As fake news sobre Mangabeira Unger

Atualização: conversamos com o próprio Mangabeira Unger, aqui.

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O professor Mangabeira Unger, um dos principais intelectuais do país, concedeu duas entrevistas em dezembro de 2018 que repercutem até hoje.

As duas entrevistas trazem muita informação; é lamentável que tenham produzido polêmicas apenas na epiderme das disputas políticas entre legendas do mesmo campo, porque elas abordam temas realmente instigantes, como a relação do Brasil com a China, a política nacional de Defesa, e o problema da educação em tempos de economia do conhecimento.

Ao final do post, eu trago links para as entrevistas, e reproduzo trechos sobre os assuntos mencionados acima, que merecem ser lidos.

Antes, porém, vamos tratar de um aspecto mais mundano e prosaico relacionado a essas entrevistas. Eu acho importante a gente não jogar nada para debaixo do tapete. O campo progressista pode e deve ter divergências internas, porque sem divergência não há nem pluralidade, nem criatividade, nem força.

Neste sentido, aliás, eu acho que essa defesa vaga e superficial de “união da esquerda” soa às vezes sem muito sentido para mim. Ela tem, além disso, uns ecos levemente autoritários, de quem não gosta de expor divergências à luz do sol. Um discurso único na “esquerda” (seja lá o que se queira dizer com esse termo, também vago) apenas debilitaria todo o campo, pois limitaria sua audiência somente àqueles interessados nesse discurso, ao invés de alcançar as audiências somadas de todos os discursos diferentes. Mas isso é um assunto para outro momento. Voltemos às entrevistas de Mangabeira e à sua repercussão temporã, um ano e três meses depois.

O site Brasil 247, um dos portais da esquerda com maior audiência, publicou, no dia primeiro de março de 2020, uma matéria intitulada:

“Mangabeira diz que Ciro perdeu a eleição por arrogância ao recusar aliança com o PT e com Lula”.

Havia dois problemas evidentes neste post: um deles era dar a entender que Mangabeira Unger tivesse dado entrevistas agora. Não deu. As entrevistas foram dadas em dezembro de 2018, há um ano e meio. O outro era atribuir a Mangabeira, um pedetista histórico e um dos maiores entusiastas de Ciro Gomes, um insulto a seu próprio aliado, chamando-o de “arrogante”, usando frases que não foram ditas. Mangabeira jamais disse, nem nas entrevistas mencionadas, nem em lugar algum, que “Ciro perdeu eleição por arrogância ao recusar aliança com PT e com Lula”.

Diante da repercussão negativa, o site apagou o post e o substituiu por outro, com uma correção, mas o post original ainda pode ser visualizado no cache do Google, além de ter sido republicado em outro blog.

A correção refere-se apenas ao fato do post não ter informado ao leitor de que se tratava de uma entrevista antiga. O erro principal, no entanto, permanece lá: colocar na boca de Mangabeira palavras que ele não disse.

Aqui, o 247 poderia dizer apenas que reproduziu um post antigo de Luis Nassif, no blog GGN, de dezembro de 2018. Ocorre que aí também há um erro.

O post original de Nassif começa da seguinte maneira:

“Mangabeira e os erros que tiraram a presidência de Ciro, por Luis Nassif

Por Luis Nassif -15/12/2018

As duas entrevistas de Roberto Mangabeira Unger – ao Valor (clique aqui) e à Folha (clique aqui) – esclarecem de vez as razões objetivas que levaram ao racha das esquerdas e à eleição de Jair Bolsonaro.
(…)”

No post reproduzido no 247, o post começa com uma frase (em negrito) que não consta no original:

“Mangabeira e os erros que tiraram a presidência de Ciro, por Luis Nassif

Por Luis Nassif no GGN – Para Mangabeira Unger, abrir mão do cacife eleitoral de Lula foi um gesto de arrogância mortal para a candidatura Ciro Gomes.

As duas entrevistas de Roberto Mangabeira Unger – ao Valor (clique aqui) e à Folha (clique aqui) – esclarecem de vez as razões objetivas que levaram ao racha das esquerdas e à eleição de Jair Bolsonaro.”

Entramos em contato com Nassif, que nos confirmou que a versão correta é a publicada em seu site, e que não editou o post, pelo menos não nos últimos 15 meses.

