As feridas abertas de 2013

Manifestantes lotam Avenida Paulista (Foto: Wikimedia Commons)

As polêmicas em torno do real significado das grandes manifestações ocorridas em 2013 continuam fervendo em alta temperatura.

Regularmente o debate volta à cena, sempre deflagrando algum tipo de polarização.

Recentemente, o assunto foi resgatado por uma entrevista do ex-presidente Lula à Telesur, na qual ele mencionou possível papel dos serviços de inteligência do governo americano na organização daquelas manifestações.

Não é a primeira vez que Lula externa esse tipo de teoria de conspiração.

O presidente do PSOL, Juliano Medeiros, foi um dos primeiros a discordar publicamente do ex-presidente nessa questão. E a polêmica se instalou, com a brutalidade costumeira de qualquer debate político em tempos de rede social.

Um dos princípios da teoria de comunicação é que o valor de uma informação corresponde ao interesse que temos nela. Para entender esta assunção, basta imaginar a seguinte cena. Imagine uma pessoa num deserto, com muita sede. Ela ouve uma voz, vinda do além, que lhe oferece a possibilidade de receber duas mensagens. Se receber uma, contudo, não receberá a outra. A primeira mensagem contem a informação do local onde estaria enterrado um galão de água. A segunda informaria um outro ponto, onde estaria enterrado um baú cheio de ouro. Qual a informação vale mais?

Existem teorias de conspiração que fazem sentido, outras que são apenas narrativas empoladas, proferidas com solenidade.

Uma postura crítica, desconfiada, diante da realidade política, um espírito aberto para a possibilidade de que existam, por trás dos bastidores, poderosas ferramentas de manipulação, é uma imposição do nosso tempo.

No entanto, também precisamos cuidar para que essa postura crítica não se torne uma caricatura de si mesma, ou que seja ela mesma manipulada. Assim, um dirigente partidário pouco honesto, ciente de que o militante engolirá facilmente uma narrativa que interessa ao partido, não hesitará em abusar da ingenuidade alheia.

Interessa ao ex-presidente e a seu partido que as grandes manifestações que aconteceram em 2013 não seja vistas como protestos legítimos contra o seu governo, e sim como uma grande manipulação, por trás da qual estaria o dedo onipresente da CIA. Essa é uma narrativa que interessa a um Lula que se recusa, terminantemente, a admitir qualquer erro político nos governos petistas. Se não houve erro, se as coisas estavam muito bem, senão havia nenhum motivo para as pessoas irem às ruas protestar contra o governo, então só pode ter sido uma grande manipulação articulada pela CIA.

Os serviços de inteligência dos Estados Unidos podem ter, de alguma maneira, ajudado a organizar as marchas de 2013?

Talvez. Assim como também podem ter ajudado a organizar as manifestações da chamada “primavera árabe”.

Mas também pode não haver relação nenhuma – além desse “espírito do tempo” que sempre existiu – entre o que houve nos países árabes, dominados por ditaduras, e no Brasil, uma democracia onde seus cidadãos tem aspirações e angústias bem diferentes.

Em relação a “junho de 2013”, eu vivi aquele tempo com muita intensidade, como jornalista, analista, militante de esquerda e cidadão.

Em 13 de junho, eu estava, por acaso, em Brasília, e acompanhei toda a marcha, desde seu início até o fim, quando ela parou diante do congresso nacional, e houve algum vandalismo contra o Palácio do Itamaraty.

Eu também fui tomado por um sentimento muito negativo de estranhamento e paranoia, porque não conseguia entender o que estava acontecendo.

Havia, de fato, um elemento estranho naquelas manifestações. Após escrever alguns artigos elogiando-as, eu segui o caminho contrário dos analistas conservadores da mídia, que iniciaram atacando-as, para em seguida, louvá-las acriticamente. Eu passei a atacá-las com muita virulência, o que me valeu, aliás, a antipatia eterna de alguns militantes de esquerda, que atribuíram meus ataques a meu espírito “governista”.

