Porque é um erro desqualificar as manifestações pró-Bolsonaro?

Na contramão da maioria das análises “otimistas” do campo progressista, de que as manifestações foram um “fiasco”, ou de que, mesmo não sendo “pífias”, não significaram nada de bom para o governo, eu acho que elas cumpriram exatamente o propósito desejado por seus organizadores.

Reinaldo Azevedo, blogueiro do UOL, fez uma análise compartilhada generosamente por setores da esquerda, cheia de perguntas, às quais ele mesmo dá prontamente as respostas, para concluir que “Bolsonaro perdeu”.

Eu não diria isso. Reinaldo Azevedo exercita o seu talento hoje para falar para um público diferente daquele que o consumia na era Lula, quando conclavama o impeachment e festejava arbitrariedades e prisões políticas, mas suas ferramentas retóricas, repleta de sofismas, permanecem as mesmas.

As manifestações pró-Bolsonaro são capa de todos os jornalões desta segunda-feira, e mereceram editoriais cautelosos, e por mais que os parlamentares do centrão e ministros do STF (afinal, eles eram os alvos dos protestos) riam amarelo e digam que os protestos não foram tão expressivos assim, eles sentiram o bafo quente na nuca. E isso pode sim ajudar o governo a aprovar a reforma da previdência e o pacote anticrime de Sergio Moro. O “mercado” percebeu isso e a bolsa de São Paulo amanheceu em alta sob o pretexto de que as “ruas” apoiaram a reforma da previdência.

E não adianta dizer que os protestos do dia 15, contra os cortes na educação, foram maiores, porque os estudantes na rua não estão, definitivamente, ao lado do “centrão”, ou tampouco do STF.

O eleitorado do centrão e de toda a ala direita do congresso nacional, hoje maioria expressiva nas duas casas, está bem mais próximo dos manifestantes de camisa verde e amarelo do que dos de camisa vermelha, então esse protesto, mesmo muito menor, com certeza mexeu mais com a cabeça da direita parlamentar e social do que as manifestações “vermelhas” do dia 15.

A mesma coisa vale para a grande mídia: as manifestações pró-Bolsonaro estão mais próximas a uma parte do público que consome seus programas do que aquelas do dia 15.

Mesmo a parcela da população anti-Bolsonaro passou o domingo atenta, apreensiva, fazendo contas visuais. O esforço para diminui-las faz parte da guerra cultural e da luta de narrativas, mas os acontecimentos dos últimos anos já deveriam nos ter provado de que autoilusões não levam a nada.

Os protestos foram menores que os do dia 15, mas a comparação é enganosa. O dia 15 foi um protesto de várias tribos, e recebeu apoio máximo de todas as forças progressistas organizadas do país.

O candidato derrotado no segundo turno, Fernando Haddad, marcou presença na Paulista, no dia 15, o que ajudou Bolsonaro a vender a narrativa de que foi uma manifestação mais partidária (na acepção negativa que esse termo ganhou em nossa linguagem) do que social.

Bolsonaro e Moro, estrategicamente, não foram às ruas neste domingo, justamente para enfatizarem o suposto caráter espontâneo das manifestações. Mas deixaram no ar que podem ir nas próximas.

O protesto de ontem reuniu apenas uma tribo, a dos bolsonaristas puros. Nesse ponto, houve uma talvez não desprezível vitória política de Bolsonaro. Ele conseguiu, em parte ao menos, se desvencilhar de algumas mediações a seu projeto conservador, como o MBL, o governador João Dória, e setores da mídia conservadora (no mainstream ou não) que vinham tentando um caminho independente. O presidente conseguiu provar um ponto: ele tem a sua turma, que é bem menor do que a reunião de tribos que foram às ruas pedir o impeachment, mas que é coesa e fiel a seu “projeto”.

Bolsonaro inaugurou a manifestação puramente governista, o que é inclusive uma caricatura quase divertida, não fosse tão perigosa (perigosa em função de quem é Bolsonaro e de suas agendas, e não por ser a favor do governo) do chavismo.

