Leonardo Maia: o interesse pelo pensamento de Mangabeira Unger

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Sobre as entrevistas recentes de Mangabeira Unger (Corona- crônicas 1)

Por Leonardo Maia*

Em meio a tantas notas funestas, há, aqui e ali, uns bens que vêm para males. Dentre eles, um interesse renovado no país pelas questões brasileiras, como se vê no sucesso comercial de algumas obras sociológicas ligadas à questão nacional.

Outra prova disso é a dimensão que vem tomando entre nós o pensamento de Mangabeira Unger. Mangabeira parece ter se tornado, afinal, um intelectual público brasileiro. Cresce o interesse por seus temas, ou talvez mais: pelo seu modo de pensar.

Para quem já o conhecia, o que Mangabeira postula não é propriamente novo, a sua interpretação do Brasil vem de décadas, coincidindo com a sua participação pública e política por aqui. Sobretudo, ligado a dois expoentes da política nacional, primeiro Brizola, depois Ciro.

Até por isso, sua obra guarda algumas diferenças essenciais em relação à maioria desses novos estudos que proliferam desde o Golpe. Duas, talvez, em particular. Sua obra não é de interpretação, mas de proposição, de efetivo projeto de país. Assim, seu maior interesse não está propriamente em identificar algum tipo de ‘inimigo nacional número 1’  (a escravidão, a desigualdade, o racismo, o patriarcado machista, o elitismo de classe, a desinteligência da elite intelectual etc), mas projetar e planejar um país que deve se reconstruir em meio a todos esses problemas, e outros mais.

Com isso, mesmo apresentando teses vibrantes, do ponto de vista prático esses outros estudos talvez não permitam ir tão longe, já que permanecem ‘regionais’ (no sentido hussesrliano), e se comprazem apenas no diagnóstico, limitando alternativas, e pré-determinando questões e respostas.

O segundo aspecto decorre, então, do anterior: suas teses são sempre manifestações de projetos. Não basta explicar, é fundamental realizar.

Pouco adianta identificarmos as questões que nos marcam se isso não se acompanha de algum desenho de como sair de onde estamos.

Definitivamente, o Brasil que temos já não se basta, já não nos serve, e tem sido esse, aliás, o apelo quase desesperado da nação, a cada eleição. É por um deslocamento real que se clama. Mas como operá-lo em um país que se desencontrou, que se afunda na estagnação? A obra ungeriana quer alcançar esse ponto.

Suas teses recentes sobre o país não se limitam a criticar as concepções políticas e econômicas à direita ou à esquerda, mas se valem dessas para propor alternativas, sempre com desenho de causalidade e criatividade metodológica. E carecemos muito disso, justamente – ultrapassar esse  eterno ‘conjunturalismo’ remendão, que tem sido, quase sempre, o modelo da ação política e econômica nacionais.

Cabe, enfim, sair das análises (e soluções) apenas conjunturais, e visar possibilidades estratégicas. É uma imagem do pensamento rara na política nacional. Ou, atualmente, talvez rara por toda parte.

Um projeto nacional progressista é pensado com tal caráter estruturante: com a forma, os meios e talvez mesmo a velocidade adequada para a sua implementação. Nesse sentido, do conjunto de entrevistas recentes de Mangabeira (a última delas, aliás, para esse blog), alguns aspectos mais amplos merecem ser destacados:

1) é preciso considerar a presente crise brasileira sob perspectiva mais ampla. Nesse caso, o risco maior que hoje enfrentamos, juntamente ao da fascistização política (problema conjuntural do momento), é o da reafirmação, em chave violenta, daquilo que, menos percebido, torna contudo esse horizonte autoritário sempre possível entre nós: a estagnação mediocrizante, ou a ‘perpetuação da mediocridade’. Diante da dificuldade, a nossa resposta habitual se repete: damos um passo atrás, em busca do simplismo da ‘ordem’.

Em um mundo cada vez mais tecnológico, somos, ao contrário, crescentemente extrativistas… Com essa ou aquela exceção, mesmo os felizes e fugazes momentos progressistas parecem parar sempre nalgum remendo de conjuntura, e portanto não vão além da solução ‘média’, de busca do consenso ou do meio-termo (e sempre face ao presente, jamais ao futuro), sem conseguir realizar uma necessária travessia, sem avançar ao tal outro patamar

Aliás, para aqueles que veem na solução autoritária uma ‘saída’ para os impasses nacionais, a restrição conjuntural é até pior, pois já surge nos próprios ‘problemas’ postos. Nesse caso, já se pressupõe todo um desenho (simples) de mundo, e os ‘problemas’ colocados são respondidos dentro de uma pré-determinação bastante limitada.

2) assim também, o principal combate a ser enfrentado no país não é exatamente contra a desigualdade (efeito), mas contra o que Mangabeira chama de ‘primitivismo’ (causa) – primitivismo econômico, educacional etc, cuja marca é a busca por soluções ‘simples’ ou até ultrapassadas, que não demandam grande esforço, e que, de novo, contrastam com um mundo crescentemente complexo (conferir entrevista à Folha de São Paulo, em 17/11/2019);

3) enfim, como proposta geral de enfrentamento dessas duas situações, o Brasil não precisa, segundo ele, de um ‘selo de bom comportamento’, tão ao gosto das sucessivas ‘equipes econômicas’ e com as implicações políticas que sabemos (agenda de reformas, supressão de direitos etc), mas ao contrário, deve legitimar a sua rebeldia intrínseca, precisa ‘botar pra quebrar’. Talvez se valendo, para isso, em particular da sua precária estrutura de classes, mas que é por outro lado, aí com sentido positivo, uma estrutura profundamente dinâmica e movente. Não se trata aqui, obviamente, de desconsiderar os problemas extremos de mobilidade social no país, nem de romantizar a precariedade econômica de boa parte da população, mas de ressaltar a sua predisposição ao risco, a sua esperança futura, o seu empreendedorismo mesmo na adversidade, e sem qualificação etc.

O detalhamento dessa última proposta vai na direção do novo nacional-desenvolvimentismo (à falta, talvez, de melhor termo para o momento) preconizado por Mangabeira. Disso, trataremos em outros textos.

Rio de Janeiro, 16/03/2020.
Leonardo Maia é professor de Filosofia na UFRJ, e doutor em Filosofia pela PUC-Rio.

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