Tudo isso não teria muito importância, não tivesse se tornado um instrumento de difusão de tantas informações falsas. O próprio Cafezinho começou a receber comentários de gente repercutindo a “entrevista” de Mangabeira…

Alguns influencers começaram a divulgar nas redes sociais que Mangabeira Unger teria chamado Ciro de arrogante, usando o fato para “provar” essa ou aquela teoria contra o pedetista.

Então, o próprio Mangabeira Unger entrou em contato com o Cafezinho, querendo dar entrevista para desmentir isso. Hoje à noite, conversaremos ao vivo pelo youtube.

O que diz, efetivamente, Mangabeira Unger nas duas entrevistas? Elas foram dadas no mesmo dia, e tem algumas informações similares e complementares.

A entrevista da Folha tem um ponto que, para o leitor distraído (ou predisposto a uma determinada opinião), deu margem a uma interpretação ambígua, mas que pode ser dirimida facilmente com uma leitura mais atenta.

Mangabeira explica que Ciro Gomes tinha duas opções: acertar-se com o PT ou afastar-se, desde o início, do lulopetismo. Ele, Mangabeira, afirma na entrevista que defendeu, por razões “táticas”, que houvesse um acerto com o PT.

Mangabeira deixa bem claro, porém, que esse apoio teria que ser costurado desde cedo.

‘”(…) O outro caminho seria o de estreitar bem lá atrás o projeto de Ciro com o do PT. Não daria para fazer isso de última hora“.

Esse caminho foi tentado por Ciro, desde 2016, quando se lançou numa cruzada contra o golpe, e, mais tarde, quando passou a defender Lula das investidas da Lava Jato. O rompimento de Ciro com o PT tem data: quando ficou claro que o PT trabalhava para isolar sua candidatura.

Ainda Mangabeira, na entrevista à Folha:

“(…) O Ciro sofreu um processo de isolamento conduzido pelo Lula e o PT. Todas as pesquisas, quase até o fim do processo eleitoral, indicavam que era o Ciro o candidato que reunia no segundo turno a maioria dos apoios. “

O próprio Mangabeira, no Valor, explica que “Lula vetou o apoio direto ao Ciro Gomes”.

Então não foi Ciro que foi “arrogante” ao não aceitar o apoio de Lula e do PT.

A sinalização por um apoio petista a Ciro, segundo o próprio Mangabeira, na mesma entrevista, e disso temos outros relatos, vindos de Fernando Haddad e do próprio Ciro, se deu às vésperas do prazo final para homologação das candidaturas, quando o próprio Ciro já tinha registrado, com estardalhaço, a sua própria candidatura.

“(…) na última hora [Lula] propôs que ele ocupasse a posição que terminou com o [Fernando] Haddad. “

O que Mangabeira diz nas entrevistas, em suma, é que havia defendido um “acerto”, mas teria que ser feito no início, embora mesmo no início houvesse enormes obstáculos, diante da diferença de projetos e de um certo déficit de “confiança”.

Mas este acerto, reitere-se, não seria possível “de última hora“.

Essa “sinalização” de Lula a Ciro era, obviamente, uma farsa, destinada tão somente a humilhar o pedetista. Tanto Lula como o PT já tinham elegido Ciro como seu principal adversário, e agora fariam de tudo para neutralizá-lo e destruí-lo. Se Lula queria apoiar Ciro, que desse apoio completo, e não lhe oferecendo um humilhante lugar de vice. O próprio Lula, em entrevistas, não falou que “tinha orgulho de ganhar as eleições de dentro da cadeia”, e que acreditava piamente que poderia participar das eleições?

A referida “sinalização” de última hora, inaceitável e inviável, já fazia a parte da estratégia de pintar Ciro como alguém incapaz de alianças, quando a verdade era exatamente o oposto.

Confiram o caso da “fuga de Ciro a Paris”. Tudo isso foi construído artificialmente. O PT jamais quis ou trabalhou para obter o apoio de Ciro no segundo turno. Muito pelo contrário: ao promover, desde o primeiro dia da campanha de segundo turno, a narrativa de “fuga”, o PT entendeu que poderia matar dois coelhos com uma cajadada só: vencer Bolsonaro, usando a cartada da “luta contra o fascismo”; de outro, neutralizar uma corrente política que ameaçava ocupar um espaço importante na esquerda, sem pedir licença ou autorização ao PT. Pior, fazendo críticas ao PT!

