Lula, Vavá, civilização e barbárie

Por Rogerio Dultra dos Santos

Lula não é mais um líder, um estadista que mudou o país. Morto-vivo na casa de Curitiba, ele é um sintoma do que virou o Brasil. Antes de Lula ter seu legado grotescamente atingido pela violência de um setor politizado e corrupto do judiciário, havia um credo na permanência das instituições democráticas, nos direitos fundamentais cantados em verso e prosa por Ministros do STF. Mas quando até mesmo os generais atestam a falta de humanidade dos carrascos do Presidente, o país pode, finalmente, se assumir como a farsa que tem sido acusado de ser.

E o que é o Brasil hoje? Seria mais uma vítima do que alguns chamam de guerra híbrida? Ou existe algum incauto que radica a dissolução da ordem política à genialidade de juízes de piso e procuradores que decidem violar a lei em jogral coletivo, pela simples e estrutural covardia que os constitui?

Não. O Brasil que é velado hoje – junto com o Vavá, irmão do Presidente –, não foi morto e sepultado por seus filhos diletos, pelos concurseiros vitoriosos, pelas corporações sedentas de poder, incrustadas no sistema repressivo. Seria uma quimera resolver uma questão tão complexa a partir de elementos tão primários.

Quando o STF resolve violar o direito mais sagrado de qualquer preso, que é poder enterrar seus entes queridos, lançar olhos para a geopolítica, para a cobiça que cerca as nossas riquezas talvez seja mais producente que procurar nos covardes a responsabilidade que permitiu esse retrocesso civilizacional.

E é importante um parênteses repetido ad nauseam nesta última quarta-feira. Desde que Sófocles relegou Creonte à figura mais patética das tragédias gregas, quando impediu que Antígona enterrasse o próprio irmão, o ocidente entendeu ser algo de profundamente humano permitir esta conexão afetiva: mesmo aqueles considerados os socialmente mais abjetos e marginais deveriam ter o direito de velar os seus.

Diga-se de passagem que, a se creditar válida a historiografia grega, a civilização nasceu da ode aos mortos. O discurso de Péricles às primeiras vítimas da batalha entre Atenas e Esparta é o documento desta trama de nossa tradição, incrustada inclusive na Lei de Execução Penal, nunca dantes questionada neste ponto.

Honrar os que foram nos torna melhores. Nos conecta com a vida social. Nos possibilita desejar defender a cidade e suas leis. O Art. 120 da Lei de Execução Penal trata exatamente disso. O STF em tempos de regularidade pré-lulista também. Mas algo se quebrou. E é preciso dizer, entretanto, que a nossa derrota civilizacional não nasce nem acaba no direito, ou nas interpretações escrotas que se fazem dele nesta data.

O Brasil, ontem, atravessou o rubicão. Resolveu eliminar institucionalmente quaisquer limites de civilidade, sem que ninguém ousasse questionar institucionalmente. Dizem os conservadores, como Emerson, que as instituições são a sombra alongada de um homem. Somos a sombra de uma mediocridade que fede.

Hoje, talvez com mais clareza, o país assiste bestializado a possibilidade de ser soterrado por uma miríade de dejetos tóxicos, espalhados estrategicamente para sentirmos na pele o que significa uma bolsa de… dejetos tóxicos. A Vale do Rio Doce, nesse sentido, exsurge como um exemplo claro e insofismável da derrota do modelo de privatizações que dominou a sanha de governos como o de Fernando Henrique Cardoso.

Como Temer, FHC fatiou o que conseguiu fatiar, e entregou estatais importantes por preços pornográficos a capitais abutres. Nada diferente do que os donos do poder do momento desejam fazer. Sejam capitães ou generais. Somos filhos bastardos desse processo histórico que insiste em nos empurrar para as impossibilidades do passado. Quando não tínhamos tecnologia nuclear, capacidade industrial, quando éramos apenas exportadores de comodities, país de bananas, tempos da Vale, o butim estava muito mais fácil, lambendo os beiços à nossa porta.

Bastou o cara, aquele cara, ousar pensar que poderíamos ser realmente o país do futuro, e foi fácil entender porque entramos pelo cano. As instituições até então operavam normalmente. Máquinas de moer carne, garantiam que a pobreza se criminalizasse às expensas do Estado.

A compreensão que transformou a era de privatizações em algo legítimo permanece operante. A violência necessária para vender o país, idem. Somos o retrato de um morto que precisa se desenterrar para valer o direito dos seus de sofrerem o luto. Numa instalação militar.

Pode parecer exatamente o contrário, mas nada disso tem que ver com o Brasil. Se as nossas elites escravocratas ainda mandassem alguma coisa, a civilização grega da escravidão imporia a tradição. A tradição só pode ser dilacerada porque não mandamos mais em nossos destinos. Estamos à mercê dos que vêm de fora.

Hoje somos liderados pela exclusiva sanha do capital. Que não se importa com nada. Que não precisa se legitimar em nenhum gesto. Nem no mais ancestral gesto de humanidade.

Talvez o povo entenda isto. Afinal, o Vavá, hoje, tem mais voz que aquele punhado de concurseiros que o deixaram ser enterrado sem o pranto de seu irmão, numa violência que nos traz de volta à barbárie e à escuridão de algo que antecede à guerra, que é o oposto da civilização. E o Brasil, à imagem e semelhança de seu maior líder, se vê morto, sem ninguém com coragem suficiente para enterrá-lo.

Rogerio Dultra: Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Justiça Administrativa (PPGJA-UFF), pesquisador Vinculado ao INCT/INEAC da UFF e Avaliador ad hoc da CAPES na Área do Direito.
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