“Não tinha ninguém para dar um tiro nele?”

Os ataques à faca que um morador de rua fez a transeuntes, matando duas pessoas e ferindo outras cinco, deve causar consequências graves à política de segurança pública no Rio de Janeiro, onde o número de sem teto tem crescido a um ritmo assustador.

Mas antes queria fazer um comentário sobre o que o presidente Bolsonaro falou. Enquanto gravava um vídeo cortando cabelo – o que, aliás, parece estratégia de marketing aconselhada por especialistas, possivelmente norte-aemricanos; Beto O’Rourke, um dos pré-candidatos democratas à presidência de 2020, tem feito isso -, o presidente fez uma de suas observações típicas: “Não tinha ninguém para dar um tiro nele?”

Acontece que tinha. A polícia.

A polícia chegou e um agente disparou três ou mais tiros contra o sem-teto, dois deles na perna do indivíduo e outro de raspão na cabeça.

Mas os tiros disparados pelo policial não feriram apenas o criminoso. Dois bombeiros que estavam no local assistindo às vítimas foram baleados: a enfermeira Girlane Sena, baleada na perna e o capitão médico Fábio Raia; e um outro PM também acabou atingido por um dos tiros disparados pela polícia.

Como se vê,  Bolsonaro anda vendo filme demais.

A realidade é que se uma arma, em mãos de agentes da lei, que deveriam ser os mais preparados para usá-las, tecnica e psicolocamente, acaba fazendo tanto estrago, como o número de vítimas de balas “perdidas” no Rio de Janeiro e em outras cidades deixa bem claro, o que poderíamos esperar de armas em mãos de civis completamente despreparados?

Lembro-me de uma entrevista que fiz com a socióloga Jaqueline Muniz, em que ele menciona justamente isso, a falta de informação que temos sobre o nível de precisão de tiro, a “mira”, a capacidade técnica dos agentes de segurança pública de usarem uma arma de fogo. O debate político no país rebaixou-se a tal ponto, que não se discute mais as questões mais objetivas. Políticos populistas falam em resolver o crime “à bala”, mas sequer há uma discussão efetiva sobre qual o nível de treinamento que as polícias estão recebendo no país. E quando Bolsonaro age para facilitar a posse e o porte de armas no país ninguém discute o básico: como pessoas sem condição técnica de fazer uma “mira”, sem nenhum tipo de treinamento, poderão sair armados às ruas e fazer justiça com as próprias mãos, como o presidente incentiva o tempo inteiro com seus comentários?

A mesma coisa vale para a nossa capacidade de investigação e solucionar crimes. Os populistas falam apenas em “prender bandidos”, mas esquecem o principal, que é encontrar efetivamente o bandido, em especial o homicida: onde está, onde se esconde, como foi que matou? O índice de resolução de homicídio, que é o crime capital, é vergonhosamente baixo no Brasil, e nenhum desses políticos populistas, que vem ganhando votos com o discurso de segurança pública, parece se preocupar muito com isso.

A propósito, o governador do Rio, Witzel, não quis perder a oportunidade para falar besteira, e disse que daria um “tiro na cabeça” do sem-teto. A fala do governador é criminosa, de um lado, porque sugere justiçamento talibã, olho por olho dente por dente, e estúpida, porque põe de lado a necessidade do Estado de investigar e estudar as motivações de cada crime, para poder elaborar políticas públicas de prevenção. No caso em questão, o que motivou esse morador de rua? Estava drogado? Qual droga?

O Rio de Janeiro já está no pior dos mundos: desemprego, calçadas esburacadas, aumento no número de assaltos, turismo em queda, agora só falta essa: drogados na rua esfaqueando as pessoas. Não se trata de fazer caricatura com os direitos humanos, e sim de estudar a política de segurança pública mais objetiva para oferecer segurança à população do Rio (e de todas as cidades do país). E se houver uma política de endurecimento contra moradores de rua (e não é preciso ser gênio para antever que é o que vai acontecer), que seja feita de maneira humana possível, oferecendo abrigo e proteção às famílias e indivíduos que tem passado frio em nossas grandes cidades. Violência apenas  irá gerar mais violência.

Abaixo, trecho da notícia publicada hoje no Globo:

BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro lamentou o fato de não ter ninguém armado para atirar no morador de rua acusado de ter matado a facada dois homens na Lagoa Rodrigo Freitas , no Rio, no domingo. O comentário foi feito na tarde desta segunda-feira em transmissão ao vivo pela internet, enquanto cortava o cabelo no Palácio do Planalto.

— Você pode ver: no Rio de Janeiro… foi ontem isso aí? Um morador de rua esfaqueou, matou, executou duas pessoas no Rio de Janeiro. Agora, não tinha ninguém armado para dar um tiro nele, é impressionante. Mas tudo bem — disse o presidente — Estava drogado o cara? Tá certo. Viciado em drogas — completou.

O morador de rua Plácido Correa de Moura, de 44 anos, foi preso nesse domingo acusado de ter matado a facadas dois homens na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio. Além das duas vítimas fatais, outras cinco pessoas ficaram feridas no ataque no, embaixo do Viaduto Saint Hilaire, no acesso à Fonte da Saudade.

Na ação, Plácido foi atingido pela polícia por dois tiros na perna e um de raspão na cabeça, logo após ter esfaqueado a segunda vítima. Os tiros acabaram ferindo, também, um PM e dois socorristas dos bombeiros.

Moura atacou primeiro o motorista João Feliz de Carvalho Napoli, de 34 anos, com uma faca, por volta das 12h. O engenheiro chegou a ser levado para o Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea, mas não resistiu aos ferimentos. A outra vítima fatal é Marcelo Correia, de 39 anos, que passava pela Lagoa no momento do ataque.

A namorada de João Napoli, Caroline Moutinho, que estava com ele no banco do carona, levou golpes de faca em uma das mãos e no quadril. As outras duas vítimas são bombeiros que ajudavam no socorro às vítimas. Uma delas é Girlane Sena, técnica de enfermagem baleada na perna, e o outro, o capitão médico Fábio Raia, atingido por estilhaços. Um PM também acabou sendo baleado, assim como o próprio Plácido.

Redação:
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