Piada emblemática

Mourão, o piadista. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A piada proferida pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão, no dia da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde, é um retrato fidedigno do nosso momento atual.

“Tudo sob controle”, ele diz, mirando a câmera que o filma, enquanto caminha. Após dar uma olhada para o lado com um aparente sorriso no rosto, o arremate cômico surge em sua mente: “Não sabemos de quem”. A rápida interação é encerrada com um sinal de positivo de Mourão para a câmera. (Aqui, a cena).

A piada é precisa porque, de fato, não se sabe quem está no controle do país. Em meio a uma pandemia devastadora, Jair Bolsonaro, em tese o comandante da nação, age como um psicopata em surto ao negar ou dificultar auxílio financeiro para que a população permaneça em quarentena; ao instigar as pessoas a saírem às ruas normalmente; e ao incentivar aglomerações de apoiadores, inclusive comparecendo presencialmente a estas, como fez mais uma vez neste domingo (19). Um genocida em plena e dantesca ação.

Mas o chiste de Mourão é, incrivelmente, ainda mais emblemático por seu contexto do que por seu conteúdo. Quando o vice-presidente faz piada sobre a falta de comando do país em meio a uma crise sanitária e econômica mundial de proporções monumentais, não pode restar dúvidas sobre o esfacelamento das instituições.

Na bizarrice de hoje (19), o presidente compareceu a mais um ato (ou melhor, foco de contaminação) de seus tresloucados apoiadores, que pediam uma intervenção militar. Entre tosses, açulou o grupo com frases como “não queremos negociar nada”, compatíveis com o caráter golpista da manifestação.

O presidente da Câmara Rodrigo Maia, ministros do STF como Barroso e Gilmar Mendes, a OAB, Doria, FHC, todos condenaram a participação de Bolsonaro no ato.

Mas e daí?

Esse filme já foi reprisado algumas vezes. Bolsonaro faz merda, diz que foi mal compreendido, que não fez nada de mais, novos acontecimentos atraem a atenção de todos e ele segue impávido em seu cargo, prejudicando mortalmente os esforços que milhões de brasileiros estão fazendo para enfrentar o coronavírus.

Se todas essas vozes que fazem críticas protocolares falassem em alto e bom som que Bolsonaro precisa cair já, pois é um criminoso genocida, e não cessassem de falar, denunciar, pedir, exortar para que os responsáveis ajam para apeá-lo do poder, talvez Maia tomasse coragem para aceitar um dos tantos pedidos de impeachment que já foram protocolados na Câmara ou Augusto Aras, Procurador Geral da República, finalmente cumprisse seu dever e apresentasse denúncia ao STF por conta de algum dos tantos crimes cometidos pelo presidente.

O que dizer, então, da mídia corporativa não alinhada a Bolsonaro? Globo e Folha, por exemplo, bem como seus colunistas e comentaristas tão diligentes para criar as condições para a derrubada de Dilma Rousseff por conta de “pedaladas fiscais”, não ousam pedir a queda de um assassino em massa – ou sequer chamá-lo do que é, um genocida. Quão grotesco e surreal é, aliás, este singelo fato: derrubou-se uma presidente por uma questão fiscal extremamente duvidosa e não há movimentação efetiva para derrubar um presidente que está empurrando milhares de pessoas para a morte, à vista de todos.

Poderíamos especular sobre os motivos desta exasperante covardia dos que têm voz e/ou poder real para pressionar pela queda de Bolsonaro, mas, por ora, basta o registro de que são nada menos do que cúmplices do morticínio que já começou. Ou, para ficar no linguajar do vice-presidente, uma piada de mau gosto (e péssimo cheiro, o de cadáver).

Gilmar Mendes disse essa semana que “o presidente da República (…) não dispõe do poder para, eventualmente, exercer uma política pública de caráter genocida”. Uma decisão do STF proibiu Bolsonaro de revogar os decretos estaduais e municipais que versam sobre a quarentena.

O problema é que a retórica do presidente, bem como sua inação quanto à subsistência das pessoas, geram efeitos tão ou mais graves do que uma política pública oficialmente implementada. A quarentena está visivelmente frouxa. Os leitos de UTI estão começando a esgotar em cidades importantes. Ou seja, formalmente a decisão é ótima; na prática, é atropelada pelo poder de fato que Bolsonaro tem de influenciar o comportamento de milhões de pessoas.

O caráter genocida das palavras e ações de Bolsonaro está aí, gerando efeitos reais. Os que podem tentar pará-lo estão aguardando as pilhas de cadáveres para fazerem o que deve ser feito?

É o que parece, mas então será tarde demais. Depois de consumada a tragédia, as piadinhas vão pegar mal.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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