A mosca na catedral: primeiras reflexões sobre 2020

Em entrevista ao El País, publicada hoje, o cientista político Juliano Coberlino, e coordenador das duas campanhas vitoriosas de Flavio Dino (PCdoB) pelo Maranhão, opina sobre a estratégia que o bolsonarismo deverá adotar para as eleições municipais deste ano:

R. Não podemos analisar a popularidade do Bolsonaro como analisamos a dos outros Governos, pela própria atipicidade desta gestão. A preocupação dele não é ter mais de 50% de ótimo/bom nas pesquisas. Ele não busca ampliar a base de apoio, como Lula. O objetivo do presidente é manter os seus seguidores coesos, manter um terço do país mobilizado. Ele precisa manter essa base de apoiadores aquecida. E para isso um dos pré-requisitos é apostar na lógica de polarização política permanente, manter seus inimigos sempre vivos. O que ele quer é ser a maior minoria, essa é a estratégia dele para 2022.

A partir de agora, o campo progressista precisará ter muita criatividade para não jogar o jogo eleitoral e político apenas pelas regras do adversário.

A polarização política é um fenômeno normal, inevitável e até mesmo necessário, que existe em qualquer democracia moderna. Para quem possui maioria, a polarização pode parecer, inclusive, positiva, porque facilita a comunicação eleitoral: basta apontar o dedo para o lado com maior rejeição e aguardar a vitória sentado.

Para o bolsonarismo, a polarização é boa exatamente por este motivo. O governismo não precisará elaborar muito: para mobilizar a sua militância, bastará continuar exagerando a força de seus “inimigos”, desde, é claro, que seus inimigos tenham uma rejeição alta.

Para a oposição a Bolsonaro, geralmente identificada com a esquerda, mas também com setores ao centro, a tarefa será mais complicada, com muitas armadilhas.

A primeira armadilha será olhar o processo eleitoral apenas como uma aventura de primeiro turno, sem entender, desde antes, que o importante não é passar para o segundo turno – e sim vencer o segundo turno.

A segunda armadilha será olhar o processo eleitoral apenas como um processo eleitoral, deixando em segundo plano o que deveria ser o mais importante: não se trata de ganhar eleições, e sim governar, e implementar um projeto que dê certo por muitas décadas.

Não precisamos de outros quinze anos de governos “progressistas”  instáveis, mantidos pelo pavor de um novo golpe, e sim de alguns séculos de governos – progressistas ou conservadores – ancorados num ambicioso projeto nacional.

Há ainda uma terceira armadilha: repetir o erro cometido pelo campo progressista na redemocratização, que foi organizar uma estratégia de coalizão baseada nos aspectos puramente políticos e formais da democracia, deixando de lado a questão do desenvolvimento, da soberania, e da reinserção do Brasil na divisão internacional do trabalho.

É verdade que pairam sombras perigosas sobre a democracia brasileira, e que o governo Bolsonaro é uma dessas sombras. Mas há outras sombras, tão ou mais perigosas, entre elas a concentração do sistema financeiro, a desigualdade de renda e patrimônio, e o descolamento cada vez maior entre o Brasil e o mundo desenvolvido em matéria de tecnologia, ciência e educação.

Além do mais, não estamos mais nos anos 80. Hoje não mais se discute a chegada da superinteligência artificial, aquela que superará a inteligência humana e terá a capacidade de se autoaperfeiçar (um evento a que alguns teóricos americanos deram o nome de “singularidade”), como uma possibilidade, mas como uma questão de tempo. Os especialistas preveem o advento da superinteligência em algumas décadas. O mundo está prestes a viver, portanto, a maior de suas revoluções tecnológicas, e os países que não estiverem preparados, em termos de educação, cultura, organização política e econômica, ficarão dependentes exclusivamente da generosidade das nações ricas. E quem depende da generosidade alheia, com perdão do termo brutal, é um indigente.

