O Datafolha e o (pueril) ufanismo nosso de cada dia

Eleições presidenciais, sobretudo num momento tão dramático do país, geram muita emoção. Mas um analista precisa contê-las, e estimular o leitor que também o faça, para que possamos avaliar a situação com objetividade.

A divulgação dos números do Datafolha, ontem, produziu um efeito curioso no eleitorado partidário: houve forte pressão para interpretações exageradamente ufanistas em relação ao PT e a Lula.

Foi um “já ganhamos” insuportável – e delirante. Eu não vou entrar nessa. Até porque os números, na minha humilde opinião, não dizem isso.

Não acho que seria um blogueiro responsável se corroborasse esse tipo de análise. Olhar a conjuntura atual como “favorável” à esquerda, tendo, de um lado, um candidato como Bolsonaro com tanta força nas pesquisas, sobretudo nas regiões sul e sudeste, entre homens, jovens, em algumas faixas de renda determinantes para o exercício do poder, e, de outro, Lula preso, com chance enorme de não conseguir o seu registro eleitoral, me parece profundamente temerário.

Pesquisas nos ajudam a entender a conjuntura política, mas não dizem tudo. O analista precisa acrescentar, aos números, o seu próprio olhar, recolhendo variáveis e informações externas à pesquisa em questão, para entender o poder de cada candidato.

O Datafolha ainda não publicou, até o momento, o relatório completo, então continuamos analisando com o material divulgado ontem. Entretanto, como não parece ter havido mudanças substantivas em relação a abril, a análise de hoje usará (sempre indicando antes) alguns dados estratificados da pequisa anterior.

A meu ver, a tabela da pesquisa de ontem que provocou mais emoções, entre os diversos públicos, foi a que mostrava o poder de transferência de Lula para um indicado seu. O gráfico dizia que 30% votariam “com certeza” num candidato apoiado por Lula, 17% votariam “talvez” num candidato apoiado por ele, e “51%” responderam que “não votariam” num candidato apoiado por Lula.

Os analistas da esfera petista consideraram esses 30% de “certeza” como um patrimônio inabalável. Quando Lula apontar para alguém, que será, naturalmente, do PT (afirmam eles), este alguém terá exatamente os mesmos 30%.

Uma amiga, tomada de euforia, disse que os números justificavam uma chapa pura de esquerda, unindo Haddad, Boulos e Manuela. Ela não citou Ciro Gomes, claro, porque ele não é “de esquerda”…

A própria Folha, no afã de mostrar qualquer coisa que mostre declínio de Lula,  publicou hoje uma matéria que mais confunde do que informa, dizendo que a influência do petista caiu de 2010 para cá, mas misturando os votos “com certeza” com “talvez”, e sem considerar a rejeição. Então vou ignorar essa matéria.

Para tentarmos entender o poder de migração de votos de Lula para um outro candidato, vamos olhar o Datafolha de 21 de maio de 2010. Ela trazia Dilma, o “poste de Lula”, com 19% na espontânea, com destaque para os votos de quem tinha ensino superior, que chegavam a 28% e entre os mais ricos, onde chegava a ter 24% a 25%. Na estimulada, Dilma tinha 37% dos votos (contra os mesmos 37% de Serra), igualmente firmes em todas as faixas de renda.

71% dos entrevistados afirmavam saber que Dilma era a “candidata de Lula” e o poder de transferência do então presidente era avassalador.

Observem o quadro acima: 44% dos entrevistados diziam que votariam “com certeza” num candidato apoiado por Lula, 22% “talvez” e apenas 26% afirmavam que “não votariam” num candidato apoiado por ele.

Os leitores devem ter notado as diferenças em relação ao quadro de hoje.

Dilma vinha sendo apresentada como “sucessora de Lula” desde o segundo semestre de 2008, ou seja, dois anos antes das eleições.

A sua votação espontânea, ao final de maio de 2010, conforme informei acima, alcançava 19%. Hoje, Lula pontua apenas 10% na espontânea (abaixo de Bolsonaro, que subiu para 12%), mesmo com o PT insistindo em espalhar aos quatro ventos que o ex-presidente é “candidatíssimo”.

Na pesquisa divulgada ontem, os cenários sem Lula trazem seus substitutos dentro do mesmo partido, Haddad e Wagner, com 1%.

É evidente que o PT entrará, nas eleições deste ano, com muito menos força do que em 2010. E 2010, para quem não se lembra, não foi uma eleição tão fácil como os números finais deixam transparecer. Em julho de 2010, Dilma Rousseff já tinha o apoio dos principais partidos de esquerda: PT, PCdoB, PSB, PDT; e dos partidos de centro, centro-direita e direita: PMDB, PRB, PR, PSC, PTC, PTN e PP.

