Os causas e efeitos políticos do “quadrilhão do PT”

Trabalho de Robert Rauschenberg

Em seu depoimento recente à juíza Gabriela Hardt, após repetir, pela enésima vez, como era o procedimento usado para a nomeação da diretoria da Petrobras, Lula responde a uma questão que não lhe havia sido perguntada pelos inquisidores à sua frente: como escolhia os juízes de tribunais superiores (tribunais regionais, CNJ e STJ, STF). A fala passou despercebida pela imprensa oficial e alternativa, mas não por este atento blogueiro. Como em diversos outros momentos do interrogatório, o ex-presidente falava não mais ao juízo, mas à história.

Lula explicou que a escolha dos magistrados seguia uma lógica matemática muito simples. Havia uma lista de apoios parlamentares para cada indicação. Aquele juiz que obtivesse uma quantidade maior de assinaturas, era escolhido.

O procedimento deve ter continuado sob a batuta de Dilma, haja visto suas escolhas.

Como o congresso era conservador, e como interessava ao governo petista amansar justamente as bancadas que não tinham afinidade ideológica com a administração, Lula e Dilma usaram a prerrogativa que lhes foi conferida pelo voto popular, não para escolher juízes que seriam os mais democráticos ou progressistas, mas para construir um instável e duvidoso apoio político no congresso.

Em outras palavras, o PT, como que provando a metáfora de Brizola, de que o partido cacareja à esquerda e bota ovos à direita, na contramão de seu discurso em prol dos direitos humanos, aparelhou o judiciário com magistrados conservadores, retrógrados, violentos; estes, todavia, não devem ter se sentido confortáveis por terem alcançado o topo de suas carreiras por uma indicação política feita por um governo do qual eles não gostavam. Devem ter pensado, com seus botões, que provariam, na rotina de seu trabalho, que não haviam cedido um milímetro de suas convicções. João Pedro Gebran, relator dos processos de Lula no TRF4, é um exemplo: indicado por Dilma para o cargo, o desembargador se alinharia às narrativas mais brutais da Lava Jato, e seria rigorosamente fiel às decisões mais estapafúrdias e injustas de Sergio Moro – como a sentença condenatória de Lula no caso do triplex.

Eu já tive oportunidade de conversar com alguns juízes progressistas, e eles não escondem sua perplexidade pela indicação, pelo PT, para tribunais superiores, de juízes tão raivosamente… antipetistas. A fala de Lula agora nos ajuda a entender o que houve: o PT usou a prerrogativa constitucional de indicar juízes para obter apoio das forças conservadoras no congresso.

Lula deixou seu método bastante evidente na nomeação, para o STF, de Carlos Alberto Menezes Direito, em 2007, um ultraconservador católico, quando poderia ter indicado, naquela oportunidade, Nilo Batista, um dos maiores juristas do país, um homem de esquerda, progressista, formado na escola brizolista de enfrentamento à mídia, e que tinha sido um dos primeiros a identificar que a direita brasileira usaria o judiciário para compensar seu declínio eleitoral. Dentre todos os nomes indicados pelo PT, há apenas um juiz garantista, Ricardo Lewandowski, mas ao qual sempre faltou a coragem necessária para uma postura independente perante as pressões midiáticas.

A escolha do procurador-geral da república, por sua vez, seguia uma lógica parecida, mas aí não para agradar o congresso, e sim a própria corporação. Lula também já falou sobre isso algumas vezes. Ele aceitava nomear para o cargo o mais votado da lista tríplice feita pelo Ministério Público Federal para evitar “dor de cabeça”. E também porque, dizia ele, era assim que se fazia no sindicato…

No segundo turno das eleições de 2018, o então candidato do PT, Fernando Haddad, apressou-se a dizer que, se eleito, voltaria a nomear, para a vaga de procurador-geral, o mais votado pela lista tríplice do ministério público. Bolsonaro, ao contrário, não assumiu esse tipo de compromisso, ficando livre para escolher o nome mais conveniente para a estabilidade do governo.