Entretanto, eu não estava sozinho. Lembro-me que houve uma onda de boatos de que os “black blocs” estariam sendo pagos para promover vandalismo, numa estrategia maior para desestabilizar o governo Dilma.

Ninguém falava em “CIA”, mas havia histórias de que setores golpistas de alguns partidos de direita, incluindo “aliados” ao governo, estariam financiando black blocs. Nada disso, no entanto, foi provado.

Tempos depois, eu me arrependi dos ataques que fiz a 2013, e escrevi textos com análises mais equilibradas.

Hoje, após sete anos turbulentos, que mais parecem mais dezessete anos, eu tenho uma visão menos conspiratória de tudo aquilo.

Além disso, tudo que aconteceu nos anos seguintes, em 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, nos ajuda a entender melhor o que houve em 2013.

Em primeiro lugar, me parece que muita gente na esquerda passou a levar a sério demais as narrativas de campanha eleitoral, de que tudo estava maravilhoso no Brasil em 2013.

Não estava. O fato das coisas terem ficado piores em seguida não significa nada, porque as pessoas em 2013 não podiam imaginar isso.

Entretanto, um trabalhador que gastava duas a quatro horas por dia num transporte público de baixíssima qualidade não podia estar satisfeito.

Ah, mas antes do governo Lula as coisas eram ainda piores. Sim, possivelmente para muitos as coisas estavam piores antes, mas não é assim que funciona o ativismo político das pessoas comuns. O professor Wanderley Guilherme explicou, num de seus livros, que o cidadão faz um cálculo intuitivo sobre o “custo” de aderir ou apoiar um protesto político. Ele analisa – sempre intuitivamente – se o protesto tem chance de produzir alguma melhoria efetiva. Ele mede os riscos de sua participação. Por fim, ele pondera sobre o custo financeiro de toda a operação. Ele tem dinheiro no bolso, por exemplo, para arcar com uma pequena viagem ao centro da cidade, para se juntar a seus concidadãos num protesto contra a ordem das coisas?

Essa foi a equação que nem Lula nem o PT entenderam. Se tantas pessoas saíram às ruas em 2013, com tanta energia e disposição, era porque havia, naquele momento, esperança genuína de que haveria consequências positivas, de que o governo ouviria o clamor da população, e promoveria uma alteração profunda em suas estratégias gerais, impondo um ritmo político mais acelerado de mudanças!

E se a situação econômica tinha melhorado um bocado ao longo daquela década petista, isso também possibilitou aos cidadãos juntarem coragem para irem às ruas. Para milhões de brasileiros, as marchas de 2013 foram a primeira vez que se manifestavam politicamente.

Naturalmente, as forças que faziam oposição ao governo trataram de controlar a narrativa para tirar o máximo proveito da situação.

Mas a Globo não havia organizado nada daquilo, tanto que seus colunistas, no início, atacaram virulentamente as manifestações. Só depois, quando entendeu que poderia usá-las em benefício próprio, a grande mídia passou a elogiá-las acriticamente.

Não podemos nos esquecer, todavia, que as manifestações de 2013 raramente entoaram slogans contra a presidenta Dilma – o que, aliás, é até uma coisa meio inacreditável. A animosidade contra os grandes meios de comunicação, em especial, contra a Globo, por outro lado, sempre foi uma característica marcante de todos os protestos.

“A verdade é dura, a rede globo apoiou a ditadura”, cantavam milhões de pessoas, em centenas de cidades do país.

Infelizmente, o governo Dilma, a aquela altura, apresentava problemas e contradições que jamais foram resolvidos. Sobretudo, o governo Dilma sofria da pior doença que pode acometer uma administração: uma crônica e patológica ausência de criatividade.