Quem irá apoiar o PT este ano?  Pode ser que ganhe, nas próximas semanas, a parceria de algum partido. Mas até agora, nenhum partido grande sinalizou desejo de se unir a uma campanha centrada numa candidatura cujo registro, ao que tudo indica, será cassado.

O apoio dos partidos não é importante apenas pelo tempo de TV, apesar deste ser um fator fundamental. Os partidos detêm máquinas eleitorais disseminadas por todos os municípios do país, que entram em ação assim que tem início as campanhas. O apoio dessas máquinas foi, evidentemente, importante para o PT enfrentar a maciça campanha midiática contra sua candidata.

Até o momento, os “postes” petistas que poderiam substituir Lula (e a expressão “poste” vem sendo usada pelos próprios petistas) são Fernando Haddad e Jaques Wagner. A última pesquisa Datafolha mostra-os com 1% das intenções de voto. Estes 1% me parecem o único voto organicamente partidário do PT. Afinal, já era tempo dos petistas terem conseguido migrar um pouco mais para o candidato de sua legenda.

Um quadro ao qual os petistas, aparentemente, não deram muita bola, mas que, para mim, é um dos mais importantes para se entender para onde vão os votos do presidente Lula, é o seguinte:

Os dados acima mostram que, no quesito “substituto preferido de Lula”, Ciro Gomes cresceu três pontos em relação à pesquisa anterior, com uma vantagem: leva vantagem sobretudo nas áreas mais lulistas, como nordeste e eleitores mais pobres.

As tabelas abaixo são da pesquisa anterior, de abril, mas ainda valem. Se mudou alguma coisa, foi em favor em Ciro Gomes, como já apontei. No Nordeste, 34% dos eleitores disseram preferir que Ciro Gomes seja o substituto de Lula, contra 9% de Haddad.

Até mesmo entre os eleitores que declararam preferência partidária pelo PT, 32% disseram preferir Ciro Gomes, contra 17% para Haddad e 12% para Wagner. Entre eleitores sem preferência partidária (maioria da população), Ciro tem 25% da preferência, contra 13% de Haddad e 7% de Wagner.

É claro que, se o PT deixar claro que seu candidato é Fernando Haddad, esses números podem mudar bastante. Mas eles indicam que o eleitorado tem olhado Ciro Gomes como o candidato mais próximo ao ex-presidente. A hostilidade de setores petistas a Ciro é localizada. Faz muito barulho na internet, mas é claramente uma minoria.

A migração de votos de Lula para Ciro transcorreria sem maiores ruídos, com vantagem de evitar que, com os votos, venha junto essa rejeição emocional, irracional, antipolítica, de que o PT é alvo.

Há uma outra dificuldade enorme no processo de transferência de votos do ex-presidente Lula para algum de seus candidatos.

Os números abaixo do Datafolha são da pesquisa de abril, mas como a pesquisa divulgada ontem mostrou que o quadro geral não mudou, então podemos usá-los.

Quando se fala que 30% dos entrevistados afirmam que votariam “com certeza” num candidato apoiado por Lula, é preciso olhar a estratificação desses números por região, natureza do município e renda.

No Sudeste, por exemplo, o número de eleitores que votariam em Lula “com certeza” cai para 19%, ao passo que o percentual dos que responderam que “não votariam” num candidato apoiado pelo ex-presidente sobe para 62%.

Entre pessoas com ensino superior e que ganham mais de 5 salários de renda familiar, o percentual de pessoas que declara que “não votaria” num candidato apoiado por Lula sobe para mais de 65%.

Entre pessoas que não declararam preferência por nenhum partido, e que formam 62% da população, um total de 64% disseram “não votar” num candidato apoiado por Lula.

Se esse grau de rejeição não inviabiliza uma candidatura, cujo sucesso eleitoral dependerá, de qualquer forma, da maioria, não importa a renda ou a região, é uma característica que dificulta muito a desenvoltura de uma campanha.

 

 

Em 2010, Lula não tinha rejeição alta, em nenhuma região do país, faixa de renda ou grau de escolaridade.  Abaixo, uma tabela com o Datafolha de final de maio de 2010. Observe os graus baixíssimos de rejeição ao “candidato apoiado por Lula”, em todas as regiões do país.

