Considerações industriais

A última coluna do ex-prefeito Fernando Haddad na Folha, intitulada “Indústria”, gerou uma série de críticas, algumas das quais me pareceram um pouco exageradas.

Os protestos contra a citação de FHC ao final do artigo, por exemplo, foram injustos, pois foi um movimento sagaz. Ao colocar na boca do “príncipe” da elite paulista uma crítica severa aos órgãos de classe dos industriais, o petista evitou que a denúncia fosse vista como uma manifestação partidária.

A citação a FHC no artigo de Haddad é a seguinte:

(…) Nos anos 1960, a tese de FHC sobre o empresário industrial trazia duas reflexões atuais, a julgar pelo noticiário recente sobre as movimentações de Paulo Skaf: 1) os órgãos de classe dos industriais “só cuidam dos interesses particulares dos dirigentes quando falam em nome da classe”; 2) aos industriais, individualmente, “a ação política possível consiste na participação pessoal no jogo patrimonialista”.

Outro ponto que produziu um bocado de criticismo, especialmente num artigo de Gilberto Maringoni que circulou muito, foi a referência à maxidesvalorização cambial de 1999 como causa principal de um suposto “alento” da indústria nos dez anos seguintes.

Diz Maringoni que “o ex-prefeito de São Paulo, com a sutileza de um paralelepípedo, desconsidera toda a política fiscal expansiva, o aumento do crédito e a política de conteúdo nacional do segundo governo Lula e debita o crescimento do período a um feito – involuntário – do governo FHC!”

Os números mostram que Haddad tem razão: a produção industrial brasileira se expandiu a partir de 2002, ainda sob a administração tucana, até meados de 2008 (exatamente o período mencionado pelo petista em seu artigo); a partir daí a indústria enfrentará apenas estagnação e declínio.

A política fiscal de Lula em seu primeiro mandato, como todos sabem, foi marcadamente conservadora, com a perseguição de altíssimos superávits primários e imposição de juros estratosféricos. O tal “expansionismo fiscal” de que fala Maringoni, e a política de “conteúdo nacional”, no segundo mandato do ex-presidente, não tiveram efeito significativo na produção industrial brasileira, até por conta da modéstia de sua magnitude.

Ao mencionar a crise da indústria nacional, Haddad ressalva que “é preciso cautela quanto aos números”:

A participação da produção industrial mundial no PIB mundial vem perdendo importância, sobretudo em relação ao setor de serviços, que ganha terreno. Nada a ver, portanto, com desindustrialização.

Mas não resta dúvida que a participação da indústria brasileira na produção industrial mundial perdeu espaço, o que, no mínimo, significa menor dinamismo relativo.

Aqui entramos numa área em que parece haver muita confusão.

Nos últimos tempos, os gráficos que mostram o acelerado declínio da participação da indústria, especialmente a de transformação, no PIB brasileiro, tem produzido espanto e horror. Uso aqui a versão do economista Paulo Morceiro.

Esta é a realidade que Haddad procura rebater, com uma expressão meio blasé, dizendo que é um fenômeno global e “não tem nada a ver com a desindustrialização”.

Aqui sim cabe uma crítica a Haddad, embora também seja oportuno pontuar que ele está correto quando observa que o declínio da participação da indústria, em favor do setor de serviços, é um fenômeno global.

A participação da indústria de transformação nos Estados Unidos, por exemplo, caiu de 16% em 1997 para 11% em 2019.

No mundo, caiu de 17% para 15% no mesmo período.

Em alguns países, a indústria de transformação sempre foi baixa em relação ao PIB, menor inclusive que no Brasil, como na Austrália e na Noruega.

Entretanto, os números da Austrália e da Noruega dificilmente podem ser usados pelos críticos para desmerecer a relação entre indústria e desenvolvimento.

Austrália e Noruega, além de serem países ricos e com distribuição de renda equilibrada, tem populações relativamente pequenas. A Austrália tem 25 milhões de habitantes. A Noruega, 5 milhões.

O dado mais importante, todavia, é que o valor adicionado per capita da manufatura na Noruega e na Austrália, segundo dados do Banco Mundial, é de US$ 6,7 mil e US$ 3,86 mil (em dólares correntes), respectivamente, contra US$ 1,47 mil no Brasil.

Além disso, e isso é um ponto fundamental, o setor de serviços nestes dois países também tem alto valor agregado per capita, sugerindo o peso acentuado de pesquisa e tecnologia: ainda segundo o Banco Mundial, o setor de serviços tem valor adicionado per capita de US$ 126,7 mil na Noruega, e US$ 97,6 mil na Austrália, contra apenas US$ 21,0 mil no Brasil.

Em artigo para a edição de dezembro da revista Economistas, César Roberto Leite da Silva explica essa confusão que se faz entre a desindustrialização em curso no Brasil e o que ocorre nos países desenvolvidos:

Mas surgiram algumas críticas a essa espécie de modelo econômico: a ênfase na produção de commodities, agrícolas e minerais, associada ao Real apreciado, produziram uma forte desindustrialização. Os críticos desta abordagem costumam lembrar que é natural que, ao longo do processo de desenvolvimento, a participação da indústria no produto tenda a diminuir, enquanto a de serviços aumenta. Isto é verdade, mas o que se observa nos países desenvolvidos é uma mudança na qualidade da produção industrial, privilegiando bens mais complexos e que demandam alto conteúdo de pesquisa e desenvolvimento.

Voltemos a Haddad, figura relevante e lúcida do cenário político, que figurou como candidato à presidência da república em 2018 e pode voltar a sê-lo em 2022. Gilberto Maringoni está certo quando afirma que seu artigo merece uma “leitura atenta”: nas entrelinhas do texto podemos ler o projeto nacional por trás seu eventual governo, caso tivesse vencido as eleições, e não parece que seria muito diferente do que foram os governos Lula e Dilma, pelo menos no que se refere a uma política industrial.

Esse “algo que grita no texto”, para usar a expressão de Maringoni, é a tentativa de olhar a questão industrial com uma espécie de fatalismo liberal, ou ultraliberal, visto que o próprio liberalismo real (aquele que é praticado pelos governos dito liberais, também conhecido como o liberalismo do “meu pirão primeiro”) sempre usou políticas públicas para corrigir as imperfeições do mercado, especialmente nos setores de ponta na escala tecnológica de cada época.

Entretanto, todos os que pensam a questão industrial no Brasil devem tomar cuidado com uma armadilha: se não resta dúvida que o desenvolvimento e a riqueza de todo o país está atrelado a um nível adequado de industrialização, igualmente se torna cada vez mais relevante que essas indústrias possuam alto nível de tecnologia agregada.

As lideranças políticas do campo progressista e da oposição ao governo Bolsonaro devem olhar a questão da indústria como um dos capítulos mais importantes de um projeto nacional de desenvolvimento; este é um ponto com potencial de reunir diferentes atores sociais, oriundos dos mais variados setores ideológicos. Com uma população de 210 milhões, reindustrializar o Brasil não apenas é um imperativo para que sejamos uma nação forte, soberana, respeitada no mundo, mas sobretudo para oferecer aos brasileiros um lugar mais digno na divisão internacional do trabalho.

Afinal, não haverá vagas de agrônomo, engenheiro de minas e executivo de banco para todo mundo…

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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