Haddad também procurou insistentemente o ex- ministro do STF, Joaquim Barbosa, um dos pioneiros do golpismo judicial, para obter apoio político para sua candidatura, o que conseguiu, apesar de apenas a poucos dias da votação.

As decisões de Haddad revelam que o partido ainda não fez nenhuma análise dos erros que cometeu, e que há ainda uma quase ansiedade para cometê-los novamente, desde que volte ao poder.

O método de Lula revelou-se o que talvez tenha sido o seu pior erro político. Ele conseguiu, no curto e médio prazo, o efeito desejado, reduzir a estridência da oposição parlamentar. Mas o preço foi demasiadamente caro. E não apenas para os políticos e empresários presos em processos frequentemente eivados de excessos e arbítrios, mas sobretudo para centenas de milhares de brasileiros vítimas de um sistema judicial autoritário.

O problema do STF é o mais evidente. Os próprios petistas admitem que a corte foi um dos instrumentos mais importantes do establishment para levar adiante a Lava Jato, o impeachment, e, por fim, a prisão de Lula.

Entretanto, nem tudo é culpa propriamente do método de escolha dos juízes e do procurador-geral. Alguns dos escolhidos não eram (nem são hoje) tão reacionários. Eles simplesmente não tinham coragem, fibra e/ou cultura para resistir à pressão da mídia.

Aí voltamos ao que foi outro grande erro político dos governos petistas: subestimar ou mesmo menosprezar a importância da comunicação. Esse é um ponto pacífico, sobre o qual, no entanto, não vale a pena discorrer agora.

Uma das maiores ironias, portanto, da atual conjuntura, é que a suspeita de que estaríamos vivendo sob uma “ditadura judicial”, precisa lidar com o fato de que esse regime criou raízes justamente durante os governos petistas. Outros elementos corroboram esta tese: a sanção, novamente pelos governos petistas, das leis da ficha limpa, da organização criminosa, e da delação premiada, sem as quais não seria possível montar os processos de exceção dos últimos anos.

Todo esse preâmbulo foi para comentar a decisão do juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10.ª Vara Federal, de aceitar denúncia do Ministério Público Federal contra Lula, Dilma, Mantega e Vaccari. A denúncia (ver íntegra aqui) foi feita em setembro de 2017, pelo então procurador-geral da república, Rodrigo Janot, indicado por… Dilma. Duas vezes. Dilma o indicou duas vezes.

Segundo diversos especialistas e analistas, inclusive conservadores, a denúncia do MPF é inepta e sem provas. O PT reagiu dizendo que é perseguição política. O advogado de Lula afirma que é mais uma prova do “lawfare” contra o ex-presidente e seus correligionários.

Os petistas e simpatizantes que se informam pelos meios de comunicação favoráveis ao partido olham denúncias como essa com descrédito e desdém, mas seria um terrível erro (mais um, entre tantos) esquecer que a maioria esmagadora da população brasileira não lê os blogs petistas.

E o que assistimos ontem foi um ataque estarrecedor ao PT, que se soma a várias outras ações judiciais recentes que impactam diretamente a reputação do partido.

Apenas no Jornal Nacional desta sexta-feira, havia três longas reportagens contra o PT:

1) Uma delas foi a notícia sobre a 56ª fase da Lava Jato, denominada Sem Fundo, que prendeu mais de 20 pessoas, com acusações de que houve desvio de recursos públicos na construção de uma sede da Petrobras na Bahia para o… PT.

2) Outra foi a decisão de um ministro do STJ, Felix Fischer, de negar o recurso do ex-presidente Lula contra a decisão do TRF4 que o condenou. Com isso, as chances do ex-presidente de reverter sua prisão se aproximam do esgotamento.

3) Uma terceira matéria tratava do recebimento da denúncia de Janot contra Lula, Dilma, Mantega, Palocci e Vaccari, transformando-os em réus por corrupção, e que atinge também Gleisi Hoffmann e seu marido, Paulo Bernardo, cujos processos correm no STF, mas que tiveram seus nomes citados nas reportagens.