Outra vitória de Bolsonaro é impor às ruas a narrativa da polarização ideológica. A manifestação do dia 15, em favor da educação, apesar das bandeiras LulaLilvre e da presença ostensiva dos partidos de esquerda, teve uma participação mais ampla do que apenas a oposição de esquerda a Jair Bolsonaro; era um protesto focado na educação, e como tal atraiu uma quantidade maior de gente do que a militância ideológica.

A partir de agora, qualquer manifestação de rua contra Bolsonaro terá mais dificuldade de se distanciar da polarização ideológica, e era isso que o governo queria, porque é isso que ele tem deixado claro desde o início da gestão: é um governo de confronto, e tem um inimigo: a esquerda.

A estratégia de Bolsonaro gera, todavia, uma armadilha também para o governo: na medida em que o bolsonarismo empurra todo mundo que não partilha integralmente de suas ideias para a esquerda, ele amplia o espectro da esquerda. É um erro comum, com sinal invertido, cometido por setores da esquerda partidária, que igualmente tem, até hoje, o vício irritante de empurrar conceitualmente para a “direita” todos aqueles de que discordam.

Essa estratégia ficou evidente na maneira como o presidente e seus apoiadores trataram as manifestações do dia 15: “só vi LulaLivre”, disse Bolsonaro, o que era um exagero mentiroso. A militância LulaLivre esteve, em peso, nas manifestações do dia 15, e a presença dela foi importante e benvinda, mas era uma minoria.

Bolsonaro e os seus ainda tentam faturar em cima do antipetismo, ao tratar qualquer manifestação de oposição como “petista”.

Neste sentido, é que algumas forças do campo progressista parecem repetir os mesmos erros que vem fazendo a esquerda sofrer derrotas nas ruas desde antes de 2013.

Uma parte importante da população – a maioria, segundo muitas pesquisas, inclusive aquela que não vota em Bolsonaro e que não pode ser considerada de direita ou conservadora – tem uma imagem negativa dos partidos políticos, por razões igualmente justas e injustas.

A grita contra os partidos em 2013 talvez não seja originada em nenhuma tendência social “fascista”, mas antes no instinto, ou suspeita de que os partidos estariam sendo oportunistas ao tentarem mostrar protagonismo em manifestações que, de alguma maneira, também carregavam duras críticas a eles.

Se eu vou à rua para criticar, entre outras coisas, também os erros do PT, e dos partidos que eu identifico como aliados ao petismo, não quer dizer que eu seja de “direita”, e ao mesmo tempo será compreensível que eu fique extremamente desconfortável em marchar ao lado de bandeiras da CUT e do PT.

Ou dito de outra maneira, mais contemporânea, se eu vou à rua protestar contra o governo Bolsonaro, mas também tenho críticas duras ao PT (o antipetismo ainda é muito forte na sociedade, e não apenas à direita), não me sentirei à vontade em participar de manifestações dominadas por bandeiras da CUT e do PT.

Isso não significa que os partidos e seus militantes não possam ou não devam participar dessas manifestações. Muito pelo contrário! Devem participar, mas sem procurar tomar-lhes o sentido. Os partidos de esquerda e as centrais não defendem a educação pública? Então empunhem, de preferência, bandeiras em prol da educação pública! O resultado objetivo, em termos de conquista da opinião pública, é muito mais eficaz!

Críticas à esquerda não significam, necessariamente, que o emissor é conservador. Muita gente se sente incomodada em participar de uma manifestação ao lado de bandeiras de partidos de esquerda “revolucionários”, não porque seja fascista ou coisa parecida, mas simplesmente porque não se identifica com estes partidos.

Neste sentido, é que as legendas poderiam, às vezes, ter o bom senso de substituir bandeiras partidárias divisivas, que não querem dizer muita coisa para quem as vê na televisão ou ao vivo, por outras que ofereçam mensagens objetivas e unificantes, como “em prol da educação pública”. Este foi o segredo do “sucesso” de 2013 e das marchas do impeachment, se me permitem a heresia de usar esses casos como modelos.

Na verdade, para o governo, foi até bom que as manifestações não tenham sido maiores, porque certamente havia o receio de “excessos” que as pudessem caracterizar como “antidemocráticas”. Apesar da presença de algumas demandas claramente autoritárias, como fechamento do congresso ou do STF, estas não predominaram.