Ciro fez toda a sua campanha no primeiro turno com um discurso muito claro: o Brasil seria dilacerado por um segundo turno entre Bolsonaro e PT.  Era compreensível que, no segundo turno, ele tivesse dificuldades para pedir aos eleitores que esquecessem tudo que havia dito e votassem no PT. Mesmo com essa dificuldade, todavia, Ciro fez o possível para ajudar o PT. No mesmo dia em que os resultados do primeiro turno foram divulgados, ele dá uma coletiva afirmando, enfaticamente, “ele não”. Ora, alguém já se perguntou porque o PT jamais usou essa fala de Ciro, esse “ele não”, em seus programas eleitorais?

Não havia necessidade nenhuma da presença de Ciro nos palanques ao lado de Haddad, por duas razões: primeiro porque Ciro seria um Mano Brown elevado ao triplo; por sua personalidade, que ele nunca escondeu, não resistiria a dizer o que pensava. Preferiu silenciar e ficar fora do país, não atrapalhando.

Qual a narrativa que o PT deveria ter usado para lidar com a viagem de Ciro Gomes?

Simples: deveria ter dito aos eleitores que:

1) Ciro Gomes não apoiava Bolsonaro;

2) que ele sempre tinha sido um aliado do PT;

3) que tinha lutado até quase o esgotamento de suas forças no primeiro turno contra Bolsonaro;

4) que já havia deixado claro – após o primeiro turno, com aquele “ele não”, que era contra Bolsonaro;

5) e que havia, enfim, trabalhado para que o seu partido, o PDT, declarasse “apoio” ao PT.

Sobre o último ponto, foi exatamente o que aconteceu. A Executiva Nacional do PDT tinha ficado tão frustrada com a derrota no primeiro turno que havia uma maioria disposta a ficar neutra no segundo turno. O presidente do PDT e Ciro é que trabalharam para que fosse aprovado um “apoio crítico” ao PT.

E ponto final! O tensionamento entre PT e Ciro, durante o segundo turno, era evidentemente uma perda de foco e de energia. Ciro já tinha feito o possível, e agora estava quieto em seu canto, evitando qualquer contato com a imprensa, ciente de que, se falasse o que realmente pensava naquele momento, ajudaria Bolsonaro.

Qual a necessidade do PT passar toda a campanha do segundo turno vendendo a narrativa de que estava “à espera” do apoio de Ciro, se Ciro já tinha dado seu apoio no primeiro dia?

Mais uma vez, o objetivo era humilhar, neutralizar, destruir. A prova é que, durante toda a campanha do segundo turno, os influencers mais identificados com o PT, e que mais interagiam com os dirigentes do partido, faziam ataques diários a Ciro, mais até do que a Bolsonaro.

Não surpreende, diante disto, que Ciro tenha voltado do segundo turno com uma língua tão furiosa contra o PT, e acho inclusive que ele tem se excedido.  As críticas ao PT devem ser restritas à política, de maneira respeitosa, mas esse não é nem nunca foi o estilo de Ciro Gomes. Ciro é Ciro, com todos seus imensos defeitos e qualidades.

O Cafezinho dá espaço para entrevistas de todos os campos da esquerda. Fazemos as nossas críticas, temos nossa opinião. Mas de maneira limpa, transparente, dando espaço para que Haddad, Lula, Dino, Boulos, Freixo, falem por si mesmos.

Damos espaço ao centro e até mesmo ao governo, num esforço para não nos criarmos ainda mais bolhas de ilusão. É preciso ouvir o que diz o governo, sem intermédio da imprensa corporativa, que tem seus interesses políticos, para que possamos desenvolver uma crítica independente e original, que não pode ser a mesma crítica da Folha e da Globo.

***

Sugiro enfaticamente que os internautas leiam ou releiam, com muita atenção, as entrevistas, cujos links originais estão aqui (Folha) e aqui (Valor). Se não for assinante, você pode acessá-las aqui (Folha) e aqui (Valor).

Destaco,  na entrevista do Valor, os seguintes trechos, sobre política nacional de Defesa, China e educação.