O que me preocupa, no entanto, são outros fatores que vão além da rejeição a Lula e ao PT. Em 2010, a rejeição a Lula, embora baixa, já fazia um bocado de barulho, como vimos no desenrolar de uma campanha extremamente polarizada e agressiva. Mas não havia nenhuma acusação formal contra o ex-presidente. Mesmo o PT, que  sofreu tanto com a grave crise do mensalão em 2004 e 2005, havia superado em parte, por ocasião da campanha de 2010, seus traumas judiciais.

Hoje é diferente. Lula foi condenado duas vezes (injustamente, é sempre bom reiterar), está preso, e muitas outras denúncias (falsas ou verdadeiras) colaram no PT. A imagem do PT na sociedade não está boa. Em 2010, havia dificuldade para falar mal de Lula, porque ele tinha imensa aprovação popular e uma imagem imaculada. Hoje em dia, ocorre exatamente o contrário. E os antipetistas agora tem o trunfo de sua condenação judicial e prisão.

Conclusão

Lula é muito forte como candidato. Acho que o termo “imbatível”, no entanto, não se aplica a um candidato que perdeu a batalha política extra-eleitoral, travada contra o judiciário.

A presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou, há dois dias, que Lula poderá ser candidato “mesmo sem registro”.  Ora, a simples admissão de tamanha precariedade, é uma tremenda derrota!

Trecho de reportagem do Estadão, com a frase de Gleisi:

A senadora disse que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não poderia negar o registro de Lula, mesmo com o petista condenado em segunda instância e podendo ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa. “Enquanto tem recursos fundamentados nas instâncias superiores, teria que ser feita a candidatura. Nós poderíamos definir inclusive que ele faça a disputa sem o registro”, disse.

Na tese de Gleisi, Lula poderia ir para a urna, ser eleito e diplomado enquanto seus recursos não são julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O PT, afirmou a presidente, está formulando um parecer levantando casos de outros políticos que tiveram suas situações jurídicas revertidas após a eleição e tomaram posse.

Aí mora o grande perigo: na contramão de tudo o que o judiciário tem feito, de todos os sinais que mostram uma instituição não apenas conservadora, com tendência à direita, mas sobretudo antipetista, a estratégia do PT reside em apostar todas as fichas no… judiciário. Para ser candidato, Lula precisará do aval dos ministros do TSE, que já sinalizaram negativamente; e precisarão ganhar recursos no STF, onde o PT também não tem maioria, como mostrou a votação dos recursos de habeas corpus.

Entretanto, o mais grave é que Lula, caso eleito, será um presidente sob eterna ameaça de cassação, de maneira que qualquer iniciativa política minimamente ousada, levará as forças de oposição a fazer enorme pressão sobre o… judiciário. As forças armadas, por sua vez, já deixaram bem claro de que lado estão: contra o PT. As polícias militares de todo o país aderiram, por sua vez, a Bolsonaro. Com quais “divisões”, o PT pensa em vencer as terríveis batalhas judiciais que se anunciam tanto para essas eleições como para depois delas?

O PT pode conseguir, naturalmente, levar um de seus candidatos ao segundo turno. Mas este candidato entraria fraco, porque seria considerado um “poste”. Não teria a legitimidade construída pelo esforço pessoal. Seria o candidato “de Lula” sem ser Lula.

Haddad, por sua vez, enfrentará dificuldades eleitorais no Nordeste.

Wagner, no Sudeste.

Ambos herdariam toda a rejeição a Lula e seriam alvo fácil de seus adversários, aos quais bastariam repetir, ad infinitum, acusações e denúncias de corrupção. E não importa se são falsas ou injustas. O que conta numa eleição é o símbolo.

O principal cabo eleitoral da direita seria a Lava Jato e seus infinitos tentáculos em todas as instâncias. Toda a máquina judicial entraria em campanha para “derrotar” o PT.

Essas são as razões objetivas pelas quais eu acredito que Lula tem o direito, sim, a ser candidato, porque suas acusações são injustas e sua condenação foi determinada sem apresentação de nenhuma prova efetiva. Lula deveria estar em liberdade, curtindo a vida, como mereceria o melhor presidente que o país já teve. Mas não é um bom candidato, pelos motivos que já expus: uma rejeição alta demais nas regiões mais desenvolvidas e em setores sociais determinantes para o exercício do poder.

E não concordo com a proposta de eleger um “poste misterioso”.

A melhor solução para estabilizarmos o país e fazer uma transição de volta ao regime democrático é trabalhar um candidato livre das garras do judiciário, relativamente blindado contra a rejeição protofascista que a mídia fomentou em relação ao PT, e que consiga reconstituir o pacto entre a esquerda e o centro político.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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