“Ordem do dia” em defesa do golpe de 64 reabre o debate sobre o papel das Forças Armadas num projeto nacional de desenvolvimento

Se fosse um fenômeno isolado, ou seja, se a nota do Ministério da Defesa em favor do golpe de 64 refletisse apenas a opinião de generais nomeados por Bolsonaro, e não o estado de espírito hegemônico nas Forças, não haveria tanto problema.

Infelizmente, não é assim.

A nota das Forças Armadas reflete o fracasso das classes políticas que governaram o país nos últimos anos, em promover uma mudança estrutural na mentalidade da “família verde-oliva”.

Não foi criado um sistema de inteligência cujo principal objetivo seria, exatamente, atualizar e modernizar o espírito de nossos militares, tanto das Forças Armadas como das polícias estaduais.

Com recursos e inteligência, seria possível produzir uma narrativa histórica mais coesa, aceita pelas Forças Armadas, que não apenas contribuísse para a estabilidade política, como também, e principalmente, nos permitisse engajar a inteligência militar num grande esforço para desenvolver e industrializar o Brasil.

As iniciativas dos últimos governos social-democratas não escaparam ao vício, que parece ter contaminado tudo, de querer “cooptar” os militares, e, quando não foi possível, “domesticá-los”. Foram criadas “comissões da verdade” sem nenhuma estrutura ou organização, sem nenhum pensamento estratégico de fundo, focadas numa narrativa arrogante e vindicativa, como o próprio nome já anuncia (como se existisse alguma “verdade”), que apenas ajudaram a reviver o espírito golpista nas Forças Armadas. 

Para a direita, não foi difícil mostrar as iniciativas da esquerda nesse tema, ao longo dos últimos governos, como um esforço para se obter indenizações pecuniárias em favor de uma pequena elite intelectual e política.

Os governos democráticos deveriam ter mobilizado a comunidade acadêmica civil e militar, para transformar o debate sobre o golpe de 1964 numa grande reflexão sobre o papel geopolítico do país ontem, hoje e amanhã. E, com isso, trazer as Forças Armadas para dentro de um projeto nacional de desenvolvimento, que reposicionasse melhor a economia brasileira na divisão internacional do trabalho.

Esse é o tipo de coisa que teremos de fazer, visto que nenhum país jamais conseguiu desenvolver um projeto nacional bem sucedido sem amplo apoio de sua comunidade militar. O grande desenvolvimento industrial obtido pela Coreia do Sul, por exemplo, apenas foi possível pelo engajamento político de seus militares em favor desse projeto.

Da mesma maneira, os principais avanços tecnológicos observados nos Estados Unidos, nos últimos cinquenta anos, entre eles a invenção da internet, nasceram de investimentos militares.

Em relação ao poder federal, a nota ajuda o governo Bolsonaro, porque mostra os comandantes militares alinhados ao núcleo ideológico da presidência da república. Mas também prejudica o prestígio das Forças Armadas, por associá-la a um projeto político decadente, reacionário e primitivo, com um prestígio internacional em franco declínio.

Neste sentido, é uma nota coerente com a nossa realidade política. As Forças Armadas tem orgulho do golpe de 64. O presidente da república tem orgulho do golpe de 64. O poder político está alinhado ao poder armado. E ambos estão abraçados, nas causas e nos efeitos, ao nosso fracasso político e militar.

O golpe de 64 nos fez um país politicamente subalterno aos Estados Unidos, e, paradoxo curioso!, economicamente dependente da China.

Tornamo-nos um país indefeso, sem tecnologia e sem armas.

Somos uma potência agrícola, mas não produzimos insumos.

Somos uma potência de consumo, e nossa indústria está desaparecendo.

Na crise do coronavírus, nossa fragilidade nunca foi tão evidente, pois não temos reagentes para produzir remédios e vacinas, não temos centros de pesquisa com estrutura para desenvolvê-los, e não temos indústrias para produzi-los.

Nosso potencial militar é humilhantemente ridículo e inferior.

A nota do Ministério da Defesa sobre o golpe de 1964 não poderia, portanto, ser mais coerente: “foi um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou”.

Sim, o golpe de 64, evitou que nos tornássemos um país emancipado e independente. E evitou, sobretudo, que nossas Forças Armadas se engajassem na grande e única guerra que realmente importa para o Brasil: a luta popular para superação do nosso subdesenvolvimento.

***

Abaixo, a íntegra da nota do Ministério da Defesa.

No Ministério da Defesa

Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964

Publicado: Segunda, 30 de Março de 2020, 17h59

MINISTÉRIO DA DEFESA

Brasília, DF, 31 de março de 2020.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época.

O entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos. O início do século XX foi marcado por duas guerras mundiais em consequência dos desequilíbrios de poder na Europa. Ao mesmo tempo, ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias. O nazifascismo foi vencido na Segunda Guerra Mundial com a participação do Brasil nos campos de batalha da Europa e do Atlântico. Mas, enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários.

Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil. Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.

A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis.

Aquele foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram. Entregaram-se à construção do seu País e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam. O Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo.

A Lei da Anistia de 1979 permitiu um pacto de pacificação. Um acordo político e social que determinou os rumos que ainda são seguidos, enriquecidos com os aprendizados daqueles tempos difíceis.

O Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios. As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas.

As Forças Armadas acompanharam essas mudanças. A Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade.

Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou.

FERNANDO AZEVEDO E SILVA
Ministro de Estado da Defesa

ILQUES BARBOSA JUNIOR
Almirante de Esquadra
Comandante da Marinha

Gen Ex EDSON LEAL PUJOL
Comandante do Exército

Ten Brig Ar ANTONIO CARLOS MORETTI BERMUDEZ
Comandante da Aeronáutica

Redação:
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