No entanto, leio uma coluna da sempre inteligente e delicada Eliane Brum, no El País, que aborda a questão da luta política contra o governo Bolsonaro com uma estratégia que me parece bastante generalizada entre a esquerda, e que, a meu ver, é mais uma dessas apostas vazias destinadas ao fracasso. No artigo “Os cúmplices”, Brum põe a questão em termos binários e dramáticos de adesão/resistência.

Um jovem empreendedor, ocupado em materializar sua ideia, talvez não tenha tempo, ou interesse, para lutar na “resistência”.

Um trabalhador de baixa renda, ocupado na batalha diária para alimentar a si mesmo e a sua família, idem.

Mas nenhum deles é “cúmplice” de nada.

O campo progressista deve oferecer um plano de desenvolvimento moderno, ousado, ambicioso, e isso sim será o seu instrumento de propaganda.

Sem moralismo, sem culpar ninguém, sem “julgamentos da História”… Até porque a História, quando nos julgar, será ainda mais inclemente com os que usam o nome dela em vão.

Além disso, usar a “defesa da democracia” como bandeira política não me parece inteligente, estratégico, nem honesto. A democracia é de todos: da extrema esquerda à extrema direita. Pretender que uma democracia seja sempre um embate tranquilo entre “moderados” de centro-esquerda X centro-direita é uma utopia sem sentido.

Tampouco nos servirá emular as estratégias de marketeiros norte-americanos, com seus livros sobre como “as democracias morrem”.

A luta pela democracia deve ser implícita, tácita, orgânica.

A democracia é a nossa gramática e a nossa sintaxe, mas não a nossa poesia; é o nosso método, não o objetivo.

Outro erro da esquerda será entender a necessidade de formar “coalizões políticas” com o centro e a centro-direita, como uma operação artificial, mecânica, como quem articula o apoio de uma tribo distante para lutar uma guerra contra um inimigo comum.

Não. Isso será repetir o que se fez no passado, e implicará em coalizões novamente frágeis, instáveis, em que estaríamos o tempo todo a mercê de novos golpes e traições.

A movimentação mais inteligente será produzir um nova hegemonia, baseada em coalizões estáveis, seguras, mesmo que bem menos amplas. O poder de um “núcleo” magnético e denso não pode ser subestimado. O núcleo do átomo é cem mil vezes menor do que o tamanho do átomo inteiro, o que fez Rutheford compará-lo (ao núcleo) a uma “mosca na catedral”. E, todavia, 99,9% da massa do átomo está concentrada em seu núcleo. O bolsonarismo, neste sentido, está certo: mais vale uma minoria forte do que uma maioria fraca, desde que não haja uma outra minoria maior do que a sua.

Para isso, todavia, voltamos a questão de um projeto nacional. Coalizões feitas através do dinheiro de campanha, promessa de ministérios, ou nascidas do afeto fácil entre homens, após uma noite de uísque e conversa fiada, não tem mais futuro.

Diante das revoluções em curso, nas relações do trabalho, na longevidade, nos desafios de financiar o Estado, o Brasil, assim como o mundo inteiro, precisa formular um novo Direito do Trabalho, um novo Direito da Previdência, um novo Direito Tributário, pensados cientificamente, modernos, livres, politicamente possíveis, sem populismos fáceis e inúteis, voltados para a construção de um país desenvolvido, igualitário e soberano.

O Brasil precisa de uma educação emancipadora, com muito investimento nos primeiros anos da infância, e preparada para oferecer aos cidadãos, ao longo de toda a sua vida, a possibilidade de se atualizar e se reajustar às novas tecnologias. A necessidade de se mudar de carreira e profissão, aos quarenta, aos cinquenta, aos sessenta anos, será comum daqui para a frente.

O Brasil precisa constituir um regime político e econômico estável, verdadeiramente democrático, e ao mesmo tempo resistente a golpes e conspirações estrangeiras, capaz de assegurar liberdade, bem estar e segurança, assim como um reposicionamento mais inteligente e vantajoso de seus cidadãos na divisão internacional do trabalho.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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