Tirando algumas bravatas proferidas por Dilma em rede nacional, algumas das quais sofreram recuo já no dia seguinte, como a ideia estúpida de se criar uma “constituinte”, o que o governo fez de concreto?

Em 2013, depois das marchas, Dilma criou a lei da delação premiada e nomeou Luis Roberto Barroso e Edson Fachin, os dois campeões da Lava Jato, para o STF…

As marchas de 2013 deveriam ter convencido o PT de que era preciso mudar, inclusive mudar de presidente. Dilma não deveria ter sido candidata em 2014.

Em 2014, era o momento de levar a sério um conceito sobre o qual vínhamos falando desde o início do governo Lula: a alternância de poder. Tínhamos candidatos de outros partidos que poderiam assumir a liderança do projeto, e com isso distensionar um pouco a animosidade crescente de setores da sociedade muito identificados com o sentimento antipetista. Em 2010, tínhamos Eduardo Campos, por exemplo, do PSB. E Ciro Gomes, um dos mais leais e combativos aliados de Lula.

Ao insistir em Dilma, quase como provocação, o PT produziu o ambiente político para as marchas pelo impeachment em 2015, e que resultaram efetivamente no… impeachment de 2016.

Hoje, à luz da história, e com dados estatísticos que nos permitem enxergar melhor, está claro que boa parte da crise econômica que se seguiu a 2014 foi gestada antes. As coisas não estavam tão boas assim. O balanço de pagamentos vinha piorando dramaticamente. Os juros, com exceção de um breve período de baixa em 2012, seguiam os mais elevados do mundo. O processo de desindustrialização se acelerava… Aliás, em outro momento vamos analisar a política industrial nos governos petistas, que foi muito problemática. É certo que a indústria vem perdendo participação em todo mundo desenvolvido. Nos Estados Unidos, por exemplo, a indústria perde fábricas em território americano, mas as empresas não morrem: elas apenas passam a produzir na China, mantendo o setor avançado de serviços e inteligência instalado em território americano. Não dá para comparar o declínio da participação da indústria nos EUA com o que aconteceu no Brasil. Além das empresas americanas manterem o controle acionário de suas fábricas (mesmo com elas se trasladando para China) e bons empregos na área de gestão, tecnologia, marketing, etc, os EUA assistiram a um boom no setor de entretenimento, tecnologia e todo o tipo de serviços de ponta. Nada disso aconteceu no Brasil. Aqui as indústria morreram, e continuam morrendo, e não há nada surgindo em termos de serviços tecnológicos, pesquisa avançada, entretenimento. Tudo isso se acentuou na era petista, e esses erros podem explicar perfeitamente o aumento da insatistação de setores da população com os rumos do governo.

A criação de um fantasma “fascista”, e a acusação de que a classe média brasileira tinha se tornado um espécie de monstro moral, voltando-se contra o governo porque este ajudava aos mais pobres, são narrativas que nasceram, na verdade, antes de 2013, e serviram aos propósitos eleitorais e políticos do PT. A partir de 2013, contudo, a narrativa começa a rachar, e o PT, ao invés de mudar, resolveu dobrar a aposta.

O resultado foi o golpe e a vitória avassaladora de Jair Bolsonaro em 2018, obtendo perto de 70% em estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.

Há um outro ponto que merece ser discutido. Por amor ao debate, admitamos que a CIA esteve por trás de 2013. Hoje eu acho isso um tanto improvável. Mas digamos que sim, o que também não é impossível. Isso também não desculpa os erros políticos de Lula e Dilma.

A falta de políticas que modernizassem três pilares do poder político de um país, a saber, os sistemas de comunicação, inteligência, e justiça, permitiram que agentes políticos sem nenhum compromisso com o país fizessem o estrago que fizeram: grandes meios de comunicação, serviços de inteligência estrangeiros e um punhado de juízes golpistas ocuparam a lacuna deixada por um governo que não tinha projeto em nenhuma dessas três áreas estratégicas.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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