Essas notícias se somam ao recebimento, pela justiça de São Paulo, de denúncia do Ministério Público de São Paulo contra Fernando Haddad, transformando-o em réu por corrupção passiva.

Seria muita ingenuidade achar que todos esses processos terão final feliz. Alguns podem até resultar, ao cabo, em absolvição dos envolvidos, mas agora não se trata propriamente de especular quem é inocente e culpado, e sim de analisar os seus efeitos políticos para a oposição, num momento em que precisamos tanto dela para fazer frente a um governo extremamente reacionário.

O principal efeito, naturalmente, é o aumento da rejeição ao PT.

As urnas já mostraram, em 2016 e este ano, que as denúncias de corrupção produzem um efeito eleitoral e político devastador sobre os partidos.

Para registro histórico, e para se entender o tamanho do problema, olhe a capa do Estadão, um dos principais jornais do país, deste sábado. Em outros jornalões, a mesma notícia também aparece na capa, embora não na manchete.

Isso não é um fenômeno novo. Desde Roma Antiga, é sabido que aos partidos políticos não basta serem honestos, é preciso que pareçam honestos.

Se o PT permanecer perdendo a batalha da comunicação, sofrerá um novo baque em 2020, nas eleições municipais.

O partido ainda terá que lidar dois problemas adicionais: o seu isolamento político, de um lado, expresso na articulação de um bloco parlamentar de esquerda sem a sua participação (PDT, PCdoB, PSB, Rede), e o aumento da rejeição por parte de setores importantes da própria esquerda, irritados com a ausência de autocrítica da legenda.

Como sair desse impasse?

A única saída, a meu ver, é voltar às bases, assimilar as críticas de seus aliados e procurar não se isolar. Ou seja, é fazer exatamente o contrário do que tem feito ultimamente.

O PT é grande, mas é justamente o seu tamanho o que o torna mais vulnerável: porque este crescimento também se deu através de relações com grandes empresas que hoje são usadas pelo partido da justiça para atacá-lo.

Outras legendas progressistas não conseguiram obter tanto sucesso na relação com empresários (imagino que não por falta de vontade), não conseguiram doações de campanha tão vultosas (certamente não por falta de desejo), não elegeram tantos correligionários, não conquistaram tanto poder, mas estão, por isso mesmo, um pouco mais protegidos de ataques judiciais, sejam eles baseados em processos legítimos ou não.

A estratégia de se isolar dentro de uma bolha em declínio, lendo e assinando apenas blogs que dizem “verdades” convenientes, incentivando o sectarismo contra quem faz críticas ou arrisca análises que fogem às narrativas oficiais do partido, não vai levar o petismo a nenhum lugar, e isso será prejudicial a todo o campo progressista. Esse isolamento arrogante nos levou à derrota este ano.

O tamanho do PT não é suficiente, nem de longe, para o partido obter qualquer vitória sozinho; mas é o bastante para impedir ou atrasar, via sabotagem e campanhas de desmoralização, que seus companheiros prosperem.

Todos os partidos e movimentos progressistas precisam fazer uma autocrítica, mas apenas o PT governou o país por 15-16 anos e recebeu bilhões de reais de doações eleitorais, caixa 1 e 2, de empreiteiras, indústrias e bancos. Outras legendas progressistas também receberam doações, mas jamais na escala do PT, e isso certamente dificultou a organização de campanhas eleitorais vitoriosas.

A única saída para o PT é através da política, e não adianta Haddad viajar ao exterior para pedir ajuda lá fora. O partido é brasileiro e precisa ampliar seu apoio aqui. Parar de hostilizar seus aliados de longa data, construir alianças nas quais o PT não tenha papel hegemônico, respeitar as críticas, sobretudo aquelas que vem do próprio campo, adotar uma postura humilde, aberta e conciliadora, seria um bom começo.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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