruptos.

Assim como a corrupção – levando-se em contas as singularidades – o melodrama é uma instituição também a serviço de velhas engrenagens. O grande Glauber Rocha já denunciava os perigos do melodrama para a bestialização do público e para o deleite dos grandes estúdios. Glauber criticava a construção de personagens patológicos (valorização do plano individual) em oposição aos personagens históricos (valorização do sujeito histórico que abraça a coletividade e as demandas político-sociais): “Se as classes se identificam pela carne e não pelo dinheiro, o cinema comercial ganha sua forma artística ideal no melodrama: personagem patológico, herdado da dramaturgia padronizada dos argumentistas americanos, se opõe com sucesso ao personagem histórico; o personagem histórico, como o próprio autor, é um quociente, despido, objetivo, forte e violento em sua prática”. Ainda sobre o melodrama, de características hollywoodianas, Marc Ferro elucida que, “Nele se encontra sempre a personagem da vítima – de preferência uma mulher e, se possível, uma atriz bonita – um tratamento patético que faz com que o espectador adote o ponto de vista desta; a intriga exige, enfim, peripécias violentas, providenciais ou catastróficas, que não são devidas unicamente às circunstâncias”.

Na arca dos heróis de “O Mecanismo” também se localiza a delegada Verena (Caroline Abras), que prossegue com as investigações após o afastamento do amigo. Verena é a mulher forte e independente do século XXI, tão obstinada quanto Ruffo na caçada aos malvados corruptos. Feliz na carreira e amargurada na vida pessoal, a personagem é incompatível com o discurso de empoderamento feminino, já que satisfaz sexualmente o colega casado do MP, além de alimentar com provas àqueles que se tornarão os representantes exclusivos da Liga da Justiça, com QG em Curitiba. O comandante da Liga é o juiz Paulo Rigo (Otto Jr), uma espécie de Messias moldado pela Marvel. O time do bem se une e os conflitos enfrentados pelos heróis são ilustrados sob a forma de peripécias cada vez mais ousadas que seqüestram o espectador de seu cotidiano ameno, provocando uma sensação de participação do processo histórico, como se o indivíduo que está lançado ao sofá se transformasse em um sujeito, pretensamente capaz de participar do devir com autonomia.  Não é em vão que a primeira temporada se encerre com a Operação Juízo Final, com direito ao antológico samba de Nelson do Cavaquinho na trilha, sendo instrumentalizado pelo melodrama na intenção de sacralizar a ação dos santos defensores do erário, em sua luta contra o mal, no afã de que o Sertão vire Mar.

Em suma, uma grande mentira orquestrada para alçar as ações das produtoras e distribuidoras ao panteão das grandes fortunas. Não tem nada a ver com licença poética, liberdade de criação, ou afins. Tem a ver com números, com objetivos políticos e ideológicos, não de partidos, mas de uma lógica internacional empresarial e mercadológica, do qual Padilha é um mero agente, um garoto de recado de luxo. O melodrama é a garantia de audiência, e, por conseqüência, de lucro.

O delegado suicida é um personagem obcecado pelo desejo de mudança (justiça ou vingança? Patológico ou histórico?). Lembra um pouco os personagens batidos interpretados pela interpretação trivial de Denzel Washington (Tempo de glória, 1989; Um ato de coragem, 2002), que luta com todas as forças contra o sistema, garante a empatia do público, supera as mais variadas intempéries, e arrebata corações desejosos pelo happyend.

A opção pelo narrador que define o POV da série indica uma posição estratégica. O delegado pobre coitado quer acertar contas com o vilão doleiro, sendo esse, aparentemente, o leitmotiv de toda a operação Lava Jato. Tudo isso, orientado por uma estética melodramática, naturalista e sem valor autoral. A ausência de valor autoral significa a produção de vazios, que podem ser preenchidos por qualquer discurso. Nesses casos, a obra já nasce prostituída.

Os produtores de “O Mecanismo” preferiram explicar o maior capítulo de nossa História recente do ponto de vista de um personagem patológico. Tudo centrado no plano do subjetivo. Desenhando (bem ao estilo melodrama): alienado de um olhar sociológico e alheio à dimensão do coletivo. Mas quanto a isso, tanto fez, tanto faz, o lance é não decepcionar os investidores, trabalhando duro na indústria das doces ilusões, estreladas por imbatíveis heróis.

Encaixar nossa História – banhada de sangue, suor e lágrimas – nos critérios cosméticos do melodrama é tornar-se servil a tudo que engendra a miséria, o subdesenvolvimento e à falta de autonomia daqueles que não saber ler.

Bajonas Teixeira:
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