Sobre a política nacional de Defesa:

(…)
Valor: Qual é a sua opinião sobre um possível alinhamento do novo governo com os EUA?
Mangabeira Unger: É muito grave isso. A política exterior não pode ser uma política de direita ou de esquerda, tem que ser uma política de Estado. Um país sério compreende que as questões comerciais só se equacionam à luz dos projetos geopolíticos. Objetivamente, do ponto de vista da soberania nacional, o Brasil é um protetorado dos EUA. Quase todas as nossas comunicações com a Ásia e a Europa, de telefonia e internet, passam por lá. Todas as comunicações internas no Brasil, do presidente para baixo, são transparentes ao aparato de segurança deles. As nossas Forças Armadas são inteiramente dependentes do GPS americano. Se o desligarem, vamos conduzir navios de guerra por meio da navegação astronômica. Protetorado não pode ser parceiro. Temos que mostrar que somos sérios e não nos entregar em troca de nada.
Valor: Em 2019, o Brasil assume a presidência dos Brics, isso pode ser relevante?
Mangabeira Unger: O Brasil assume a presidência dos Brics, o que lhe permitirá indicar o novo dirigente do banco da instituição. Está todo mundo aterrorizado porque acha que o Brasil será o Cavalo de Troia dos EUA. O Bolsonaro usa a política externa como o PT, para fazer simbologia. E se aliando não aos EUA, mas a uma facção política do país. Absolutamente ridículo. O governo do PT também nunca levantou um dedo para deixar de ser protetorado.
(…)
Valor: Como deve ser a política de Defesa?
Mangabeira Unger: Não queremos viver num mundo onde os grandes países estão armados até os dentes e nós não. O Brasil passou a ter uma política séria de Defesa quando os militares ganharam uma liderança civil. O governo Dilma, do qual tentei participar, abandonou essa política. No dia seguinte à minha entrada, compareci à posse do comandante do Exército, Villas Bôas. E perguntei ao Jaques Wagner, então ministro: “Como vai o trabalho?”. Ele me respondeu: “Eles estão calmos”. A mensagem foi a seguinte: a tarefa do ministro da Defesa não é defender o Brasil, é acalmar os militares. De que maneira? Dá uns brinquedinhos. Eles pedem dez equipamentos caros? Dá dois. Essa foi nossa pseudopolítica de Defesa. Deveria transformar as Forças Armadas numa força menor, porém vanguardista, altamente qualificada. E o complexo industrial da Defesa deveria ser um manancial de vanguardismo produtivo e tecnológico: as Forças Armadas têm pesquisa avançada, mas não têm produção avançada. Além disso, seria preciso insistir no princípio do serviço militar obrigatório. Os brasileiros não sabem, mas quem é dispensado do serviço militar está sujeito a um serviço social obrigatório. É letra morta, mas é lei. Imagina se o governo brasileiro mandasse a juventude burguesa de São Paulo atuar um ano na Amazônia…

Sobre a China:

“(…) Valor: Como avalia a relação do Brasil com a China?
Mangabeira Unger: Passei um tempo na China a convite do Partido Comunista. Lá ninguém entende por que ficamos de joelhos diante deles, como se fôssemos um dos países africanos que eles querem dominar. Mas a atitude deles é: já que aceitam, vamos aproveitar. Só que nós temos um imenso poder de barganha. Porque a China não pode depender dos EUA para obter minérios e alimentos. A razão é estratégica. Deveríamos fazer com a China exatamente o que ela fez com os EUA. Subordinar a presença dela no Brasil a uma parceria qualificadora, que envolva produção, tecnologia e educação. E desenvolver em conjunto uma série de iniciativas rumo a uma economia de conhecimento. O desenvolvimento da inteligência artificial é hoje uma alta prioridade do governo chinês. Vamos fazer juntos. Hoje, porém, simplesmente mandamos para lá as riquezas não transformadas da natureza e recebemos em troca tudo o que a inteligência humana tocou.”

Sobre educação em tempos de economia do conhecimento:

“(…) Valor: O senhor acha que o novo governo viabilizará a inclusão na economia do conhecimento?
Mangabeira Unger: Esse debate não existe no Brasil. Bolsonaro prometeu atalhos. Para acabar com o crime, a força. Para melhorar a educação, ordem na sala de aula. Para dar fim à bagunça na política, só o presidente que manda. São atalhos de vida curta e eficácia limitada. Os problemas reais do país exigem inovação estrutural. A economia do conhecimento, por exemplo, depende da educação. No paradigma produtivo anterior, o da industrialização, a educação necessária era mínima. Bastava o trabalhador ter disposição para obedecer, destreza manual e capacidade de entender instruções. Para a economia de conhecimento é preciso outro tipo de qualificação. Tem que ser uma educação analítica. Oposta à que temos no Brasil, baseada no enciclopedismo raso e dogmático. Continuamos a tentar transformar o jovem brasileiro numa criança francesa do século XIX.”

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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