A leitura que as lideranças da oposição fizeram das manifestações, por sua vez, me pareceu medíocre, para dizer o mínimo.

Fernando Haddad jogou a pressão sobre a mídia: “o que preocupa é que os grandes grupos de comunicação não emitiram sinais inequívocos de compromisso com a democracia”

A afirmação de Haddad é confusa. Primeiro porque não é inteiramente verdadeira: os meios de comunicação, após a pesada aposta golpista que fizeram contra a Dilma, hoje estão (temporariamente) alinhados deste lado da trincheira, tanto é que Haddad, que representa a parte mais “bem comportada” do PT, ganhou generosos espaços na Folha. Segundo porque a mídia, embora hoje esteja se fingindo de “boazinha”, é estruturalmente golpista e antipovo, além de organicamente alinhada aos interesses do rentismo nacional e internacional, de maneira que é contraproducente e até mesmo perigoso gerar expectativas por este lado, ao invés de continuarmos investindo na construção de mídias independentes profissionais, plurais, e (sobretudo!) com mais credibilidade.

Jandira Feghali, por sua vez, manifestou-se de maneira, a meu ver, muito equivocada, ao dizer que “muitos gritos histéricos antidemocráticos e até pedidos pelo fechamento do Parlamento deram o tom das pequenas manifestações pró-Governo deste domingo. Isso reforça que o Gov está em decadência absoluta, já registrado nas últimas pesquisas de opinião. E são só 5 meses, hein.”

Este tipo de desqualificação – “muitos gritos histéricos”,”pequenas manifestações” – usa a mesma semântica, com as mesmas palavras, que a direita pode usar contra as manifestações do dia 30.

Além do mais, é um discurso que gera mais polarização e mais ódio: esse espírito de vendetta e competição (“quem faz manifestação maior”?) certamente não beneficia o campo progressista,  ainda mais agora que a direita detêm a máquina de tantos governos.

Qual seria a melhor maneira de tratar as manifestações deste domingo? Ora, respeitando-as. É besteira desqualificá-las como “antidemocráticas” apenas porque alguns criticam o STF ou o Legislativo. Por acaso, a esquerda agora virou fã do judiciário ou do legislativo brasileiros tais como eles são?

Manifestações que tem como um dos objetivos pressionar o legislativo são absolutamente legítimas, e o presidente apoiá-las também não é problema.

Cabe, no entanto, problematizá-las: afinal, o que Bolsonaro está fazendo em prol da geração de emprego e do crescimento da economia?

Ontem, por exemplo, ficamos sabendo – por um site da direita – que a venda da Embraer para Boeing serviu para salvar…a Boeing.

Como explicar à população brasileira, de maneira simples, didática, que essa operação – assim como tantas outras – é lesiva aos interesses nacionais?

Bolsonaro hoje é presidente da república, eleito com 57 milhões de votos. E a economia vai mal, muito mal. O caminho mais inteligente para pressionar o governo, e mantê-lo suficientemente acuado, para que não consiga levar adiante suas pautas mais agressivamente antipopulares, é pôr em evidência as questões econômicas e sociais, e cobrar soluções e projetos.

Quanto às manifestações do próximo dia 30, precisamos tomar cuidado para não cair nas armadilhas e provocações do governo. As pautas devem continuar focadas na educação e na oposição a uma reforma da previdência que prejudique a população mais pobre. A presença de lideranças partidárias e políticas deveria ser cuidadosa, porque o objetivo não é agradar a militância dos partidos, mas atrair a grande massa desorganizada, inclusive (eu diria até: principalmente) uma parte daqueles que votaram  em  Bolsonaro, e que formam a maioria esmagadora da população brasileira.

Os jovens chamam isso de “furar a bolha”.

É verdade que a aprovação a Bolsonaro está se deteriorando a uma  velocidade recorde.

Isso é mais uma razão para não baixarmos a guarda, e evitarmos erros táticos causados por euforias fúteis e vazias.

Com alguma inteligência, além  de muita estratégia, autocrítica e   prudência, conseguiremos galvanizar uma massa crítica crescente, o que poderá resultar em vitórias políticas e eleitorais em 2020 e 2022 para o campo progressista, enterrando de vez esse capítulo negro da nossa história,  que é o governo de Jair Bolsonaro.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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